O MERCADO E A MORTE DE DEUS

Uma contribuição psicanalítica

por Maria Luiza Scrosoppi Persicano

 

O pensamento radical se propõe à árdua tarefa de constantemente dar-se conta de que em tudo o que dizemos, definimos e explicamos está um não dito, não definido e não explicado.
Leonardo Boff1
INTRODUÇÃO

Este texto não tem a intenção de ser propriamente um texto psicanalítico, mas um ensaio de reflexão a respeito de três temas que se imbricam: a ecologia do planeta, a economia de mercado e as visões histórico-filosóficas e teológicas a respeito de ambos. Tentarei dar uma breve contribuição da psicanálise para o assunto,

Primeiramente tive a idéia de escrever este ensaio a partir de conversas com psicanalistas formados e em formação psicanalítica, sobretudo quando me perguntavam se, ou afirmavam que, um psicanalista não pode nem deve acreditar em Deus para ser um bom psicanalista. Não sei responder a esta questão, qualquer resposta me pareceria demasiado subjetiva e arrogante, nem sei se cabe a um psicanalista respondê-la de qualquer modo, mas eu passei a refletir a respeito destas questões a partir daquelas disciplinas que apontam, no meu entender, para o relativismo teórico da pergunta ou afirmação sobre o psicanalista e Deus.

Este artigo objetiva um breve olhar psicanalítico por sobre uma rápida reflexão interdisciplinar em torno do tema de Deus e como ele se mimetiza sob outras formas na sociedade pós-moderna, o que, na verdade, exigiria, em ocasiões futuras, aprofundamentos dos aspectos teológicos, filosóficos, históricos, políticos e econômicos aqui apenas apontados.

Vou iniciar por um tema aparentemente lateral, mas que articula bem estas questões: a discussão ecológica. Os psicanalistas em geral se preocupam com questões que dizem respeito ao ser humano como sujeito individual ou como grupos, e deixam para outras áreas do conhecimento a preocupação com as questões ecológicas do planeta assim como o fazem com questões relativas à transcendência de um Princípio ou Deus. Considero de relevância lançar este olhar psicanalítico por sobre o tema ecológico, e penso, na medida do possível, imbricá-lo tanto com algumas questões filosóficas e teológicas a respeito da transcendência de Deus, como com a questão da “morte de Deus2” no século XIX, que ocorre, de um lado, a partir do racionalismo e iluminismo na filosofia do século XVIII e, de outro, da revolução industrial do século XIX, do domínio da tecnologia e da economia de mercado do século XX, que conduzem à idéia da ascensão do que vejo como um novo Deus no firmamento do ideário humano, o Deus Mercado.

 

A AMEAÇA À ECOLOGIA DO PLANETA TERRA: O DEUS MERCADO.

Este é um tema da pós-modernidade, cada vez mais recorrente. A humanidade tem estado ameaçada de autodestruição nos últimos decênios, e muito menos pelos perigos de explosão nuclear, da bomba atômica e sua posterior variante bomba de nêutrons, que nos acompanharam durante a Guerra Fria de 1960 a 1990, ou pelos perigos de uma arma bacteriológica que se acrescentaram a partir da década dos anos noventa a nos assombrar nestes tempos atuais das guerras terroristas, ou pela mais nova e recente bomba a vácuo. Muito mais significativas são as ameaças de autodestruição através da degradação progressiva, em ritmo acelerado, imposta por nossa ciência e tecnologia ao meio ambiente da casa desta humanidade, o planeta Terra, desde que ambas, ciência e tecnologia, se concentraram em atender ao Mercado e à economia regida por ele, no sucesso que este tem em prometer realizar a satisfação dos desejos humanos indefinida e ilimitadamente. Há uma negativa em fazer um movimento contrário à morte lenta de nosso ambiente vital, de dar marcha-ré nos mecanismos econômicos que provocam a crise ecológica do lar Terra. Parece que um novo Deus denominado Mercado, tão poderoso sobre os destinos humanos, com seus mandamentos de economia de mercado, rege a tudo e a todos com suas leis inelutáveis, primeiro no ocidente, depois no oriente, até em ditaduras, e, sobretudo, nas democracias, colocando-as em cheque.

Quanto a isto lembro Saramago3:

 

Todos sabemos que é assim, e, contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos fatos, continuamos a falar de democracia como se tratasse de algo vivo e atuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica . E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos, portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder econômico, com a objetiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas nos açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos , salvo as certas conhecidas minorias eternamente descontentes...

Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute.4

Este trecho de Saramago estaria denunciando uma generalizada ditadura do Mercado no sistema democrático. Mais que ditadura de mercado, vejo aí a presença de um novo Deus. E não deve ser um acaso que este novo Deus Mercado se especializa na publicidade, já que foi a publicidade, nas origens do cristianismo – o propagare (disseminar uma idéia) de Jesus e seus apóstolos e o publicare (colocar exposto) dos evangelhos - o que estabeleceu, no universo dominante da época, a religião cristã com seus fundamentos éticos e mandamentos de fé e de conduta. E foram as mesmas, propaganda e publicidade, que no século XX se constituíram no principal instrumento de implantação da ditatura nazista. Entretanto o que me interessa neste artigo não é dicutir o estatuto da democracia, apenas o Deus Mercado.

A ditadura do Mercado possui líderes seguidores deste novo Deus da humanidade, depois que o Deus das religiões monoteístas, sobretudo do cristianismo, foi declarado morto pela filosofia ante o domínio da ciência e da tecnologia. A teologia monoteísta considera o fenômeno do Mercado uma crença idólatra. Um ídolo5 (espectro, imagem, falsa divindade) é, originalmente, um objeto de adoração que representa materialmente uma entidade divina e a ele são associados os poderes sobrenaturais da divindade. No meu entender o fenômeno é muito mais do que isto. Não temos uma questão apenas de crença idólatra, temos o estabelecimento de uma nova religião seguidora de um novo Deus: o Deus Mercado. Os ídolos, que apenas participam da corte do Deus Mercado , foram constituídos pela aplicação tecnológica da ciência: divindades de aço, concreto, plástico, tecido e papel... E, acima de todos os ídolos, a idolatria do óleo negro e dos meios potentes dele resultantes e a idolatria do papel moeda, que pode oferecer o acesso a todo o poder e toda posse. Uma elegia narcísica de um super-homem detentor de um saber e um poder sem fim sobre o mundo e a natureza.

