Encontros e Desencontros *

por Berenice Neri Blanes

 

Não acho simples a tarefa de traduzir experiências subjetivas de percepção e compreensão, que surgem a partir de uma obra de arte. A psicanálise nos oferece um referencial metapsicológico, teórico – clínico, a bruxa” metapsicologia, que nos orienta pensar a palavra, a imagem, as representações, a linguagem para além daquilo que elas parecem pretender representar.

Aplicar a psicanálise na busca de “outros sentidos” é um exercício instigante, curioso, mas não livre de riscos, pode-se incorrer em certo dogmatismo, reducionismo e esterilização, tanto da obra em questão, como da própria psicanálise.

Pretendo fazer algumas digressões sobre o filme “Encontros e Desencontros” – versão brasileira do título original, “Lost in translation”, ou “Perdidos na Tradução”. As duas versões do título servem ao meu propósito e em função disto não priorizarei um ou outro. A meu ver o filme trata, por um lado, de desencontros que podem ser uma conseqüência da dificuldade na tradução das impressões e sentimentos diante do estrangeiro que veicula o mal-estar (tal como desenvolvido por Freud em 1929, no texto O Mal Estar na Civilização). Por outro lado, trata do encontro possível quando algo pode ser traduzido como semelhante, a partir da identificação com quem se percebe estar submetido à mesma experiência de estranhamento.

Outros recortes, por certo, aparecerão. Refiro-me tanto àqueles que partem do que eventualmente foi experimentado pelo espectador, o público em geral, onde cada qual com sua subjetividade estabelecem uma relação específica com o filme e seus personagens, sem nenhuma pretensão outra que não seja a de fazer o seu recorte particular; como àqueles que, pelos mais diversos interesses, o fazem através da compreensão vinculada a diferentes campos de conhecimento, como o social, a antropologia, crítica de arte, de fotografia, de produção, direção, artes cênicas e assim por diante.

O filme é interessante, tem um bom equilíbrio entre o humor e a tensão que pode suscitar no espectador. Os atores são primorosos, absolutamente expressivos. Aquilo que não é dito em palavras se revela no gestual, na expressividade fisionômica, na fotografia.

O filme tem como primeira cena a chegada de Bob à Tóquio. É um conhecido ator hollywoodiano, em fim de carreira, que vem ao Japão para filmar um comercial de whisky.

Ainda no táxi, a caminho do hotel, dorme (diferenças de fuso horário?), quando acorda se depara com um cenário singular, diverso, uma cidade movimentada, agitada, iluminada por multicoloridos outdoors. Sua expressão revela assombro, estranheza. Chega ao hotel e é recebido por uma equipe de japoneses, responsáveis por seu contrato e uma tradutora do japonês para o inglês que aparentemente possibilita a interlocução entre Bob e esta equipe. Nova inquietação, o lugar de estrangeiro, remete a experiência com as diferenças que não encontram apaziguamento na tradução, há algo que não é possível traduzir...

Já no quarto, Bob recebe um fax da esposa. Esqueceu o aniversário do filho! Quantos desencontros... Bob está perdido, inundado por um mal-estar inquietante que não encontra tradução.

Charlotte está em Tóquio acompanhando seu marido John, um fotógrafo, absolutamente atarefado, com pouco tempo e disponibilidade para ela, quando não está trabalhando, compromete-se com amigos ou dorme profundamente.

Charlotte, tal como Bob, expressa angústia, insatisfação, não consegue descansar, “o olhar de Charlotte não encontra o olhar de John”. Ela tem que se haver com a própria interioridade, com sua angústia, com seu próprio desprazer, com seu desencontro em si mesma e isto se traduz em enorme inquietação/ estranheza.

Bob e Charlotte estão hospedados no mesmo hotel. Quando Bob chega, ainda no elevador, se dá conta de estar cercado, naquele pequeno espaço, das diferenças étnicas com as quais vem se defrontando desde sua chegada à Tóquio, a diferença subjetiva é acompanhada da constatação das diferenças que também são concretas: Bob é muito mais alto do que aqueles que o cercam naquele elevador. Rapidamente repousa seu olhar sobre Charlotte que fugazmente lhe retribui o olhar. Primeiro encontro...

Cada qual tem que lidar com o próprio mal-estar. Motivado por diferentes percepções em relação àquilo que lhes está alheio, o estrangeiro. Ambos sofrem, se inquietam, vivem o estranho dentro de si.

As diferenças culturais são marcadas a cada cena, estabelecem um interlúdio com os personagens através da experiência de mal-estar, desconforto.

