NARCISISMOS E IDENTIFICAÇÕES

Por Lucas de Almeida Nogueira

 

Acompanhando o lançamento do livro do Oscar Miguelez temos um texto sobre a relação entre narcisismo e identificações primários.

Nas Metamorfoses de Ovídeo, Narciso é um jovem orgulhoso que rejeita a ninfa Eco, que definha até a morte; a deusa Némesis então o pune, condenando-o ao conhecido destino de também definhar no lago, apaixonado por sua própria imagem. Narciso e Eco, sempre separados, mas juntos em história. A identificação e o narcisismo.

Ao ler “Sobre o Narcisismo: Uma introdução” (1914), a questão do investimento da libido sexual no ego parece ser a questão central, o foco dado por Freud, mas podemos ver como aos poucos uma construção econômica é derivada para o campo social, falando das escolhas sexuais dos homens e das mulheres, formas de organizações em relação aos seus objetos escolhidos que teriam ligação com padrões narcísicos. O ego aumenta de valor quando é investido de libido, da mesma forma como foi anunciado nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905). Esse aumento de interesse e investimento no ego acarretará aquisições e direcionamentos importantes para o sujeito, sendo coerente com esse investimento. Freud dirá que o sujeito terá duas opções de escolha objetais, como citado acima: a que seria coerente com o seu próprio ego (narcísica) e a que seria coerente com quem investiu nesse ego, quem cuidou e deu atenção a ele (anaclítica).  

Nesta segunda parte do texto Freud nos fala como essas escolhas objetais seriam manifestações mais características dos sexos, sendo a mulher que faria escolhas mais narcísicas e o homem mais anaclíticas. Independente da visão a respeito do investimento narcísico ser um funcionamento essencialmente feminino, ele nos coloca a questão de como isso pode ser interessante ao homem. Assim, ele inicia uma importante discussão a respeito do fascínio que mantemos por essas mulheres e por outras pessoas essencialmente narcísicas, para nos dizer que essa atitude de se interessar por pessoas narcísicas deriva de uma saudade do nosso próprio narcisismo. Algo chamado de coerência narcisista , onde apreciamos o estado fortalecido em que se encontram esses egos, que repelem qualquer coisa que os diminua e se mantêm num estado de espírito elevado.

O argumento do fascínio narcísico e da escolha anaclítica trará à luz uma discussão importante a respeito da origem de ambos os efeitos serem descendentes do nosso próprio narcisismo. Escolher alguém que investiu em nós é valorizar algo que nos é caro e logo é uma auto-valorização, assim como o interesse em manifestações narcísicas, porque valorizamos essa atitude mesmo depois de termos renunciado a ela parcialmente. Discussão importante porque tratará de remontar à forma pela qual fomos constituídos: os pais investem nos filhos com a realização de terem à sua frente um ser perfeito, o qual os permite revivenciar um estado de completude ao qual há muito tempo renunciaram em nome do contato com a realidade; esse investimento também só será possível através de uma relação de objeto com a criança, o que de certa forma afasta a libido do ego e por isso exige também certa renúncia.

Na terceira parte do texto Freud introduzirá um conceito interessante sobre a sublimação do eu-ideal, a forma como o ego admite fazer concessões à realidade, aceita não ser ideal enquanto pode perceber a perfeição em um ideal a ser seguido, e, assim, pode manter um investimento.

"O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era seu ideal”.

O que nos remete à necessidade de fazer concessões à realidade. A cada momento do texto percebemos como existe um conflito permanente - as concessões que o ego vai podendo fazer em nome do contato com os outros. A dificuldade estaria em poder fazer investimentos mais distantes do ego, escolhas objetais, e como isso formar um interjogo com o narcisismo. A importância desse conflito estaria numa pequena frase desse mesmo texto:

"No primeiro caso, contudo, é indiferente que esse processo interno de elaboração seja efetuado em objetos reais ou imaginários. A diferença não surge senão depois – caso a transferência de libido para objetos irreais (introversão) tenha ocasionado seu represamento”.

