ANGÚSTIA, SUPEREGO E CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE EM KLEIN

Fátima Cristina Monteiro de Oliveira

 

 

INTRODUÇÃO


O que vive fere.
O homem,
porque vive
choca com o que vive.
Viver é ir entre o que vive...
... O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso
como um cão, um homem
como aquele rio.
(João Cabral de Melo Neto)


Sempre me encanta perceber como a arte, seja a escrita, a pintura, ou mesmo a simplicidade dos desenhos infantis retratam os movimentos do psiquismo humano com tanta gratuidade, leveza e precisão, como poderemos perceber nos desenhos de uma sessão que utilizarei para desenvolver este trabalho e no trecho de poesia com que o introduzi. Angústia e criação, estariam então conectados, interligados, se auto regulando? Parece que sim. E é quando estes movimentos emergem com contundente clareza na clínica, que a psicanálise se torna surpreendentemente viva e criadora. Neste trabalho exporei um casa clínico de uma menina de 11 anos realizando uma aproximação com a teoria kleiniana.

Numa sessão em que podemos utilizar desenhos com a criança, ficamos muito próximos de uma linguagem do inconsciente: tratam-se de sessões que transcorrem à semelhança de sonhos permitindo à criança expressar suas fantasias. No trabalho com uma criança, é através da fantasia e do brincar que se pode tomar conhecimento da realidade interna. Simon (1986) comenta Klein dizendo que o analista de crianças não se atém tanto ao ego, "mas se ocupa mais do inconsciente". Preocupado em reduzir a pressão esmagadora exercida pelo superego, ajuda no fortalecimento do ego ainda fraco.

Paremos para refletir sobre o conceito de fantasia inconsciente. As fantasias representam a expressão mental das pulsões e também dos mecanismos de defesa, sendo inatas e primariamente inconscientes. Acreditando na atividade de objetos internos e sentindo-os como concretos, é a fantasia que faz o trabalho de regressão e avanço para frente. Ela faz o movimento (imaginação- imagens em ação) para trás e para frente, movimento criador.

Na transferência externaliza-se a fantasia inconsciente no momento da sessão. A agressão e a destrutividade trazidas para a sessão e acolhidas, possibilitam uma diminuição da angústia, que é derivada da pulsão de morte.

Interpretações que buscam alcançar as angústias por trás das defesas aliviam estas mesmas angústias. No capítulo VII de Psicanálise de Crianças, Klein pontua numa nota de rodapé, à pg 146, que um fator de desenvolvimento de importância básica é a "capacidade do ego prematuro de tolerar a ansiedade".
Duas páginas à frente diz que "a ansiedade se origina da agressão". Para Klein portanto, o perigo provém das pulsões destrutivas. São elas que geram a angústia, com a qual o ego incipiente tem que se haver desde o início. A angústia tem origem na destrutividade. Aliás se nos voltarmos para Freud no final de sua obra, vemos que sua teoria e a de Klein, se aproximam neste ponto. Em O Mal estar na Civilização por exemplo, ele nos diz que "é em suma apenas a agressividade que é transformada em sentimento de culpa, por ter sido suprimida e transmitida para o superego"

Etimologicamente o termo angústia deriva do latim angor que significa estreitamento. Este termo parece mais apropriado que ansiedade, a qual provém também do latim anxia, tendo mais uma conotação de anseio, ânsia.

O primeiro termo, angústia, reflete bem a sensação "física" de estreitamento, de opressão que acompanha os sintomas da angústia. Angústia de aniquilamento para Klein ou angústia de desintegração, corresponde à ação da pulsão de morte agindo no interior do psiquismo, ameaçando a sobrevivência do sujeito, e fazendo constituir-se o superego, a partir de uma cisão do id que passou pelas relações objetais.

É diferente da angústia persecutória, que representa uma ameaça de objetos maus e perseguidores que ameaçam os bons objetos internos. É a angústia vivida diante do superego.