Penso que cabe ao psicanalista, a partir de sua área de conhecimento, verificar se este fenômeno da economia de mercado pode ser compreendido pela psicanálise como uma nova religião com um novo Deus, o Deus Mercado, entronizado após a “morte de Deus”. No meu entender sim, e procurarei, no transcorrer do texto, apontar algumas articulações com as teorias do narcisismo libidinal e a psicologia das massas de Freud67, da teoria do superego arcaico de Klein8 e do narcisismo destrutivo de Rosenfeld910.

A ecologia está mais que ameaçada, está grandemente comprometida. Os efeitos da emissão de dióxido de carbono e de óxidos nítricos aumentaram exponencialmente e, paralelamente, o aquecimento global, com o aquecimento dos mares e o derretimento das geleiras, as secas e incêndios de florestas. Nada impede o homem de desmatar para o cultivo, a pecuária, ou pior, para construir sua moradia, uma cidade ou uma indústria. A conseqüência é a degradação da biosfera: a poluição pelos resíduos sólidos, a poluição radioativa, a poluição sonora, a poluição visual, a poluição térmica, a poluição atmosférica, a poluição química (como pelos pesticidas) e a poluição das águas continentais e oceânicas. Ainda a destruição dos habitats altera teias e cadeias alimentares nas espécies, que acabam ameaçadas de serem extintas ou têm seu processo evolutivo e seu habitat alterado, por exemplo, os insetos tropicais que se multiplicam descontroladamente na Europa. Para fazer um arrolamento das conseqüências que a atividade humana na economia de mercado provoca no planeta, a tarefa tornar-se-ia infinita.

Há, porém, um fator que não se pode esquecer com potencial extraordinário de construir ou de destruir: a consciência universal, que pode ou não mudar seus paradigmas. E como a psicanálise poderia se eximir e se excluir desta tarefa de mudança de paradigmas quando tem em seu bojo teórico uma das mais fecundas teorias que trata da pulsão de destruição e morte e da pulsão de construção e vida no ser humano?

Os problemas do planeta já são cada vez mais evidentes ante o impacto da multiplicação do homem e da ação humana. Conforme estes problemas são interpretados determinam formas específicas de enfrentamento dos mesmos. E as linhas de interpretação têm seguido três vertentes diferentes11.

A primeira vertente interpretativa é a compreensão biocêntrica. Nesta perspectiva o ser humano não é senhor de coisa nenhuma, é apenas administrador, e tem se mostrado péssimo administrador da natureza. A natureza aparece não em função dos seres humanos, mas tem um sentido próprio, pois precede o ser humano. Ela não se destina de maneira imediata para a utilidade humana. E os problemas ecológicos não só apontam para o relacionamento indevido do homem com a natureza e seus outros seres, mas, sobretudo, para a incapacidade de relacionamento dos humanos entre si. Remete à destrutividade do homem para com a natureza e para consigo próprio. Na maior parte do tempo, está presente o princípio da transcendência de um Princípio Criador ou de um Deus: a natureza e o homem expressam a glória da criação ou a glória de Deus.

A segunda linha de interpretação dos problemas do planeta é a do pensamento antropocêntrico. Nesta a natureza aparece em função dos seres humanos, nela há como convicção de fundo que o homem pode e deve se assenhorear de tudo o que existe para progredir como espécie e utiliza o progresso da ciência e tecnologia para este fim. Apoiada no racionalismo tecnológico, responde pela “morte de Deus” e ignora o transcendente, crê no progresso infinito, colocando a economia de mercado como um termômetro da satisfação das necessidades humanas, infinitamente recriadas, que a ciência e a tecnologia devem atender. Estas e a economia de mercado promoveriam o progresso, o que resolveria todos os problemas.

A terceira interpretação é social dialética. A antropológica desmistificou as forças misteriosas que estariam na condução dos destinos humanos. A biocêntrica desmistifica o racionalismo e seus efeitos deletérios, recolocando um Princípio criador em pauta, algumas vezes um Deus ou Princípio Universal Transcendente. A social dialética busca articular entre si as duas primeiras interpretações. Afirma que as relações dos humanos com a natureza e com outros humanos nunca foi um cosmos parasidíaco, sempre foi, desde o início, um caos de forças contrastantes como o próprio mundo. E que o homem se utiliza de dois tipos de proposituras extremas ante o caos originário: o da dominação do outro e do ambiente por meio de relações agressivas e exploratórias, de um lado, e a busca e a conquista de uma fraternidade tolerante, de outro. E ambas, então, se aproximam da compreensão psicanalítica. Nesta interpretação, nem Deus precisa estar morto por homens-deuses, nem tudo precisa ser pela glória de um Deus.

DEUS

São vários os assim denominados textos sagrados. Os textos sagrados12 são textos monoteístas que acompanham a história da humanidade: o Bhagavad - Gita de Krisna, dos vaishnavas; o Tanakh e o Talmud , dos judeus; o Zend Avesta , de Zoroastro, dos zoroastrianos; a Bíblia , dos cristãos, com seus Antigo e Novo Testamentos (Evangelho); o Alcorão , dos muçulmanos; o Guru Granth Sahib , dos sikhs; o Bayan Persa , dos babis; o Kitáb-i-Aqdas , dos bahá'ís.

A partir destes textos monoteístas, Deus13 é conceituado como Ser Supremo, único, onipotente, onipresente e onisciente, portanto dotado de entendimento e de vontade, infinitamente perfeito que existe por si mesmo - porque de ninguém recebeu a existência, ninguém o fez - e de quem todos os outros seres recebem a existência. É o único Ser necessário que existe desde toda a eternidade, sempre existiu e sempre existirá. Deus é Aquele que é .