No bar do hotel um segundo encontro , se identificam, algo de comum é perceptível e se apresenta na troca de olhares e em um breve diálogo. Não por acaso, continuam a se encontrar nos dias que seguem - algo íntimo e familiar se estabelece e carece de tradução. Tornam-se amigos, saem juntos, se concedem a possibilidade de dar lugar às representações que lhes parecem atormentar, suas dúvidas, medos e inquietudes.

Bob e Charlotte se encontram e se identificam na experiência de desconforto.

Em meu recorte priorizei o sentimento de estranhamento, o que compreendi como expresso no mal-estar, tanto em Bob como em Charlotte. Mal-estar, como efeito do impacto psíquico sofrido com a experiência de alteridade. O texto “O Estranho” de Freud (1919) – Unheimlich - será meu ponto de apoio.

Unheimlich foi traduzido para língua portuguesa como “O Estranho”, comporta também outras traduções como: o inquietante, o sinistro, o estrangeiro..., não me deterei nas diferentes significações destes usos lingüísticos, assumo a imprecisão, tomarei as diferentes traduções como sinônimas. Para quem estiver interessado, remeto ao próprio texto de Freud, “O Estranho” (1919) e a Hanns – “ Dicionário Comentado do Alemão de Freud” . Rio de Janeiro: Imago, 1996. 

Tomando os sentidos das palavras Unheimlich – “O Estranho” e Heimlich – “Familiar”, Freud escreve algo como: “ Heimlich, palavra que desenvolve seu significado seguindo uma ambivalência que, por fim, coincide com seu oposto un heimlich (grifo meu). De alguma forma, unheimlich é uma variedade de heimlich” (Freud, 1919). A experiência com o estranho pressupõe o (re) conhecimento de seu par antitético, de seu contrário, o Familiar.

O filme parte da experiência de alteridade tanto do sujeito em relação a uma cultura que lhe é alheia, como da experiência de alteridade do sujeito com o outro de si mesmo. Há uma necessidade de se traduzir ou representar objetivamente tanto as diferenças expostas por esta cultura que lhes é estranha quanto às diferenças de sentidos expostas pela divisão do sujeito em relação ao Outro de si mesmo. A dimensão inconsciente permeia estas diferenças. O Inconsciente possui uma lógica, uma relação de espaço e tempo que lhe é própria, não se submete à ordem do pensamento representacional, usurpa esta ordem. A descoberta do inconsciente rompe com a indivisibilidade do sujeito.

O estranho, é algo familiar do sujeito, tem morada no inconsciente, é algo da ordem do desejo que se apresenta, do oculto que precisa ser decifrado.

Freud em seu texto “O estranho” de 1919 escreve:

“...na verdade, na natureza secreta do inquietante, podemos compreender que os usos da língua tenham transformado o” Heimliche “{o” familiar} em seu oposto, o “Unheimliche” ()...() pois este inquietante não é efetivamente algo novo ou alheio, mas sim algo há muito familiar ao psiquismo, somente alijado dele pelo processo da repressão. Esse nexo com a repressão ilumina agora também a definição de Schelling, segundo a qual o inquietante é algo que, embora destinado a permanecer oculto, teria vindo à tona”.

“...Pode ser verdade que o estranho seja algo que é secretamente familiar, que foi submetido à repressão e depois voltou, e que tudo aquilo que é estranho satisfaz esta condição”...

(...) “uma experiência estranha ocorre quando os complexos infantis que haviam sido reprimidos revivem uma vez mais por meio de alguma impressão, ou quando as crenças primitivas que foram superadas parecem outra vez confirmar-se” (...)

O estranho é algo da ordem da pulsão e da com pulsão a repetição, da interioridade do sujeito que, o atravessa e, carece de sentido, de significado. Algo da ordem do processo primário, daquilo que temos de mais íntimo, que encontra no mal-estar, na inquietude uma primeira e rudimentar tradução.

Bob está perdido nessa tradução, em sua alienação do outro dentro de si, confronta-se mais uma vez com seu desamparo primordial. A experiência em seu dia a dia oferece elementos que indicam insatisfação, a proximidade de um final de carreira, incomoda e denuncia a expressão do ridículo, o ator reconhecido que se transforma em um “garoto propaganda”, e que, como se não bastasse, é convidado, e aceita, a imitar colegas, atores, como Frank Sinatra, Roger Moore- o famoso 007-.... Seu casamento está longe de representar aquilo que pareceria ser seu ideal. “Já não importo”... Em conversa íntima com Charlotte revela seu desconforto pelo negativo daquilo que a ela afirma ...“você ainda tem esperança”... (Quanto a ele próprio? Parece ficar sem resposta.). A idéia de falta, incompletude, perda, o assombra.

