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Tratar a psicanálise como uma mercadoria é um equívoco'

por Marília Stabile, Marina Fibe e Lucas de Almeida Nogueira

 

O artigo de Maria Luiza Persicano despertou na equipe do Acto Falho vários questionamentos e se constituiu em um dos eixos articuladores da última edição do ano. A idéia foi de expandir alguns conceitos que sustentam o ‘Deus Mercado' em novas derivações. Narcisismo é um dos pilares. O outro, o mercado, diferente do ‘Deus Mercado'. Como o Departamento de Formação o conceitua e o traduz na prática dentro da instituição Sedes ? Foi um encontro espontâneo. Pois a atual gestão do Departamento de Formação está trabalhando para reforçar a importância da ação do analista em instituições sociais, de forma sustentável, como um lugar também singular a ser ocupado. ‘Demanda não falta. Falta mão de obra', esclarece Maria Cristina Perdomo, coordenadora da Comissão de Coordenação Geral do Departamento. Celina Giacomelli, coordenadora da Comissão da Clínica confirma. As duas aceitaram discutir o tema -. que há tempos está no ar e renovado na atual gestão. Convidamos vocês a escutá-las.

Acto Falho: Como vocês pensam o mercado do psicanalista que atua no Departamento de Formação em Psicanálise?

Cristina Perdomo:

Eu começaria, pensando no que vocês falaram do artigo da Maria Luiza, dizendo que se estivéssemos apontando para esse (Deus) mercado, se esse fosse nosso objetivo , nós estaríamos alinhados junto à Sociedade de Psicanálise. O Sedes tem uma tradição ideológico-política que não é a mesma da IPA. Se tomarmos o ângulo do mercado, não vamos conseguir conversar, porque a questão de se tratar a psicanálise como uma “mercancia” (mercadoria) é um equívoco, porque nós não vendemos um produto. Se você quer vender felicidade ou uma promessa de bem-estar, melhor fazer outra coisa. Todos nós que passamos pelo processo psicanalítico sabemos que temos que suportar a angústia de um jeito muito mais radical do que outros. Já com relação à psicanálise na comunidade, à psicanálise não enclausurada no consultório, aí é outra coisa, aí temos o que falar.

Celina Giacomelli:

Muitos de nós viemos para o Instituto Sedes, não apenas por ser uma opção à Sociedade vinculada à IPA, mas também pelo fato de o Sedes ter uma tradição de vínculo com uma clínica social.

Cristina Perdomo:

Eu e a Celina temos conversado há muito tempo em um projeto com o qual pretendemos formar analistas que tenham inserção e contato com a comunidade, diferente dos analistas enclausurados em consultório. Na clínica temos o exemplo da Cristina Rocha (1). Eu desconhecia o trabalho da Maria Rita Khel com os Sem-terra, sobre o qual ela falou no nosso último evento (2), e acho que é um ar novo onde você recupera certos pontos de vista, valores e modelos ideológicos que por um momento ficam esvaecidos no consultório.

Acto Falho: Que tipos de valores você destacaria?

Cristina Perdomo:

A justiça social, fundamentalmente. Se você estiver a cargo do seu próprio desejo, como a psicanálise propõe, a posição de servidão é quebrada automaticamente. E com a inserção na comunidade não se trata de assistencialismo, não se trata de atender barato para que o pobre tenha acesso à psicanálise. Você atende para que, na comunidade, as pessoas sustentem seu próprio desejo e elas é que vão se encarregar de se reunir em núcleos de forma que a posição político-ideológica dessa comunidade possa ser levada pra frente. A Maria Rita está atendendo dentro do movimento dos Sem-terra, não está no consultório dela esperando as pessoas irem até lá.

Acto Falho: A questão também não é que façamos parte do movimento político-ideológico?

Celina Giacomelli:

Isso, tanto que a Maria Rita colocou que a ideologia do movimento não está em questão, mas sim o fato de haver uma demanda de análise.

Cristina Perdomo:

O analista se posiciona numa instituição, mas não faz um trabalho assistencialista; é um trabalho psicanalítico, mas ligado a uma posição político-ideológica. E não tem a ver com o custo.

Celina Giacomelli:

Não se pode esquecer que o Instituto Sedes começou como clínica social e que madre Cristina era uma militante de esquerda. Essas são as raízes do Sedes.

Acto Falho: E como estamos nessa raiz?

Celina Giacomelli:

A Comissão de Clínic a vem fazendo ao longo destes anos um trabalho bom no que se refere ao estágio oferecido na Clínica do Sedes. Mais recentemente, os alunos do curso Fundamentos que fazem o estágio ficam bastante satisfeitos com a experiência institucional. Tem todo um reposicionar da escuta analítica e da questão transferencial, porque a transferência é com a instituição. E o dispositivo da Clínica exige uma discussão mais ampliada com pares que têm outro posicionamento diante da clínica, o que pode ser muito rico. E tem a questão do pagamento, não é assistencialista. O paciente paga quanto pode. Existe uma equipe multidisciplinar. Quando necessário, a assistente social faz um levantamento da situação social do paciente e ele paga quanto pode. Se puder pagar R$ 50,00 por sessão, este é o valor que pagará. Se puder pagar com um quilo de arroz por mês, vai pagar desta forma. É uma experiência bastante rica.