Há ainda os textos de religiões com várias divindades, que são religiões que crêem em vários seres extranaturais, que são superiores ao ser humano e sua natureza, usualmente têm poderes significantes e são imortais, assumem as mais variadas formas (frequentemente antropomórficas ou zooomórficas; masculina, feminina ou neutra), são cultuadas como divinas e respeitadas pelos humanos. Elas são, muitas vezes, identificadas com os fenômenos naturais, com virtudes ou vívios humanos ou ainda com atividades inerentes aos humanos. Possuem personalidade, consciência, intelecto, desejos e emoções como os homens. Presidem a vida, o destino e o cotidiano dos seres humanos. Algumas delas têm a atribuição de dar à humanidade leis civís e morais, assim como de serem os juízes de valor da conduta humana. É o caso de várias mitologias: a mitologia egípcia, a grega, a nórdica, a de umbanda, a religião induísta. Na maioria destas religiões com várias divindades temos a construção de ídolos. Do ponto de vista psicanalítico são claramente projeções de aspectos humanos idealizados ou temidos. Os poucos textos existentes de religiões politeístas não foram escritos como livro de síntese teológica; constituem uma das principais fontes para o estudo e compreensão da religião a que se referem, mas não são considerados textos sagrados.

Mas o que é mesmo um texto sagrado? Isso é o que nos interessa para um olhar psicanalítico. Um texto sagrado é sempre monoteísta. Não é considerado um tratado do homem a respeito de Deus14, não se afasta e nem se distancia do objeto, não fica no lugar do observador que descreve um objeto de estudo, não é uma fala entendida como uma fala a respeito de Deus, nem nos convida a falar dele. É entendido como a própria fala de Deus. Mas esta fala de Deus também não é a fala de Deus a respeito de si próprio, é uma fala de um Deus para o homem. É uma fala do que Deus espera do homem, de suas leis que devem ser seguidas pelo homem e que convida o homem a ouvi-lo e a responder-lhe confessando-lhe a sua glória sobre o homem e sobre o universo e servindo-lhe a seus propósitos. Um ponto certo é que ninguém jamais viu Deus e que os humanos que ouviram sua fala foram considerados como personagens escolhidos por ele para testemunhar, transcrever, transmitir sua vontade na terra ao povo de seu tempo.

Portanto, em termos psicanalíticos, embora ninguém jamais tenha visto a Deus, temos que considerar que existiu com freqüência, e continua existindo, uma experiência psíquica de ter ouvido a fala de Deus. O homem se relaciona com Deus assim, ouvindo sua voz e sua fala, no mesmo molde das mesmas relações que o Eu tem com o Supereu e com o Ideal de Eu. Mas essa experiência religiosa é psíquica e, por isto, permanece em sua dimensão de realidade. É, assim como a fantasia15 em psicanálise, uma realidade psíquica indiscutível, que do ponto de vista do eu, acaba por ser mais real do que o assim chamado mundo objetivo.

O termo Deus, portanto, designa a idéia de um ser supremo, infinito, perfeito, criador do universo, que seria a causa primária e o fim de todas as coisas. O sagrado princípio. Mas não é o conceito de Deus, nem a proposição Deus existe, o que afirma o crente em Deus. O crente em Deus apenas afirma sua experiência íntima, psíquica. O crente afirma e reconhece que Deus é Deus, através da experiência íntima de um diálogo com Deus , experimentado como o primeiro interlocutor do homem, como aquele que amou primeiro o homem.

Esta experiência é um dado, um fato que merece a nossa atenção, com título igual ao do fato científico, da criação artística [...] Recusar a priori tomá-la em consideração, seria prova dum dogmatismo absolutamente inconciliável com as exigências do saber autêntico e verdadeiro.”16

Deus, então, é uma experiência intrapsíquica de alteridade do eu humano e da espécie, uma realidade intrapsíquica, para a explicação psicanalítica. É, como tal, experienciado como fato por um Eu. E então não cabe à psicanálise discordar a priori da experiência de Deus por parte de qualquer sujeito humano, como de quaisquer fatos psíquicos; apenas necessita buscar estudá-la como inerente ao psiquismo humano, assim como as artes e as ciências. E não considerá-la apenas do ponto de vista da psicopatologia. Como não deve o psicanalista fazer tal reducionismo à psicopatologia quando, por fora da situação analítica, tenta aplicar os conhecimentos da psicanálise para a compreensão da arte e da ciência, não deve fazê-lo para com a religião e a experiência religiosa.

Quanto ao psicanalista: se o psicanalista não puder ter uma experiência intrapsíquica que lhe dê uma experiência de Deus, dentro do que a psicanálise entende como subjetividade, deveria também se concluir que o psicanalista não poderia criar obras de arte que expressassem as angústias arcaicas e o superego tirânico. Alguns argumentariam a favor da sublimação na obra de arte, e muitos trabalhos existem nesta direção. Por que não estudar mais a experiência religiosa delimitada como tal, enquanto experiência intrapsíquica do Eu? E na experiência artística, também não falta um estudo psicanalítico dela em si mesma? Por que só estudamos o produto da obra de arte? Bem, das religiões nos omitimos até de olhar o produto! Que não deixa no mínimo de ser criativo. Quanto mais de olhar com seriedade para a experiência religiosa.

A MORTE DE DEUS

A partir de 1870 forma-se o espírito do fim do século XIX, em que o “Deus está morto”17 de Friedrich Nietzsche traz consigo um acontecimento cultural que é o fim dos fundamentos transcendentais da existência, o fim da transcendência do espírito sobre a matéria. Engels dizia18:

E quanto mais isso seja uma realidade, mais os homens sentirão e compreenderão sua unidade com a natureza, e mais inconcebível será essa idéia absurda e antinatural da antítese entre o espírito e a matéria, o homem e a natureza, a alma e o corpo, idéia que começa a difundir-se pela Europa sobre a base da decadência da antiguidade clássica e que adquire seu máximo desenvolvimento no cristianismo.