Charlotte não sabe o que será de seu casamento. O que pode esperar? Dias melhores? Surpresa e indignação expressam seu mal-estar com John, sente-se só, em conflito. Em conversa com Bob pode encontrar palavras para seu mal-estar entre dúvidas e anseios. É filósofa, mas não sabe o que fazer com isso. Trabalhar? Como? No momento é esposa e não parece saber traduzir o que isto pode significar.

Ambos vivem situações do cotidiano sem encontrar para elas um sentido, por o que vivem? Como traduzir a atualidade do que experimentam? O que podem fazer por eles mesmos?

Desapontados, amedrontados, desamparados é como se apresentam. Aí o estranho, o inquietante que se impõe, que atravessa o sujeito. Não parecem encontrar resposta. Há algo a ser traduzido?

Quando estive discorrendo, no Departamento, sobre estas idéias, teci uma analogia dessa experiência com “O Estranho” e a experiência de alteridade, na situação de análise. A possibilidade daquilo que é alheio e oculto em nós mesmos, embora familiar, apresentar-se, diante de um outro que também nos é alheio, o analista. Este último, por sua vez, pode, ou não, abrir espaço para tal apresentação e seu deciframento. O sítio do estrangeiro, idéia desenvolvida por Fèdida foi meu ponto de apoio, para pensar, essa relação especial, esse lugar do analista que potencializa a transferência. Mas acho que não devo, agora, me alongar ainda mais. Talvez em uma próxima oportunidade.

* Título original: Lost in Translation – Perdidos na Tradução Direção: Sofia Coppola, Roteiro: Sofia Coppola, Produção: Sofia Coppola, Ross Ator / Atriz Personagem: Bill Murray como Bob Harris, Scarlett Johansson como Charlotte.

e- mail: bereniceblanes@gmail.com

 

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LOST IN TRANSLATION – Encontros e Desencontros*

por Vera Warchavchik

 

RESUMO:

Duas pessoas se encontram por acaso em um hotel americano em Tóquio. Ambas são americanas e estão lá de passagem.

Uma é Bob Harris: famoso ator americano de meia idade que foi para lá sozinho, para gravar um comercial de Whisky. Para isso ele receberá 2 milhões de dólares. Ele se mostra entediado com a tarefa e pouco responsivo à evidente bajulação da qual é sujeito. Sofre de insônia. Ele esta casado há 25 anos e tem um casal de filhos. Pelos contatos telefônicos com a esposa somos informados que para ela ele fica pouco tempo em casa e deve mais atenção aos filhos. Sua casa nos USA está em reforma, o que mobiliza muito sua esposa, mas não desperta nele grande interesse. A presença desta, que se faz por meio de ligações ao celular, envios de fax e pacotes por Fedex, são para ele apelos sem sentido, gerando sempre um efeito intrusivo.

A outra é Charlotte, uma moça de Nova York que está acompanhando o marido fotógrafo, com quem se casou há dois anos. Ele é um jovem em ascensão que está ali para fotografar uma banda. Charlotte não sabe bem o que deseja; está deprimida, angustiada e entediada; seu mundo está por se fazer. Mora em Los Angeles desde que se casou, mas ainda não se adaptou. Ela não está feliz com o casamento e tem estranhado o marido. Em momentos de desespero ela tenta falar com ele; em outro, com uma amiga americana, pelo telefone - mas ambos se mostram envolvidos demais com seu cotidiano para compreender o seu vazio; a comunicação se mostra impossível. No hotel, ela e o marido se encontram por acaso com uma jovem atriz americana - Kelly Strong - deslumbrada por seu sucesso recente; sua animação causa evidente mal-estar em Charlotte, o que não é compartido por seu marido. Ele considera sua critica à Kelly pedante e assim, numa mesma frase, somos informados que Charlotte se formou recentemente em Yale (onde estudou Filosofia) e que seu marido também dirige criticas a ela. Ela quer conhecer Tóquio, mas quando sai percebe que não consegue se animar com o mundo novo que tem a explorar. Isso a deixa sem forças para procurar alguns amigos que tem ali. Passa hora sozinha no quarto do hotel, intercalando momentos de tédio e angústia. Sofre de insônia. Ouve uma fita de auto-ajuda: “A Soul Search” e tenta fazer Ikebana - mas a insuficiência desses métodos para acalmá-la é evidente.