Para Freud é simples assim: o aparelho psíquico tem a função de descarregar a tensão, e o aumento de tensão então causaria um problema muito importante. Nesse caso ele nos apresenta de maneira simples como o contato com a realidade, o investimento em objetos reais, pode ajudar a liberar a libido de seu represamento. Essa questão tem muitas derivações importantes que não caberiam nesse pequeno trabalho, mas uma questão relevante para a discussão nesse momento seria o conceito de investir em objetos reais. Pensando freudianamente poderíamos pensar que existiria pouco sucesso (em liberar tensão) em investir apenas num objeto irreal; podemos pensar então que parte desse investimento libidinal no ego que insiste em ser feito é satisfatório porque é feito num objeto real. Mesmo fazendo escolhas objetais, elas devem se relacionar ao ego de alguma forma. Não existe outra opção de escolha objetal que não se relacione ao ego, e, assim, podemos pensar que esses objetos reais estariam mais relacionados à realidade narcísica do que à chamada realidade externa; sem entrar na complexa relação do ego com a realidade podemos ao menos pensar que o investimento constante em si segue a linha da coerência interna e não a linha de um "egoísmo libidinal".

A identificação não aparece na obra freudiana em um artigo próprio como o narcisismo, mas ganha cada vez mais um destaque significativo no funcionamento psíquico. Mais do que um mecanismo psicológico, a identificação é a operação pela qual o sujeito se constitui, como vemos em Laplanche:

"A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações" (J. Laplanche, Vocabulário de Psicanálise, pág 226).

Antes de surgir de forma organizada no “ Psicologia das massas e análise do eu” (1921) , a identificação já tinha feito aparições na obra freudiana, como sinônimo de imitação e cópia nos “ E studos sobre a histeria” (1895) e como sinônimo de deslocamento na “ Interpretação dos sonhos” (1900) . Mas é apenas na “ Psicologia das massas e análise do eu ” (1921) que ao processo é dado um valor real, onde a relação com os outros entra em jogo e o simples investimento em outras pessoas não é suficiente para explicar as relações; é necessário um mecanismo mais simples de se "usar" (para o sujeito), a identificação.

As identificações, assim conhecidas por serem de origens e destinos diferentes, como no mostra Jean Florence, oferecem muito material a ser pensado e trabalhado a respeito das funções e mecanismos usados por esse processo que comumente chamamos de identificação. Para que possamos trabalhar o assunto da relação de uma identificação com uma forma de narcisismo, precisamos primeiro definir com qual conceito de identificação trabalharemos. A identificação aqui pensada será a vista como processo de formação do eu (como citado acima por Laplanche) e seu resgate regressivo - a identificação como fuga da perda do objeto através da regressão libidinal ao investimento no ego. Freud nos diz que a identificação é a primeira forma de laço com o objeto. A primeira forma que o eu tem de se relacionar com algo é engolindo-o, assim como faz com o leite: ele absorve o objeto e o integra em si, trazendo-o para dentro do eu. Esse mecanismo será usado pela criança para montar seu eu, e posteriormente ela utilizará do mesmo mecanismo para se relacionar se identificando com quem gosta (identificação secundária) e com elementos que contenham formações em comum (identificação histérica). A identificação servirá como forma de proteger o ego do esvaziamento libidinal, mantendo os investimentos em objetos externos mas ainda assim internos ao ego. Assim, o ego não fica desinvestido, e nessa linha podemos começar a falar das relações da identificação com o narcisismo. 

O eu, como podemos perceber, necessita do contato com o outro para poder se formar. Inicialmente, através de uma identificação primária, ele incorpora características externas ao seu ego e as mantém e dá sentido através de um investimento que faz no seu eu primitivo. O primeiro investimento que ele faz é conhecido como narcisismo primário. O investimento da mãe em alguém que ela vê na figura do bebê é a fagulha necessária para dar inicio a esse processo.

O outro é peça necessária na formação do que chamamos de um eu, tanto como modelo identificatório quanto como modelo de relação. O bebê não está preparado para perceber sozinho o seu corpo e necessita de alguém que o manipule e o veja integrado para que ele consiga desenvolver esses elementos dentro dele. De qualquer forma, ainda podemos supor a existência de mecanismos preparados para perceber e desenvolver um ego. Não se trata de uma suposição de um ego inicial, mas de perceber, através do modelo oral, que com o sugar o bebê aprende a incorporar características; essas características necessitam de um destino, de um "para onde", e essa deixa é utilizada pelos mecanismos latentes do bebê para ajudar-lhe a formar um eu.