(Friedrich Engels, 1876).19

Também é o fim da transcendência de Deus como uma justificativa e fonte de valoração para o mundo, tanto na civilização quanto na vida das pessoas, mesmo que estas não possam admitir isto, diz Nietzsche20.

Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste ato não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda história até hoje!21.

O parágrafo é uma constatação feita por Nietzsche a partir da qual ele traçará seu projeto filosófico de o homem superar Deus e as dicotomias presentes nos preconceitos metafísicos que julgam nosso mundo - na opinião de Nietzsche o único mundo existente – a partir de um mundo superior e além deste.

É uma frase profética no meu entender esta de Nietzsche. É como, hoje, vê a si mesma toda a sociedade da economia de Mercado, hoje em dia, uma sociedade de história superior a toda história até hoje.

Noutro tempo, também Zaratustra projetou a ilusão para além do homem [...] Obra de um Deus sofredor e atormentado afigurava-se-me o mundo. [...]

Este mundo eternamente imperfeito, imagem, também imperfeita, de uma eterna contradição __ inebriante prazer de seu perfeito Criador __, tal parecia-me, noutro tempo, o mundo.

Assim, também eu, noutro tempo, projetei a minha ilusão para além do homem, tal como todos os transmundanos. Mas para além do homem, realmente?

Ah, meus irmãos, esse Deus, que eu criava, era obra humana e humana loucura, como todos os deuses!

Homem era ele, e nada mais do que um pobre pedaço de homem e do meu eu; surgia em mim da minha própria cinza e brasa, em verdade, esse fantasma! Não vinha a mim do além!

Que aconteceu, meus irmãos? Sofredor, superei a mim mesmo, levei a minha cinza para o monte e inventei para mim uma chama mais clara. E, eis, então, que o fantasma desapareceu!22

A morte de Deus é metáfora23 do fato de os homens não serem mais capazes de crer numa ordenação cósmica transcendente, o que os levaria a uma rejeição dos valores absolutos e, por fim, à descrença em quaisquer valores, mas que ainda os homens manteriam uma “sombra”, um trono vazio, um lugar reservado ao princípio transcendente agora destruído que não podem voltar a ocupar. Para Nietzsche, seria tarefa da Filosofia um projeto de estabelecer novos valores em base naturais e imanentes, evitando o niilismo, o relativismo e a descrença decorrentes. Estes novos valores deveriam abrir o caminho para novas possibilidades humanas, o homem reconheceria o valor deste mundo, assumir a liberdade humana, tornando os próprios homens deuses. Todos aqueles que, dizia Nietzsche, não pudessem enfrentar tal responsabilidade, que seria a maioria, continuaria a necessitar de regras e de autoridades dizendo o que fazer e como julgar e como ler o mundo. A conclusão direta é que seriam inferiores.

Assim, esta filosofia traz também consigo a conclusão do homem como o substituto de Deus que é o homem-deus, o “super-homem”24:

Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?

Todos os seres, até agora, criaram algo acima de si mesmos; e vós quereis ser a baixa-mar dessa grande maré cheia e retrogradar ao animal, em vez de superar o homem?

Que é o macaco para o homem? Um motivo de riso ou de dolorosa vergonha. E é justamente isso o que o homem deverá ser para o super-homem: um motivo de riso ou de dolorosa vergonha. [...]

Vede, eu vos ensino o super-homem!

O super-homem é o sentido da terra. Fazei a vossa vontade dizer: ‘que o super-homem seja o sentido da terra!'

Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas! [...]

Outrora, o delito contra Deus era o maior dos delitos; mas deus morreu e, assim, morreram também os delinqüentes dessa espécie. O mais terrível, agora, é delinqüir contra a terra e atribuir mais valor a entranhas do imperscrutável do que ao sentido da terra!25

Este é o homem forte, liberto das convicções religiosas, liberto de todas as convenções burguesas, é o homem cínico, o homem que substituiu o seu criador, o homem-deus. Esta filosofia foi utilizada pelos nazistas como argumento ideológico, conduzindo ao delírio coletivo do super-homem que os nazis procurarão criar. O homem-deus que tem o poder sobre a vida e a morte dos outros homens. E que, por isto, exerce um fascínio de completude narcísica. Algo que parece começar como libertação do amor por si mesmo da aprovação do Supereu Interditor e do Ideal do Eu, colocados até então em Deus, após a morte do pai divino. Na tentativa de centrar o poder em si mesmo, controlar os destinos da própria existência, o homem resvala e retorna ao amor de si mesmo por si mesmo do narcisismo primário, num estado de Eu Ideal. Passa este eu a se sentir uma majestade-deus, e se revela narcisismo destrutivo26, que se centra no domínio da fusão patológica em que a pulsão de morte determina os destinos da pulsão de vida, dominando a rejeição em aceitar seu estado de dependência levando ao desligamento libidinal dos objetos. E, com isto, vinte milhões de homens morrem pela vontade de um só. Após o assassinato do Deus pai, o homem não consegue construir a fraternidade entre irmãos na sociedade, constrói apenas uma fratria de super-homens a dominar homens inferiores.

E, hoje, sessenta anos após a derrota o nazismo, eis que o homem-Deus sobrevive e está instalado no homem-senhor detentor da autoridade do racionalismo científico e dos poderes da aplicação tecnológica da ciência sobre a natureza e sobre os outros homens. Este novo Deus está instalado na economia de mercado.

A morte de Deus? Deus morreu? Acho que não, e que a idéia de Deus e a crença em um Deus nunca morrem nem morrerão na mente humana, quer este seja ou não o Deus monoteísta, ou apenas divindade-ídolo, pois sempre em algum lugar o homem vai procurar e encontrar este algo divino que lhe dê garantias de protegê-lo e de completá-lo em suas limitações narcísicas. Um Deus onde projetar-se o que se desejaria ser de completude e potência narcísicas. Nem que seja encontrar um Deus em si próprio, na própria sociedade, nas próprias produções, no racionalismo científico e até mesmo na psicanálise.

 

O RACIONALISMO E A ECONOMIA DE MERCADO.