Eu também sempre achei que a comissão deveria abarcar a reflexão sobre a inserção de seus membros em outras instituições fora do Sedes. Há uma pecha do nosso departamento como mais voltado pro consultório particular do que pro social. É uma pecha porque o que circula é que o nosso departamento é mais voltado pra clínica particular, e não é verdade. Temos a Veridiana Paes de Barros, que trabalha há muito tempo no CAPS Itapeva, a Cecília Camargo no Centro de Violência, a Patrícia Leirner, a Cristina Rocha. Sem contar a Maria Luiza Persicano, Maria Teresa Rocco, a Marta Cerrutti, que trabalha com violência de gênero, a Cybelle Weinberg e a Ana que trabalham com anorexia e bulimia. Então tem muita gente voltada pro social e há toda uma discussão de como a escuta se dá nesse âmbito. Aliás, essa é a intenção dos eventos que pretendemos promover.

Acto Falho: Isso já é uma ação desse grupo.

Cristina Perdomo:

Sim, é uma coisa da nossa gestão do Conselho como um todo. Temos uma Comissão Coordenadora com cinco pessoas que são escolhidas a cada dois anos. Além disso, há um Conselho formado por um titular e um suplente que representam cada grupo de trabalho do Departamento; como há seis comissões, ao todo são seis pessoas. Esse Conselho se reúne uma vez por mês e aí se discutem projetos. A coordenação geral dá a linha político-ideológica e tenta viabilizar os projetos de acordo com essa linha. Somos um departamento dentro de uma instituição maior, e o Sedes tem uma política de gerenciamento que permite certas coisas e não permite outras. Hoje o que fazemos é abrigar e dar suporte a quem faz trabalhos fora com instituições sociais organizadas, a quem quer estudar determinados assuntos etc. De acordo com o interesse dos membros nós convidamos professores que coordenem grupos de estudo ou dêem orientação em determinado trabalho institucional, tudo gratuito para acolher os pedidos das pessoas interessadas.

Celina Giacomelli:

O Lineu (Silveira) , por exemplo, topou ajudar os estagiários que quiserem publicar artigos. E quem quiser estudar algo é só procurar as comissões do Departamento, como a de Publicação, Clínica ou de Pesquisa.

Cristina Perdomo:

Mas os alunos ou as pessoas que queiram trabalhar dentro desses moldes tê m que chegar já com alguma pergunta pronta.

Acto Falho: E como vocês sentem a demanda das instituições para um trabalho psicanalítico?

Celina Giacomelli:

É muito grande.

Cristina Perdomo:

Demanda não falta, falta mão-de-obra.

Celina Giacomelli:

Se você vai a uma instituição organizada e pergunta se estão interessados no trabalho analítico a ser oferecido, as portas se abrem. As pessoas têm muito interesse.

Celina Giacomelli:

Há uma preocupação desta comissão em discutir projetos, em conjunto com o conselho do Departamento, que estejam em sintonia com as outras comissões (de Publicação, de Pesquisa, de curso). Em conversa com Emir (Tomazelli),coordenador da Comissão de Pesquisa, procuramos refletir sobre a possibilidade de articulação de nossos trabalhos. Emir sugere que pensemos sobre a uma oferta de trabalho do analista que possa ser - algo que se aproxima do que B. Brecht propôs - uma ação transformadora. O teatro de Brecht é essencialmente ético, fornece ao espectador uma abertura para refletir e se posicionar. Enfim, estamos trabalhando com a idéia de uma proposta de trabalho analítico que vá até onde a demanda se apresentar, o que indica uma ampla gama de possibilidades. A demanda existe, sem dúvida.

Cristina Perdomo:

Por exemplo, o analista pode trabalhar em um clube dentro de uma comunidade que esteja organizada e que se encarregará do trabalho social que o analista não vai fazer. Você pode atender pessoas ligadas a essa comunidade. Lembrando que não se trata de um trabalho voluntário, porque essa palavra está muito associada a assistencialismo. O que a gente tem é alguém que diz “eu tenho interesse nisso” e que vai retirar dali o prazer de trabalhar e de estudar.

Celina Giacomelli:

E vai poder tirar dali um projeto de pesquisa, uma experiência nova, aprendizado, pois temos “n” demandas que buscam respostas e se o analista vai facilitar o acesso ao próprio desejo, teremos demanda onde for.

Acto Falho: E como o aluno interessado em algum tipo de orientação ou no estudo de algum tema específico deve proceder?

Cristina Perdomo:

Ele pode se dirigir ao representante de alunos de sua turma e se orientar a partir daí.

Celina Giacomelli:

A Comissão de Clínica também está disponível, se quiser marcar um encontro para nos conhecer e saber o que fazemos, nós viremos pra conversar.

* Participaram da entrevista Marilia Stabile, Marina Fibe e Lucas Nogueira.

perdomo.cristina@gmail.com

cgiaco@terra.com.br