Ela e Bob se encontram no hotel e aos poucos se aproximam. Cria-se entre eles imensa empatia e aos poucos ambos saem de seu tédio e solidão. Bob, que queria sair do Japão o mais rápido possível, passa a protelar sua saída para se encontrar com Charlotte. Ela se reanima e consegue procurar seus amigos; Tóquio deixa de ser um longínquo pano de fundo. O novo ânimo em Bob faz com que as ligações da esposa sejam respondidas com maior intensidade e o desinteresse inicial passa a dar lugar a reivindicações. O momento culminante do encontro se dá no quarto de Bob, onde ambos, assistindo um filme em italiano com legenda em japonês, dão voz às suas dores: Bob fala da falta de sentido do mundo em que habita - mesmo sendo bem sucedido e admirado - e de sua dor por se perceber desnecessário para a esposa desde o nascimento dos filhos. Charlotte fala de suas dificuldades no casamento, sua falta de projetos e seu temor de ser pedante. O encontro tem certo tom erótico, mas nada se leva adiante; prevalece o desejo da escuta e do reconhecimento dos impasses vividos por cada um. Ambos se despedem, havendo logo depois um reencontro fortuito e intenso que na verdade reafirma a despedida; enquanto algumas palavras são sussurradas entre eles – que não são compartilhadas com o espectador - a musica de fundo indica que cada um voltará a seu próprio mundo, para enfrentar o inevitável estrangeiro que ali se encontra: “to go back to you, is the hardest thing for me to do, for you, for you”.

 

UM PEQUENO COMENTÁRIO FORMAL DO FILME:

A câmera funciona como um narrador onisciente: somos informados do que se passa com os personagens do ponto de vista transcendente. Trata-se, portanto, de uma narrativa tradicional. Há o uso dos truques fáceis que garantem o sucesso de bilheteria: toques de humor bem pautados, cenários interessantes, metáforas simples – tornando o filme facilmente assimilável. Seu maior mérito está num manejo delicado do tema. A câmera não flagra ou invade os personagens; somos apenas apresentados a eles, sem recortes e emissão de juízos. O título indica com grande precisão, e da mais absoluta exterioridade, o que se passa na interioridade dos personagens. As falas são simples, sintéticas e intensas, dispensando excessos explicativos; a trilha sonora e as letras das canções completam a narrativa. O contexto ajuda-nos a entender o que se passa: os tons predominantes nas cenas iniciais de Charlotte são o azul e o cinza, e o uso de chuva. Nas cenas iniciais de Bob, há maior contraste, com muito preto, branco e neon, compatíveis com seu resmungo, seu cansaço (muito marcado pelos bocejos constantes) e sua impaciência. Tóquio, que inicialmente parece um cenário do outro lado da janela vai se fazendo mais presente à medida que os personagens saem de sua apatia, ficando mais colorida e acolhedora. Além do uso do setting, o encontro com os demais personagens - a cantora americana, os modernos amigos japoneses ocidentalizados, os monges, a noiva em seu traje tradicional, os extras em suas trips nos jogos eletrônicos, Kelly e tantos outros - criam pólos de oposição que explicitam os conflitos vividos internamente pelos personagens. Tudo isso contribui para que a intimidade dos protagonistas nos seja revelada desde sua exterioridade, dispensando dissecações.

 

COMENTÁRIO SOBRE O FILME:

Meu comentário sobre o filme irá se centrar no título – Lost in Translation – e na relação dos protagonistas com o estrangeiro.

Título: LOST IN TRANSLATION

Conforme Houaiss, traduzir é, etimologicamente, conduzir de um lugar a outro; transpor.

A expressão Lost in Translation tem dois sentidos: a de um sujeito tomado pela tarefa de traduzir, e a de algo que se perde em uma tradução. Parece-me que Bob e Charlotte vivem essas duas formas de se perder na tradução.

A idéia de que algo se perde em uma tradução é apresentado de modo cômico em uma das cenas iniciais de Bob, onde o diretor do comercial que irá gravar o instrui longamente, com ênfase, mas sua interprete só lhe oferece uma ou duas lacônicas, e pouco confiáveis, palavras. A dolorosa constatação da insuficiência de nossas palavras e do nosso dizer fica assim apresentada nesse envelope chistoso.

A idéia de um sujeito tomado pela tarefa de traduzir está também presente. Os personagens principais encontram-se numa espécie de suspensão, onde o cotidiano perde a sua materialidade, tornando-se evanescente. Algo se processa dentro deles; toma-os; e sua relação com o outro e com o mundo se torna distante e marcada pelo estranhamento.