O espírito encontrado no final do século XIX só pode ser entendido a partir das mudanças que ocorreram n a segunda metade do século XVIII , em que surge um movimento intelectual denominado i luminismo27 ou esclarecimento, o qual colocava ênfase na razão e na ciência como formas de explicar o universo . Este movimento deu o nome ao século como o “século das luzes” e foi um dos impulsionadores da revolução industrial, do capitalismo e da sociedade moderna. Obteve rápida e ampla influência nas mentalidades nos países protestantes e lenta porém gradual influência nos países católicos. O capitalismo surge com a revolução industrial, iniciada na Grã-Bretanha na metade do século XVIII e com as chamadas revoluções burguesas, marcadamente a revolução gloriosa inglesa, a independência dos EUA e a revolução francesa. O capitalismo e a revolução industrial, junto com a democracia, se expandiu pelo mundo a partir do século XIX . Porém, o capitalismo remonta mais atrás, à expansão da economia-mundo durante o renascimento, época em que o homem retomou o pensamento da antiguidade e passou a se centrar nele mesmo celebrando o ser humano, começando a deixar a religião e Deus para fora do foco de seus interesses.

De fato, é em seguida ao renascimento que há uma mudança de paradigma nas mentalidades do século XVII a meados do século XVIII, que vai ser o surgimento do sujeito do conhecimento. A filosofia passa a começar sua tarefa, não mais por conhecer a natureza e a Deus, para só a seguir se referir ao homem, mas passa a iniciar pela indagação a respeito da capacidade do intelecto humano para o conhecimento e para a demonstração da verdade dos conhecimentos28. O ponto de partida é a reflexão, a volta do pensamento sobre sí mesmo para conhecer sua própria capacidade de conhecer. Este sujeito do conhecimento é a consciência reflexiva de si, a consciência que conhece sua capacidade de conhecer. Neste período da idade moderna, temos o racionalismo29, a corrente filosófica que considera a razão como a essência do real (realismo filosófico), sustentando a primazia da razão (da capacidade de conhecer, de pensar, de raciocinar) em relação ao sentir e à vontade em relação ao corpo. O racionalismo assume a posição de que só a razão pode propiciar a análise científica, portanto, o desenvolvimento das ciências e, em conseqüência, da técnica.

É próprio da razão tornar tudo trans-lúcido e racional, dar razões a todas as coisas e resolver todos os problemas. A razão não se detém diante de nenhum enigma. Quer esquadrinhar tudo. Não o conseguindo sofre. O sofrimento gera outras forças de conhecimento. Razão é essencialmente poder. Por isto a razão não tolera um poder que possa escapar a seu domínio. Ela é luz; não suporta as trevas que se subtraem ao seu influxo30.

Assim a razão não tolera Deus. Ocorre, a partir de então, uma crescente fé na capacidade do intelecto humano isolar no real a sua essência através da razão. Uma crença se espalha de que a razão constitui o instrumento fundamental para a compreensão do mundo, cuja ordem interna é entendida também como racional, o que o homem acaba experimentando como sendo confirmado pela ciência e pelos avanços técnicos na aplicação da ciência. Com a pós-modernidade, sobretudo na segunda metade do século XX e nestes primórdios do século XXI, temos a dominância do conhecer como poder sustentando toda a vida social e pessoal.

O sentido latente que sutenta nosso mundo atual é entender o ser e a vida como conhecer, e o conhecer como poder. Isso não possui nada de estranho. Parece muito natural. Realmente o seria, se o homem não fizesse do conhecer e do poder a última instância de tudo e o critério de verdade e a base de relacionamento entre os homens. A razão que conhece não ficou apenas razão: foi transformada em racionalismo. A vontade que pode não permaneceu apenas vontade: degenerou em vontade de poder como dominação dos outros. Aqui reside o drama estrutural que permeia toda a tecedura do homem moderno que surgiu quando [...] emergiu a razão com seu poder de dis -cursividade e de dis -cernimento31.

Neste caldo se inserirá o capitalismo32 e a economia de mercado que o caracteriza. O capitalismo é um sistema de organização de sociedade baseado na propriedade privada dos meios de produção e da propriedade intelectual, e na liberdade de contrato sobre estes bens (livre mercado). É o conjunto de atitudes econômicas que ocorrem naturalmente em uma sociedade que respeita a propriedade privada e a liberdade de contrato, pois quando as pessoas são sujeitas a estas condições, elas, buscando a satisfação de desejos e/ou necessidades, tendem espontaneamente a dirigir seus esforços no sentido de acumular capital, o qual é então usado como moeda de troca a fim de adquirir o serviço ou produto desejado. O nome capitalismo informa diretamente uma das principais características imanentes, que é o acúmulo de capital. Embora nenhum indivíduo seja obrigado legalmente a acumulá-lo , é motivado a desejar fazê-lo pela publicidade e propaganda (publicar e propagar).

O que rege e sustenta o sistema capitalista é, portanto, o mercado. Este último é definido

...como sendo as atividades sistemáticas de uma organização humana voltadas à busca e realização de trocas para com o seu meio ambiente, visando benefícios específicos. O núcleo desta definição é a idéia de troca ou intercâmbio de quaisquer tipos de valores entre partidos interessados [...] Para que isto ocorra, deve haver o intuito de continuidade no processo de trocas entre partidos, ou seja, ela deve ser ao mesmo tempo intencional, sistemática, e voltada a uma expectativa de resultados previsíveis, sejam eles quantificáveis ou não.33

O mercado nesta definição é, assim, mecanismo ou processo social que permite a realização de trocas de mercadorias entre as pessoas, que podem envolver objetos tangíveis (como dinheiro e bens de consumo) e intangíveis (como serviços e até idéias). O mercado é regulado por leis, como a lei da oferta e da procura , é a lei que estabelece a relação entre a demanda de um produto (em linguagem psicanalítica o quanto ele é desejado) - isto é, a procura - e a quantidade que é oferecida (o quanto o que é desejado está disponível) - a oferta. Economia de mercado, economia de livre mercado ou de livre iniciativa é aquela que depende do mercado, ou seja, das interações entre compradores e vendedores para alocar recursos, em que todas as ações relativas à transferência de dinheiro, bens e serviços são ditas voluntárias , mas o cumprimento de contratos voluntários é, contudo, obrigatório. Neste sistema a propriedade privada é protegida pela lei e ninguém pode ser forçado a trabalhar para terceiros.