Podemos pensar nesse paradoxo de forma cronológica e assim eliminamos a conflitiva tão acentuada. O contato com o outro seria essencial para se conhecer como ser, e nesse caso estamos nos referindo a “Sobre o Narcisismo: Uma Introdução” (1914), ao outro como formador do eu. Após formado o eu, o outro seria uma ameaça, já que exibe novas formas de ser que não podem ser absorvidas sem que se deixe de ser quem é. Análogo ao jogo de sinuca, as bolas não são de ninguém até que uma caia na caçapa, quando então são divididas entre suas e não-suas, de modo que as não-suas passam a ser uma ameaça à supremacia das suas. Nessa analogia, assim como no desenvolvimento freudiano da função do ser nesse início da vida (e podemos supor que de certa forma sempre será assim), ser algo é essencial, e uma vez que é alcançado algum tipo de existência ela é investida por fortes forças que a protegem.        

Aproximando os conceitos  

A primeira linha de associação entre os conceitos desenvolve a idéia de agressividade inerente ao narcisismo, conceito que é desenvolvido em outros termos e funções mas com igual importância no “ E stádio do espelho”, de Lacan. O complexo texto de Lacan mostra como esse período mítico de formação do eu pode ser entendido por processos narcísicos e identificatórios ao mesmo tempo, e nos mostra como esse investimento não vem sem um preço: o de ser um eu formado por um outro. Assim, a agressividade em relação à sua gênese e permanência se originariam dessa relação. De forma mais simples podemos pensar que gostar de si é o mesmo que não gostar do outro, inicialmente porque o outro é uma ameaça à própria soberania, e também porque o investimento no outro necessita de um dispêndio de energia que não será investida no ego.

A idéia da transformação do ter em ser pela identificação nos traz o ponto de convergência entre esse processo e o narcisismo, como podemos ver na melancolia conforme descrito por Freud em “Luto e Melancolia” (1917). O investimento em objetos interiores ao ego é mais fácil de manter do que os investimentos em objetos exteriores ao ego. Por mais que a escolha anaclítica de objeto possua uma raiz narcísica, ela ainda é mais dispendiosa de ser feita do que uma escolha narcísica em si.

Assim, a identificação exige uma dose de investimento no próprio ego, para vê-lo de maneira maior, e esse investimento é feito com a energia que antes pertencia à ligação com o objeto com o qual se está identificado. Na fase mítica de formação do ego estaríamos num emaranhado de identificação e narcisismo primários, um apoiando o outro. 

A renúncia parental em investir no filho pode então ser recuperada através de uma identificação que eles fazem com o filho. A criança é imaginada como adendo do ego, uma continuação de si, o que muitas vezes é anunciado abertamente sem a consciência de sua profundidade. Essa percepção do filho como continuidade irá fazer com que ele seja visto com muitos significados, que originalmente pertenciam apenas ao ego da mãe e do pai, e esses significados permitirão que a criança possa ver algo nos olhos deles e consequentemente se formar como sujeito. Assim, a criança vê na verdade os próprios pais identificados com ela, e ela se identifica com essa percepção formando um eu.

Existe um tema que está presente a todo momento, que é a manutenção do investimento em si. Freud nos deixa claro na seguinte frase a dificuldade que existe em abrir mão de auto-investimentos.

"Como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação que outrora desfrutou." (S. Freud, “Sobre o Narcisismo: Uma introdução”, pág 100)

A satisfação, como vimos, é mais forte quando a relação em questão está ligada ao ego. Quanto mais próxima a ligação estiver do eu, mais fácil será desfrutar de tal relação. Dessa forma podemos perceber como o tema do narcisismo deve ser recorrente em uma observação detalhada do homem, porque é uma satisfação da qual ele dificilmente abre mão; as ferramentas usadas, como a identificação, são tão importantes quanto o próprio narcisismo, no sentido que nos permitem observar seu funcionamento mais profundamente.

e-mail: lucasdealmeidanogueira@gmail.com

 

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