Como veremos ilustrado no caso clínico que apresentarei em seguida, os impulsos agressivos promovem um movimento para frente por parte do ego, dirigindo-se aos impulsos genitais e consequentemente aos sentimentos amorosos.

Etimologicamente, agressão vem do latim "gradior", que significa movimento para a frente. Se nesta agressão predominar exclusivamente a pulsão de morte, então em vez de um movimento para frente teremos apenas o terror, a paralisia.

Assim, temos que a frustação, como momentos de ausência é não só inevitável, como necessária para que haja uma ação estruturante no psiquismo da criança. Quando extrema e repetitiva como nos casos de hospitalismo, depressão acentuada da mãe ou nas carências sociais, funciona como um fator desestruturante , por intensificar o sadismo.

Em "Estágios Iniciais de Conflito Edipiano e da Formação do Superego"(1932), à pg 148, Klein, fazendo um contraponto com a teoria freudiana, pontua que: " o perigo que ele (Freud - grifo meu) chama de "desamparo psíquico - se o perigo for pulsional provém das pulsões destrutivas".

Logo a seguir neste texto, Klein elucida como se formaria o superego arcaico, dizendo que "o ego tem ainda um outro meio de controlar aqueles impulsos destrutivos que ainda permanecem no organismo. Pode mobilizar uma parte deles como uma defesa contra a outra parte. Desse modo o id sofrerá uma cisão que é, creio eu, o primeiro passo na formação das inibições pulsionais e do superego".

Na primeira nota de rodapé à página seguinte, Klein completa dizendo que "o objeto incorporado assume de imediato o papel de um superego".

Trarei a seguir fragmentos de um tratamento de uma menina que se submeteria a uma cirurgia , e neste caso poderemos observar a emergência de situações de ansiedade bastante arcaicas. De fato Klein nos aponta em Psicanálise de Crianças (1932) à pg 212 que :" se uma pessoa normal for posta sob uma grave pressão interna ou externa, ou se ela adoece ou falha de algum modo, podemos observar nela a operação plena e direta das suas situações de ansiedade mais profundas".

Esta postulação ficou muito clara no desenvolvimento do trabalho com esta paciente que por se aproximar da puberdade, estava mais sujeita à uma revivescência de situações de ansiedades arcaicas ligadas também à sua própria feminilidade .


DESENVOLVIMENTO CLÍNICO

"Uma flor nasceu na rua.
Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu...
...é feia, mas é uma flor,
Furou o asfalto, o tédio,
o nojo e o ódio".
"A flor e a náusea"
(Carlos Drummond de Andrade)

A paciente é uma menina de 12 anos, filha única de pais separados. Sua mãe tem 45 anos é muito bem sucedida profissionalmente sendo responsável pelo sustento da menina. Seu pai tem 46 anos e segundo o relato da mãe não colabora para prover as necessidades básicas da filha. O pai tem dois filhos de um casamento anterior, um dos quais suicidou-se.

Quando a paciente nasceu sua mãe teve uma depressão pós parto, que segundo a mãe a impossibilitava de interessar-se pela menina e cuidar dela. A mãe relata também episódio de pânico e fobia, inclusive em relação a tratamentos médicos, odontológicos ou cirúrgicos.

A paciente passará por uma cirurgia. O cirurgião terá que retirar um cisto mandibular e um dente incluso. Esta cirurgia é normalmente realizada em consultório com anestesia local, porém a menina recusa-se a aceitar o procedimento, chegando a pedir que este seja feito com anestesia geral, porque diz sentir muito medo de realizá-lo acordada.

"Na puberdade, diz Ryad Simon (1986), o equilíbrio da latência se rompe. O despertar da libido reforça as exigências do id, aumentando, portanto, também as exigência do superego".

Tensões excessivas que se apresentam na realidade, como perdas, doenças e no caso desta paciente a iminência de uma cirurgia, podem reavivar situação de angústia muito arcaicas.