Aqui já percebemos o quanto a economia de mercado é constituída a partir da determinação do desejo e da realização pela fantasia, pois se estrutura visando a busca do ser humano em encontrar satisfação substituta para o desejo inconsciente nunca satisfeito de plenitude e completude, por meio da artimanha do psiquismo humano de desejar e conseguir posse sobre objetos substitutos de satisfação, alguns tangíveis, outros intangíveis. Como o desejo é inesgotável e a posse destes objetos dá uma concretude à satisfação do narcisismo primário, ou seja, à satisfação libidinal mais primitiva, disparam também a descarga destrutiva mais arcaica, já que vale qualquer troca para obter o objeto desejado e qualquer ação que favoreça esta troca. E que, por esta razão, há o favorecimento da corrupção, da contravensão e do crime. E, pela mesma razão, qualquer vontade, espontaneidade ou liberdade do sujeito ficam reduzidas, submetidas à ótica do desejo, pela aplicação do marketing, enquanto estudo do mercado e conjunto de técnicas de intervenção no mercado. Então o marketing passa a ser visto

como a tarefa de criar, promover e fornecer (grifo meu) bens e serviços a clientes, sejam pessoas físicas ou jurídicas. Na verdade, os profissionais de marketing envolvem-se no marketing de bens, serviços, experiências, eventos, pessoas, lugares, propriedades, organizações, informações e idéias (grifo do autor).34

O mercado, originalmente apenas mais uma forma humana de funcionamento psíquico e social para o homem dar conta de sua incompletude e desamparo, foi elevado a uma categoria de centro regente da sociedade. Vejo-o no lugar que Deus ocupou na Idade Média. Ele se tornou inevitável e inquestionável na vida do homem; ele é, na vida pós-moderna, tido pelo homem como onipotente, onipresente, onisciente para a resolução dos problemas e limitações da vida humana, dos outros seres vivos e do planeta. Assim, o Mercado tem supremacia na regência de quaisquer relações entre humanos, e dos humanos com os animais e com a natureza em geral; penso que preencheu o trono que ficara vazio com a saída do Deus das religiões e a sombra do Deus monoteista, a sombra paterna divina, caiu sobre a sociedade, configurada agora, mais que uma sociedade de super-homens, configurada como uma super-sociedade, a sociedade da economia de Mercado. Este Deus (Mercado) criado por esta nova religião (economia de mercado) que toda a sociedade segue, mesmo à revelia.

Ele, mais que um Totem, é um Deus, com vários totens ou imagens-ídolo que o representam, não só dinheiro, mas a multiplicidade de bens materiais disponíveis, alcançando até os próprios meios de produção e de comunicação de massa que passam a ser idolatrados.

O Deus Mercado tem leis para a vida social e para a vida íntima, para o trabalho e para o lazer, para o viver, o adoecer e o morrer. Há ordenação do mercado para o casar e o ter filhos, para a alimentação e a higiene, para as formas de comunicação e o tipo de linguagem. Leis que, se cumpridas, e bem cumpridas, prometem (e dão para poucos iniciados) o paraíso na terra ao homem, que não precisa mais de nenhum outro Deus para se garantir com a fantasia de possuir a graça divina e ser protegido de todos os males da impotência, incompletude, do desamparo e da exclusão... E o homem busca realizar esta fantasia, busca aprender como ser um iniciado deste Deus e fazer muito dinheiro e cada vez mais poder ter o poder, veja-se programas como O Aprendiz . Sem o reconhecimento de sua própria finitude e desamparo, ao matar Deus o homem se deslumbrou consigo próprio, se viu dono e senhor do mundo, se pôs como um Deus, e ainda tenta se colocar aí, veja-se filmes como O Segredo e Quem Somos Nós I e II, agora utilizando os conhecimentos adquiridos com a física quântica. Porém o homem esquece de ver que já criou novamente um Deus acima dele, um Deus implantado no Social, um Deus Mercado, um Deus-Sociedade, com vários escravos seguidores, dos donos de empresas e grandes executivos ao operário de mais simples função, até os homens dos ghetos sociais mais divesos. Dos bolsões de riqueza aos bolsões de miséria todos se ajoelham e rezam as mesmas as missas laicas, parodiando Saramago, a serviço e em nome do Mercado e de suas leis mandamentos, todos os dias.

Nietzsche não só profetiza o Deus Mercado, como profetiza a super-sociedade da religião da economia de Mercado que vejo existir, com suas fratrias de homem travestidos em super-homens, dominando as fratrias de homens tidos como inferiores.

 

