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PSIQUIATRIA E PSICANÁLISE: CONVERGÊNCIAS / DIVERGÊNCIAS.

por Vera Vassilieff e Ilka Nakamura

 

Já que o psicofármaco está na clínica atual do analista, apresentamos esta entrevista com o Prof. Durval Mazzei Nogueira Filho. São algumas questões motivadas pelos artigos “O grafo, o gozo, o corpo e a medicação. Uma convergência” do seu livro Psicanálise & Medicação, a ser publicado pela Editora Escuta e “Sobre a psiquiatria e a psicanálise”, em “Psicofarmacologia e Psicanálise”, Escuta 2001.

Professor do Curso Formação em Psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae, mestre em Psiquiatria pelo Hospital do Servidor Público Estadual e Professor-convidado junto ao GREA – Ipq-FMUSP, Durval estará debatendo o tema “Toxicomanias” no dia 24/11 junto á Escola Livre de Psiquiatria. (escolalivre@yahoo.com.br)

 

Acto Falho: Poderia se pensar que as neurociências seria o ômega do saber sobre o cérebro assim como a psicanálise seria o ômega do saber sobre o aparelho psíquico?

Durval: A divisão de territórios não é tão simples assim. Primeiro pela vocação totalizante de alguns estudos neurocientíficos. Se a vertente é esta, não há aparelho psíquico. Há epifenômeno psíquico sem valor por si mesmo. O princípio e o fim da atividade do ser é o cérebro. Felizmente, não são todos os neurocientistas que assumem esta posição cientificista e próxima do fascismo. Não obstante, mesmo aqueles que reconhecem a função do Outro na constituição do sujeito, vêm este Outro como restrito a boas condições de alimentação, temperatura e acolhimento. Resta à Psicanálise – e isto não é pouco – a demonstração de que há algo pouco mensurável que desempenha um papel. Freud chamou este “não mensurável” de sexualidade. É o que mãe e pai e nutriz e vovó e cachorrinho oferecem ao pequeno infante. Não deve ser negligenciada também a função da linguagem, desde que esta seja pensada como estruturante e não como instrumento.

Acto Falho: Partindo-se da premissa de que o gozo pode ser alcançado com uma dose de heroína, poderia se pensar o funcionamento psíquico como refém da função cerebral?

Durval: Tem gente que adora pensar desta forma. É mais interessante pensar, como desenvolvo no meu livro “Toxicomanias” (Editora Escuta), que as drogas constituem um gozo novo que, ao contrário de repisar o gozo próprio ao sujeito que fala, introduzem-no em uma nova experiência. Uma experiência que atravessa a economia pulsional, alterando-a e produzindo nada mais nada menos que uma balbúrdia que termina por estereotipar a busca pelo prazer.

Acto Falho : Considerando-se a eficácia do ato analítico em se produzir algo novo e em se desfazer na medida do possível as amarras que obrigam à repetição, à infelicidade, ao mal-estar, a psicanálise pode ser pensada como militante do campo da cura?

Durval: Estou de acordo. Detesto pensar o ato analítico como uma atividade diletante, desprovida do sentido de cura. O que não significa nenhuma submissão ao discurso médico.

Acto Falho: A palavra, enquanto instrumento de abordagem do psicanalista, pode ser considerada medicamento? O medicamento psicotrópico pode ser pensado como uma abordagem do inconsciente?

Durval: Nem a palavra deve ser considerada um medicamento; nem o psicotrópico deve ser considerado afeito ao inconsciente. A palavra, se vale, vale por sua predestinação ao equívoco – como diz Freud – e não por seu valor de troca. Se o psicotrópico exerce alguma função, esta é a partir do corpo. Anterior ao Inconsciente, se essa topologia faz sentido.

Acto Falho: Poderia se pensar que a eficácia da psicanálise pudesse se dever de alguma maneira a modificações das funções neuronais por ela induzidas?

Durval: Tem gente que gosta de pensar assim. Pessoalmente, não sou fascinado por esta fantasmagoria neuronal. O cérebro NÃO explica a mente, se me perdoam por usar esta palavrinha idiota. Admito pesquisa e pensamento com esta característica com o objetivo claro de participar no debate contemporâneo, onde este jogo de linguagem tem valor. Fazer semblante é a ordem.

Acto Falho: Como psiquiatra e psicanalista, como é que você pensa a premissa de que medicamentos de ação nos mecanismos neurotransmissores estariam ganhando espaço na clínica contemporânea em detrimento da psicanálise?

Durval: Um psiquiatra não psicanalista, mas influenciado pela Psicanálise e colega de residência de Lacan, Henri Ey, diz que “qualquer nova terapia biológica aparece como substituta do trabalho com a palavra”. Após algum tempo, vê-se que o buraco é mais embaixo. O problema que a Psicanálise deve encarar não é este. Descrições do laço social pós-moderno, que o discurso do capitalista de Lacan procura cingir, são muito mais úteis ao debate contemporâneo que a eficiência das drogas. Nem os próprios psiquiatras biológicos são satisfeitos com a eficiência delas.

Acto Falho: Você pensa a inserção do psicofármaco como um aliado ou como um inimigo na clínica contemporânea psicanalítica?

Durval: Ele pode jogar nas duas posições. Depende mais da posição do analista que do fármaco.

Acto Falho: Frente ao enorme avanço das descobertas neurocientíficas poderia se pensar numa alienação das investigações psicanalíticas como fonte de conhecimento da mente?

Durval: É outra situação que depende dos analistas. Da capacidade do psicanalista sustentar seus princípios, para além da repetição de standards que existem apenas para serem renovados.

 

dr.durval@uol.com.br

Participaram da entrevista Ilka Nakamura e Vera Vassilieff.