Podemos aproximar esses dois sentidos do perder-se na tradução com a psicanálise, utilizando o modelo de aparelho psíquico proposto por Freud em 1896, numa carta à Fliess – a Carta 52 (112, na nova numeração). Nessa carta Freud apresenta uma concepção de aparato psíquico que é uma pequena máquina de inscrição, escrita e tradução. Num dos pólos desse aparelho, inscrevem-se os signos de percepção – a tradução possível dos perceptos para dentro do aparelho - que são então organizados de acordo com as leis que ordenam aquela instância de chegada. Esses signos de percepção são traduzidos para a instância seguinte, e novamente ordenados de acordo com o regime da instância de chegada, e assim por diante. Cada tradução implica na perda da inscrição original, e do arranjo que lhe dava um sentido possível; traduzir é assim, necessariamente perder. O que se perde nesse aparato nunca é a coisa em si, mas apenas o resultado de sua prévia tradução. Por outro lado, aquilo que não se traduz, produz um fueros , um traumático fora-do-tempo-e-do-espaço que assombra o aparelho, que se vê incapaz de drenar sua carga de excitação. Somos assim condenados a traduzir. No outro extremo do aparelho se encontra o Eu, ainda identificado nesse momento com o Pcs. O Eu é assim a instância de chegada, condenado a traduzir aquilo que lhe chega como resto das inúmeras traduções anteriores – e seus fracassos. A tradução para essa última instância se faz pela palavra, pelo logos; o Eu liga o que se apresenta a ele como coisa à palavra. É pela ligação com a palavra que o pensamento pode vir a se tornar consciente, dando ao sujeito alguma notícia de seus processos de pensamento.

Nesse aparelho, cada instância é um estrangeiro para as demais instâncias. Nele não existem intérpretes bilíngües; cada instância se encarrega de traduzir, num ato poético, o que a confronta desde fora como puro ruído. A tradução implica assim necessariamente na perda, mas também na recriação. Dar palavra ao que nunca a teve – tarefa do Eu – é, portanto, um ato criador e fundante. Ela gera a transposição de algo para um novo lugar. O fracasso em fazê-lo é traumático.

A pulsão, como exigência de trabalho, será posteriormente o motor desse aparelho, substituindo o lugar ocupado aqui pelos índices ou signos de percepção. A segunda teoria pulsional torna ainda mais desafiante essa exigência de inscrição, transposição e tradução, já que o fueros - que aqui ainda pode ser pensado como falha e ocorrência excepcional adquire o estatuto de um intruso inevitável, escapando a toda tradução.

O Eu, tradutor final de uma longa série de traduções prévias, se encarrega ainda de decifrar os sinais do mundo externo, pois precisa garantir a descarga efetiva da quantidade no aparelho.

Assim, ele se vê confrontado por dois estrangeiros – o interno e o externo – cada qual falando a sua língua, e precisando se comunicar. Encontrar a palavra é o meio de colocar em comunicação esses dois estranhos.

O analista pode ser pensado como mais um estrangeiro nessa longa seqüência de estrangeiros; aquele que, desde fora, ouve as ressonâncias de uma língua estrangeira, tomando-a como não-familiar, para produzir atos poéticos capazes de perder/recriar aquilo que se apresenta à dupla analítica como fueros . Ele age, junto a seu paciente, ali onde o Eu se viu insuficiente em sua tarefa tradutiva, ou seja, em sua possibilidade de transpor o que vem de outra esfera, para ligá-lo a uma palavra que lhe dê sentido e drene sua carga de excitação1.

Os dois sentidos presentes no titulo do filme – “perder-se em tradução” e “perder-se pela tradução” – estão presentes nesse modelo apresentado por Freud. O Eu tanto pode se perder na tradução – tomado por uma tarefa que lhe demanda excessivamente (o que depende tanto do conteúdo como da intensidade do que se apresenta em sua fronteira) como também gerar a perda de algo, que pode então ser recriado, por uma feliz tradução. Perder algo pela tradução é, portanto, a condição de se efetuar a própria tradução, ou seja, de se obter algo novo que transpõe, para uma nova língua, o texto de partida.

•  O Eu tomado pela Tradução:

Voltando ao filme: Bob e Charlotte estão, de início, perdidos em uma tarefa de tradução, empenhados em buscar a palavra que silencie o barulho que se faz dentro deles. Ambos sofrem de insônia, pois o Eu, tomado por esse trabalho, se vê incapaz de desinvestir seus sistemas para entregar-se ao recolhimento narcísico. Ambos exibem certa apatia, pois a libido, investida no ego tomado na tradução, não está suficientemente móvel para dirigir-se ao exterior. Talvez venha daí a dificuldade de Charlotte descobrir o seu caminho, dentro ou fora da Filosofia. O empenho em traduzir – em dialogar com o estrangeiro – antecede, portanto, a chegada de ambos ao Japão, restringindo sua possibilidade de usufruir do lugar que visitam.