CONCLUSÃO

Concluo que o psiquismo humano necessita e se movimenta no sentido de sempre ter de criar e/ou entronizar um Deus. Para o psiquismo sempre haverá lugar para um Deus ou divindade, nem que neste lugar seja colocado o próprio homem. É como se forma nosso psiquismo ao dar um destino ao narcisismo do eu. Quanto mais este destino for o do Eu Ideal e do Supereu Arcaico representantes do narcisismo libidinal primário e do narcisismo destrutivo, quanto maiores serão as impossibilidades de ser a figura deste Deus um depositário do narcisismo estruturado como Ideal do Eu e Supereu Interditor, e então será maior e mais arcaico o aspecto projetivo por sobre o objeto escolhido como Deus. E a impossibilidade da fraternidade. Que Deus possa ter nele depositados tanto o Ideal do Eu quanto o Supereu Interditor Clássico, Freud 35 36 apontou muito bem. Pode-se concluir, pelo texto freudiano, que há religiões mais marcadas pelo projetado do Supereu na figura de Deus (judaismo) enquanto outras são mais definidas pelo projetado do Ideal do Eu na figura do Cristo (cristianismo). Dá para ficar apenas com esta conclusão se pensarmos, como Freud o fez, na constituição da religião monoteísta, de um lado, e a situação psíquica de um indivíduo religioso mediano de uma sociedade democrática dos tempos de Freud. Muitas vezes, quando se trata das massas, aqueles aspectos do narcisimo libidinal primário, revisto no mito da horda primitiva, dominantes no projetado na figura do Deus da religião monoteísta37, deixam lugar para a presença no grupo de um funcionamento inconsciente grupal arcaico, em que as angústias e defesas mais arcaicas e psicóticas estão ativas, passando a ser um Deus tirânico e retaliador, do olho por olho dente por dente38. Quando a religião intrasubjetiva se torna um fenômeno de massas, o mais primitivo no psiquismo é disparado e projetado por todos numa única figura de líder humano, vista como um Deus ou representante de Deus, ou então numa idéia líder de um Deus que comanda os homens, por meio, por exemplo, de um Estado que só existe para servir aos propósitos divinos. Aconteceu isto na Idade Média e na Moderna (as Cruzadas e a Inquisição) e está acontecendo agora na pós-modernidade (terrorismo religioso e guerra ao terrorismo). Quando isto ocorre temos a projeção do Supereu Arcaico e Tirânico e do Eu Ideal Majestade Perfeita na imagem de Deus, conduzindo a eventos radicais, do atendimento ao divino demandando guerras e perseguições religiosas até a divindade exigindo sacrifício humano ou mesmo autosacrifício.

No Deus monoteísta, está o Supereu projetado pela humanidade39, em sua instância interditora, julgadora e punitiva (não posso ser senão serei punido), com a contrapartida de sua instância Ideal do Eu, resultante das identificações secundárias com a cultura transmitida pelos pais, que diz como o Eu deve ser para ser amado pelo Supereu (devo ser como ele indica)40. Nas divindades-ídolo está colocado mais o Eu Ideal do narcisismo primário (eu sou a minha própria majestade), com o aspecto retaliador de um Supereu Arcaico e Tirânico, que não efetua julgamento para punir, mas funciona pela lei do talião, do olho por olho, dente por dente41. Isto tudo depende de conforme for a superação do Eu do narcisismo primário. Parece que, ao contrário, o Deus monoteísta responde bem ao Supereu Freudiano, à instância crítica da lei e ao Ideal de Eu que a constitui, enquanto que as divindades idolatradas do Mercado correspondem mais ao Eu Ideal do narcisismo primário, conduzindo à busca da satisfação imediata, à substituição interminável dos objetos de satisfação, ao uso e ao desprezo dos objetos da satisfação atendida.

Proponho que Deus, portanto, pelo olhar psicanalítico, é inerente ao psiquismo humano, é um precipitado projetivo do narcisismo do Eu. E faz parte do psiquismo social. Mas seria arrogância racional narcísica negar Deus fazendo uso da comprensão psicanalítica para a necessidade que o homem tem de constituir um Deus. Isto, por sí só, não justificaria a razão poder afirmar que Deus não existe. Nossa limitação narcísica pode projetar a imagem de Deus, o que não significa que esta criação de nossa mente signifique que nada seja naquele lugar do projetado. Assim, deixa-se espaço para o não explicado.

A proposição de um Deus Mercado é um alerta interdisciplinar. Do ponto de vista ecológico esta super-sociedade que segue o Deus Mercado não é grata à natureza, não aceita sua dependência de outros tipos de sociedade e mesmo considera incapacitados, inferiores, os outros seres humanos pertencentes a ela que não acompanham os iniciados no Mercado e as novas leis de saúde, beleza, riqueza, poder. Do ponto de vista político e religioso, vemos até as políticas que se afirmaram de esquerda se misturarem com ele, e as novas religiões fundidas a ele de modo que, nestas, se o Deus monoteísta está com o homem, se este estiver na graça do Deus monoteísta, tudo o que o Mercado puder oferecer será deste homem. Já a filosofia tem a tarefa de recuperar o pensar e refletir a respeito de Deus e a teologia talvez precise se repensar novamente.

Quanto ao psicanalista poder crer em Deus... Penso que há outros deuses piores, mais temíveis, para o psicanalista acreditar do que o Deus monoteísta, até mesmo um Deus que se oculte por detrás da idéia de progresso e sucesso profissional, que coloca a economia de mercado como lei indiscutível. O Deus Mercado, uma projeção do Eu Ideal e do Supereu Arcaico, que funciona na base do olho por olho e vê o progresso, a prosperidade e o sucesso infinitos como o Eu Ideal a ser sempre atingido. Penso que isto pode interferir mais nas análises dos pacientes, submetê-los mais ao Deus Mercado, já que o psicanalista não se encontra alertado quanto a este Deus. O que normalmente ocorre é que ou o psicanalista considera natural, pois a psicanálise está inserida na economia de mercado, ou o psicanalista até enxerga a ditadura do mercado, mas não pecebe o lugar de Deus que ela ocupa inclusive no seu imaginário. O psicanalista está mais alerta quanto ao perigo de uma crença sua num Deus das religiões reconhecido enquanto tal, pois a psicanálise de há muito cuida da abstinência do psicanalista quanto a valores morais, políticos e religiosos. E quanto aos valores econômicos? Nunca ouví ou li qualquer coisa a respeito da abstenção de valores econômicos. É possível o psicanalista se abster de valores econômicos? E não basta que ele reconheça a ditadura do mercado. E quando o econômico funciona só aparentemente como uma idolatria atéia, até sendo criticado como tal pelos teólogos, quando esta idolatria oculta um poderoso Deus respeitado em tudo por todos, venerado como o que garante contra o desamparo e a falta, temido como o que não só pode castrar, mas aniquilar o sucesso da vida de um mortal, até fazer este mortal se sentir incapaz, inútil ou mesmo inexistente? Estará um psicanalista alertado para isto? Para esta nova religião, intocável, indiscutível em seus dogmas? Não fará o psicanalista parte dela? Então não cabe que seja dito que um psicanalista não pode crer em Deus, senão não será psicanalista. O psicanalista tem é que poder reconhecer o que lá no fundo de si mesmo mais teme e no que crê para se proteger das ameaças de aniquilamento narcísico do Eu, para poder ser psicanalista. E poder abster-se em sua clínica, de sua própria obediência ao Deus Mercado. Como fazer isto? Bem mais difícil de abster-se do que de um Deus das religiões, que ocupa menos espaços na vida de hoje de qualquer ser humano do que o Deus Mercado, que ocupa todos os espaços, como o Deus das religiões ocupava no Ocidente medieval e ainda ocupa hoje em muitos lugares do Oriente.