No caso de minha paciente, especialmente, a cirurgia seria na cavidade oral à qual estão associadas os primeiríssimos impulsos pré -genitais (sádico -orais).

A esta cavidade oral reportamos a primeira frustação, protótipo de todas as frustrações orais: o desmame. A frustação é instigadora do sadismo que se excessivo paralisa o desenvolvimento.

Mas o sadismo está em todo o humano. É a pulsão de morte fundida à libido narcísica, que como veremos no caso clínico que exporei, põe em movimento o organismo, levando o ego incipiente a construir um psiquismo.
Então podemos concluir que certa frustação, certa agressividade buscando nomeação, gera movimento e resulta em construção. Frustração excessiva intensificando demasiadamente o sadismo terá o efeito inverso podendo paralisar o desenvolvimento.

Klein em "Estágios Iniciais do Conflito Edipiano e Formação do Superego, à página 168,diz que: "introjeções simultâneas de objetos que tem de fato uma boa disposição com relação a ela (a criança- minha observação) operam em direção oposta e diminuem a força de seu medo das imagos aterrorizadoras".
Acredito que o holding, a continência vividos por minha paciente durante as sessões, foram tendo as consequências acima descritas por Klein, diminuindo a grande angústia que sentia com relação ao ato cirúrgico a que se submeteria.

As consultas desta criança foram realizadas com o auxílio do Procedimento de Desenhos- Estórias de Walter Trinca. Quando utilizamos desenhos numa sessão com crianças, e podemos oferecer um adequado continente à expressão de suas angústias, a comunicação se dá numa linguagem inconsciente e a sessão parece transcorrer muitas vezes como num sonho. Ilustrarei a seguir este trabalho com alguns desenhos desta paciente, devendo ressaltar que não foram realizados todos numa mesma sessão, e sim em duas, intervaladas em uma semana.


Desenho 1

O primeiro pôr do sol.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Verbalização
P- Para aquilo que você não encontra resposta, vá até a natureza e você encontrará."
Digo-lhe que estamos procurando respostas ali e pergunto-lhe quem está no barco que ela desenhou.
Responde-me: Três carinhas que estão de mal com a vida. Bem um deles pode ser minha mãe. Ela é muito estressada e me estressa também. Como agora com esta cirurgia. Eu não vou fazê-la, só se for com anestesia geral e minha mãe fica dizendo se eu penso que vou dormir prá tudo na vida...O que você acha melhor eu fazer?

A- Acho que nós vamos ir pensando juntas naquilo que para você será possível fazer.

Comentários:

Neste desenho a criança coloca três pessoas em um "continente" que parece ter um formato aproximado de um útero. Expressa um conflito dizendo que estas pessoas estão de mal com a vida. Desenha dentro deste "útero", ela, o pai, a mãe, bebês , pênis, seio, deslizando pelas linhas da equação simbólica.

Diz Klein, em Estágios Iniciais do Conflito Edipiano (1928) que:

"As tendências destrutivas cujo objeto é o útero também são dirigidas com toda a sua intensidade sádico-oral e sádico-anal contra o pênis do pai que estaria localizado lá dentro".

Mais à frente Klein faz uma conexão entre o impulso epistemofílico e o sadismo, dizendo que esta pulsão volta-se de início principalmente para o interior do corpo da mãe.

Minha paciente efetivamente demonstrava aliada à angústia pela cirurgia que faria, um desejo de saber como seria, fazendo-me uma grande quantidade de perguntas sobre os perigos que poderiam lhe acontecer: o que seria retirado dela, se ficaria um buraco, se sangraria muito...

Afirma Klein neste mesmo artigo que "a pulsão epistemofílica e o desejo de se apossar do objeto estão intimamente ligados desde muito cedo".

Para Klein o superego arcaico inicia sua formação num momento em que as tendências pré-edipianas sádico-orais e sádico-anais estão no auge. A criança equaciona pênis, seio, boca, vagina, barriga, bebê, já que sua primeira realidade é uma realidade corpórea.