O encontro dos dois – com o reconhecimento mútuo de estarem ambos “em suspensão” - permite que algo se movimente dentre deles. Um início de análise muitas vezes produz esse efeito, antes mesmo que o analista diga algo de consistente a seu paciente. Reconhecer o sofrimento do outro produz um efeito de acolhimento que alivia a vivência de desamparo do Eu frente às exigências do pulsional. Bob e Charlotte deram-se poucas palavras - justamente por reconhecerem que suas vivencias não se resolvem com livros de auto-ajuda ou conselhos prêt-à-porter - mas encontraram um no outro o alívio da solidão e da angustia que permitiu a saída da paralisia que se encontravam.

O que permitiu a vivência de profunda empatia entre Bob e Charlotte – evento raro e precioso na vida de um sujeito – foi o reconhecimento mútuo de que habitavam outro planeta - um Japão - que agora, por acaso, se encontrava de passagem pelo Japão. Não há comunicação possível entre os seres em suspensão – que esvazia o mundo imediato de seus cheiros, cores, e intensidades – e aqueles que mantêm seus investimentos cotidianos. Sofia Coppola mostra esse impossível diálogo com grande eficácia, na tentativa de Charlotte de se abrir com uma amiga pelo telefone, que não pode ouví-la, envolvida que está com os filhos, cujas vozes se ouvem ao fundo. O mesmo ocorre nos diálogos de Bob e a esposa, onde seu apelo para que ele volte para casa, para que se interesse pela cor do tapete, e participe da vida dos filhos cai no vazio, assim como caiu no vazio a tentativa dele de se abrir com ela, ao dizer-lhe estar perdido.

•  Para cada um, um Japão

De início há, para cada um, um Japão. Para Charlotte, o Japão era um local intrigante, que ela deseja conhecer, apesar de seu torpor. No entanto, ela não consegue se encantar com sua visita ao Templo, fazendo-a defrontar-se, assustada, com seu estado afetivo. Ao falar com uma amiga, escapa-lhe não mais conhecer seu marido. A partir de então, Tóquio só é vista de longe, da janela do quarto de seu hotel ocidental. Para Charlotte nada mais restava de familiar - e o estrangeiro se torna excessivo quando nada mais é conhecido. Esse profundo estranhamento de si é vivido por ela com grande angústia.

Para Bob, o Japão era de inicio um local de trabalho, como outro qualquer – algo a ser visto rapidamente da janela de um táxi, sem grande interesse. Seu desejo era ir embora dali o mais rápido possível, cumprindo com a mínima polidez necessária, as obrigações que sua profissão exigia. O bar do hotel lhe basta; o estrangeiro é o discrepante - o que é representado com humor nas cenas onde sua altura sempre se destaca, tornando impossível um simples banho. Sabemos, no entanto, pelas marcantes aparições virtuais de sua esposa, que ele não se sente menos estrangeiro em sua casa. O novo tapete de sua casa, o Monte Fujiyama, ou a cantora americana que o seduz, o interpelam igualmente como objetos estranhos, aos quais ele responde mecanicamente. Estando no Japão ou em Beverly Hills , Bob está sempre do outro lado do mundo. Para que, então, conhecer um novo lugar, se todo lugar é lugar nenhum?

Mas há outro Japão em cena – o Japão de Kelly: lugar de festa e desinibição, que não causa estranhamento ou vivência de incongruência. O estrangeiro ali não ameaça, não constrange, não inquieta. Não há Eu em trabalho de tradução.

Se o Japão pode ser tomado como metáfora do estrangeiro interno, e o modo de visitá-lo, como metáfora da capacidade do Eu lidar com o que demanda tradução, como entender o Japão de Kelly?

•  Narcisismo e Alteridade

O Eu de 1896 era identificado com o Pcs. e pensado como pura unidade. Logo Freud se dá conta que isso encobre a complexidade da estrutura do Eu. Em 1914 Freud conceberá o Eu como instância narcísica, que se funda sobre um equívoco necessário: a ilusão de completude. O Eu, que se constitui no encontro com o outro, se toma como a totalidade do mundo. Nada há exceto um si mesmo suspenso num tempo e num espaço infinitos. Mas a pulsão, como exigência de trabalho, logo desestabiliza esse estado de coisas e o sujeito é condenado a investir nos objetos, pois o acúmulo quantitativo da pulsão - mesmo quando de trata da libido narcísica – requer a descarga em algo para além de si. O não-Eu passa a fazer parte do mundo do sujeito, iniciando-se assim o difícil manejo da economia narcísica.