 

1 - BOFF, Leonardo (1975). Teologia do Cativeiro e da Libertação. São Paulo: Círculo do Livro, 1978, p. 124.

2 - NIETZSCHE, Friedrich (1882/ 1897) A Gaia Ciência. Leipzig, Verlog von R. W. Fritzsch.

3 - SARAMAGO, José (2002) Este mundo da injustiça globalizada. Domínio PúblIco. Biblioteca Digital. Ciberfil Literatura Digital.

4 - ____________ Idem. (grifo meu)

5- WIKIPÉDIA. A Enciclopédia Livre. Biblioteca Digital.

6- FREUD, Sigmund (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. In _________. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas – ESB. Tradução por Jaime Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV.

7 - ____________ (1921). Psicologia de Grupo e Análise do Ego. In: _________. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas – ESB. Tradução por Jaime Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XVIII.

8 - KLEIN , Melanie (1958) Sobre o desenvolvimento do funcionamento mental. In: ______ Inveja e Gratidão e outros trabalhos 1943-1963 (1985/1991). Obras completas de Melanie Klein, vol III. Com. Ed. Brasileira Ellias Mallet da Rocha Barros et Al. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

9 - ROSENFELD, Herbert (1972). Introdução à discussão sobre “Uma abordagem clínica para a teoria psicanalítica das pulsões de vida e de morte”. In: ROCHA BARROS, Elias Mallet (1989). Melanie Klein: evoluções. São Paulo: Escuta, 1989.

10 - _____________ (1971) Uma abordagem clínica para a teoria psicanalítica das pulsões de vida e de morte: uma investigação dos aspectos agressivos do narcisismo. In: SPILLIUS, E. B. (1988/1991) Melanie Klein Hoje. Coord. Ed. Brasileira: Elias Mallet da Rocha Barros. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

11 - MOSER, Antônio (2004). Teologia Moral: questões vitais. Petrópolis: Vozes, 2004.

12 - WIKIPÉDIA. A Enciclopédia Livre. Biblioteca Digital.

13 - _____________. .Idem.

14 - LÉON-DUFOUR, X et al. (1970). Vocabulário de Teologia Bíblica (1970/1999). Trad. Frei Simão Voight, O. F. M., 6 ed., Petrópolis: Vozes, 1999.

15 - ISAACS, Susan (1952). A natureza e a função da fantasia (1952/1976). In: KLEIN, Melanie et. Al. Os Progressos da Psicanálise. 2 ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

16 - DE LA SAUDÉE, Jacques Bivort (1955). Deus, o Homem e o Universo. 3 ed. Trad. Portuguesa: Agostinho Veloso. Porto: Tavares Martins, 1957, pp. 15-16, grifos meus.

17 - NIETZSCHE, Friedrich. (1882/ 1897). Idem.

18 - ENGELS, Friedrich (1876) - Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. Ed Eletrônica Ridendo Castigat Mores, 1999. Versão EBooks Brasil.

19 - _____________ Idem.

20 - NIETZSCHE, Friedrich (1882/ 1897). I dem.

21 - ____________ (1882/ 1897). I dem, p.125.

22 - ____________(1883/1885). Assim falou Zaratustra pp. 47-48. São Paulo: Círculo do Livro, 1979.

23 - WIKIPÉDIA. A Enciclopédia Livre. Biblioteca Digital.

24 - NIETZSCHE, Friedrich (1883/ 1885). Idem, p. 29.

25 - ____________ (1883/ 1885). Idem, pp. 29-30.

26 - ROSENFELD, Herbert (1971) Uma abordagem clínica para a teoria psicanalítica das pulsões de vida e de morte: uma investigação dos aspectos agressivos do narcisismo. In: SPILLIUS, E. B. (1988/1991) Melanie Klein Hoje . Coord. Ed. Brasileira: Elias Mallet da Rocha Barros. Rio de Janeiro: Imago, 1991

27 - WIKIPÉDIA. A Enciclopédia Livre. Biblioteca Digital.

28 - _____________ Idem.

29 - MORENTE, Gabriel Garcia (1964). Fundamentos de Filosofia: lições preliminares. São Paulo: Mestre Jou, 1964.

30 - BOFF, Leonardo (1975). Idem. p. 125.

31 - _____________Idem, pp. 124-125.

32 - WIKIPÉDIA. A Enciclopédia Livre. Biblioteca Digital.

33 - RICHERS, Raimar (1981) O que é Marketing. 11 Ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1981, p. 18.

34 - KOTLER, Philip (2000). Administração de Marketing. 10 Ed. Trad. Bazán Tecnologia e Lingüística. São Paulo: Prentice Hall, 2000.

35 - FREUD, Sigmund (1921). Idem.

36 - FREUD, Sigmund (1939). Moisés e o Monoteísmo

37 - ANZIEU, Didier et. Al (1975). O Trabalho Psicanalítico com Grupos. Trad. Port. Ana maria Cunha e Marta Ulrich. Lisboa: 1978.

38 - BION, Wilfred Ruprecht (1961/1968). Experiências com Grupos: os fundamentos da psicoterapia de grupo. Trad. Walderedo Ismael de Oliveira. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

39 - FREUD, Sigmund (1921). Idem.

40 - ___________ (1914). Idem.

41 - KLEIN, Melanie (1958) Sobre o desenvolvimento do funcionamento mental. In: ______ Inveja e Gratidão e outros trabalhos 1943-1963 (1985/1991). Obras completas de Melanie Klein, vol III. Com. Ed. Brasileira Ellias Mallet da Rocha Barros et al.. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

e-mail: mlspersicano@uol.com.br

 

VOLTAR