Os desinvestimentos de si implicados no investimento do mundo são pensados por Freud à luz da imagem de uma ameba, que lança suas extensões ao mundo - que fica então investido – e que pode recolhê-las a qualquer momento, fazendo com que voltem a fazer parte de si. A condição de narcisismo inicial passa então a ser chamada narcisismo primário, e essa, resultante do retorno dos investimentos no objeto, secundária. Enquanto a primeira é ensimesmada e tóxica, a outra é móvel, resultante do retorno do investimento no outro e no mundo. O não-Eu - o limite do Eu – é assim uma afronta ao Eu, mas é também o lugar da recuperação narcísica; pois é junto aos outros que se pode legitimar o próprio valor, e se tornar objeto passível de investimento amoroso do outro. Amar é, portanto, essencial - pois é na relação amorosa que há o maior despojamento de si, mas é ali também que se recebe o maior retorno libidinal possível, reconstruindo o narcisismo do sujeito.

Os primeiros investimentos libidinais no outro lançam o sujeito em formação na aventura edípica, que termina por instalar uma diferenciação no Eu, chamada Ideal do Eu. Esse ideal é o herdeiro da perfeição que o Eu imaginou uma vez ser, mas que agora o confronta como outro , diferenciando o que é do que se deveria ser. Esse ideal será composto pela introjeção dos mandatos da cultura que regulam os intercâmbios entre os sujeitos – transmitidos inicialmente pelos pais – e que inibem nossos narcisismos desenfreados. É em nome desse ideal que o Eu recalca – criando novos fueros que depois o afrontam - deixando sem palavras (não traduzindo) tudo o que perceber distanciá-lo desse ideal.

Cumprir com esse ideal é o meio de nos aproximarmos da perfeição que uma vez imaginamos ser, mas é também uma tarefa impossível. O Eu terá de se haver com a distância variável que há entre o que é e o que se exige ser. Sair do narcisismo – reconhecer a alteridade – implica então em poder sustentar um Eu com sombras, um Eu que nunca pode familiarizar-se completamente consigo mesmo.

O Japão de Kelly faz um contraponto importante para a compreensão do filme. Kelly se encontra siderada numa relação especular com o olhar do público, que lhe devota os quinze minutos de fama a que tem direito. O encontro com esse olhar faz com que solape, temporariamente, a distância entre o Eu e o Ideal do Eu, fazendo com que o Eu experimente, num tempo suspenso, algo próximo da experiência narcísica que faz parte de sua pré-história psíquica. Ela vive então num estado de mania - no estado triunfante de um Eu sem sombras - que se crê idêntico ao seu ideal2.

Nesse mundo acrítico não há estranhamento de si, mas também não há estranhos; ela e Keanu se equivalem, já que ambos possuem cachorros, lutam karatê e crêem na re-encarnação (nem a morte parece ameaçá-la). Toda alteridade é suspensa nesse verdadeiro festival do Eu, onde o Japão se reduz ao quarteirão de casa. Nada requer tradução: Kelly crê possuir as três palavras suficientes para se fazer entender plenamente com os japoneses, e desconhece a atuação da intérprete a seu lado, que se esforça para traduzir essa estapafúrdia idéia a seus ouvintes (essa é uma cena que faz partes dos extras do filme). A aproximação do Eu e do Ideal do Eu impede qualquer reconhecimento do outro, pois silencia toda insuficiência de si - seja essa intra ou extra-psíquica. O Eu ocupa a cena, perdendo a realidade interna e externa. Poder viver o estranho, o novo, o diferente depende, portanto, da possibilidade do Eu de sustentar o estranhamento de si que lhe é constitutivo.

Bob, ator como Kelly, faz com ela um interessante contraponto, pois ele, diferentemente dela, experimenta com evidente indiferença a bajulação que o acompanha. Bob sabe que realiza um ideal do Eu grupal, que define como “bacana” aquele que habita os galpões e palacetes de Hollywood. Mas há uma diferença, por ele reconhecida, entre o que constitui o ideal do Eu que construiu para si, e o ideal do Eu social. O sucesso profissional, representado pelos dois milhões de dólares que receberá pelo comercial, não diminui a distancia que sente haver entre o Eu com o Ideal do Eu. Os emblemas que o identificam como alguém que cumpre satisfatoriamente os ideais sociais não se aderem ao Eu, sendo recebidos protocolarmente como parte do papel que tem de desempenhar. O que ele recebe se agrega a ele superficialmente, como o smoking que veste para gravar o comercial, ajustado com clipes para parecer sob medida, que ele continua usando, sem pudor, no bar do hotel. Encontra-se aqui uma segunda explicação para sua evidente apatia – pois o Eu só investe no mundo se puder crer que haverá, desde ali, um contra-investimento que o permita reequilibrar-se narcisicamente.

Charlotte vive, com dor, a discrepância que há entre suas realizações e seus ideais. Diferentemente de Bob, esse hiato permanece dentro dela a céu aberto, não sendo tamponado pelo cumprimento do ideal social. Ela vive, desse modo, um inquietante sentimento de dívida consigo mesma. Encontra-se aqui o ponto de inserção de seu temor de ser pedante.

Podemos então dizer que se Kelly vive e um estado mais próximo da mania, Bob e Charlotte apresentam um tom mais melancólico3, resultante do reconhecimento do Eu de estar aquém de seus ideais. Mas enquanto Bob se contenta em ser ator, cumprindo com o ideal social e vivendo sempre num interminável e entediante Japão, Charlotte sofre, pois ela quer terminar sua tradução, para poder circular pelo exótico e pelo cotidiano com maior vivacidade. Não é a toa que Sofia Coppola fez dela uma filósofa;4 ela cria enigmas, e se inquieta diante deles.

Para deixarem de perder-se na tradução, Bob e Charlotte terão de suportar perder, na tradução. Sabemos das queixas manifestas de cada um, e talvez elas indiquem a direção do que terá de ser perdido. Suportar as perdas narcísicas que acompanham as mudanças que ocorreram em suas vidas é o preço a pagar para levar a cabo a tradução, ultrapassando os impasses que vivem5. É preciso, então, que eles continuem visitando o Japão.

Evidencia-se aqui a importância da análise do analista, pois ele não pode temer o encontro com o estrangeiro. Mais ainda: é preciso que ele próprio ocupe o lugar de estrangeiro frente a seu paciente, para que possa ele ouvir em seu dizer novas ressonâncias, que o ajudem a levar adiante o seu processo de tradução. É do lugar do estrangeiro que se pode ouvir aonde falta a palavra. Às vezes, mais do que ouvir o estrangeiro, é preciso incitá-lo.

* Escrito e Dirigido por Sofia Coppola

 

BIBLIOGRAFIA

FEDIDA, Pierre. “Nome, Figura e Memória - A Linguagem na Situação Analítica”. São Paulo , Ed. Escuta, 1992.

FREUD, Sigmund (1896) “Letter 52” In: The Complete Psychological Works of Sigmund Freud, vol I, London : Hogarth, 1981.

________ (1914). “On Narcisism: an Introduction”. Vol XIV. Ob. cit.

________(1915). “Instincts and Their Vicissitudes”. vol.XIV, Ob. cit.

_________(1921). “Group Psychology and the Analysis of the Ego” Vol. XVIII, Ob. cit.

 

NOTAS

1 - Um exemplo da possibilidade de “domesticação” do estrangeiro se encontra em uma pequena passagem do filme, onde eles, juntos com seus modernos amigos japoneses, cantam God Save the Queen , do Sex Pistols , no karaokê .

2 - Aqui se entende porque Sofia Coppola a chamou de Kelly Strong

3 - A oposição mania vs. melancolia está também presente, de um modo atenuado, oposição entre Nova York e Los Angeles. Charlotte abandonou a primeira, mas não termina de se adaptar à segunda.

4 - O fato de Charlotte ser filosofa merece um pequeno comentário. Aristóteles se perguntou, no 4º AC, porque o filosofo era com freqüência um melancólico (Problema XXX). Freud, por outro lado, vê uma semelhança entre o filósofo e o paranóico, já que ambos constroem sistemas especulativos que explicam o real. Tanto na melancolia – assim como descrita por Freud – como na paranóia, há conflitos entre o Eu e o Ideal do Eu; em ambos, essa agência crítica se degrada e extrapola a sua atuação, tornando-se o algoz do Eu. E é a ação moderada dessa mesma agência crítica que permite que o sujeito estranhe a si mesmo e ao mundo, fazendo deles lugares enigmáticos que impelem o questionamento filosófico.

5 - Bob faz um chiste interessante em uma das cenas finais do filme, onde ele, parodiando as freqüentes trocas dos que os japoneses fazem ao falar inglês, do L pelo R, diz à Charlotte que ela deveria desejar-lhe um “ nice fright ” (no lugar de um “ nice flight” ). O vôo para casa é também um vôo terrorífico, pois implica em levar adiante o processo de tradução que se iniciou no Japão.

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