Segundo Klein "as fantasias da menina em que tenta destruir ambos os pais por inveja e ódio são a origem do seu mais profundo sentimento de culpa, ao mesmo tempo, formam a base das suas mais esmagadoras situações de perigo".

A situação real de uma cirurgia fez o ego de minha paciente reviver angústias muito arcaicas . As angústias por ela vividas são inicialmente angústias frente a um perigo da destruição. Podemos pensar que teme a destruição de algo dentro de seu corpo, como uma retaliação aos ataques feitos em fantasia à mãe.

Em "Estágios Inicias de Conflito Edipiano e Formação do Superego" à pg 152, lemos que:

"A inveja oral é uma das forças motivacionais que fazem as crianças de ambos os sexos quererem se forçar para dentro do corpo da mãe e que despertam o desejo de conhecimento aliado a isso".

Klein completa pontuando que a criança imagina que o pênis do pai é incorporado pela mãe e permanece dentro dela, sendo os ataques dirigidos ao pai no seu interior.

Assim minha paciente ao reviver suas ansiedades arcaicas em relação ao corpo da mãe e seus conteúdos, trás um desenho que emblematicamente os representa. Notemos que são colocados dentro do " barco' três figuras, numa expressão de um conflito em que três elementos estão presentes.

Numa nota de rodapé no capítulo sobre o Desenvolvimento Sexual da Menina, Klein aponta que "o reconhecimento da realidade interna constitui a base da adaptação à realidade externa. A atitude da criança para com seus objetos de fantasia, que, nesse estágio da sua vida, são imagos fantasiosas de seus objetos reais externos, determinará suas relações com esses objetos futuramente".


Desenho 2

Olhos vendados

 

 

 

 

 

 

 

 

Verbalização: A paciente diz que desenhou uma pessoa de olhos vendados.

A: Ela está vendada para não ver a cirurgia? Porque tem medo?

P: Não é que ela não está lá. Está num bosque, num lugar para se acalmar.

A: Você precisa se acalmar...

P: Minha mãe é muito estressada, nervosa. Cobra muito de mim, cobra a minha perfeição, 7 já é nota baixa e ela ameaça me tirar da escola. Preciso sempre agradar.

A: E se você se sente ameaçada fica difícil ser você mesma, estar lá não é? Mas aqui não é preciso se preocupar com notas.

Comentários:

Este desenho, bem como a fala da paciente 'ela não está lá" me fez pensar num mecanismo de defesa bastante arcaico, de escotomização. Achei interessante procurar o significado de escotoma, que segundo o Houaiss, define-se em oftalmologia como " a região da retina em que há perda ou ausência da acuidade visual devida a patologias oculares". Sua etimologia é também interessante. Vem do grego skótoma, que significa vertigem.

Minha paciente efetivamente desenha os olhos e venda-os, representando sua recusa em "ver" a cirurgia. Para isto ela se retira da cena da cirurgia. Ela "não está lá".

Numa nota de rodapé em A Psicanálise da Criança, à pg 197, Klein pontua que:

"No estágio mais arcaico do desenvolvimento do indivíduo, seu ego não está suficientemente apto a tolerar sua ansiedade pulsional e o medo que sente dos objetos internalizados, e tenta proteger-se em parte por meio da escotomização e da negação da realidade psíquica."

Em Klein, as angústias mais arcaicas são as angústia de aniquilamento. Minha paciente me relatava freqüentemente que seu medo diante da situação cirúrgica era de um descontrole total, de "perder o chão", de tudo acabar-se. Não achava possível estar lá inteira, sobreviver à experiência, de destruição, extinção, perecimento. A ansiedade da posição esquizoparanóide está na ameaça de fragmentação, de aniquilamento. A defesa empregada tange uma angústia intensa pois também a faz desaparecer do momento da cirurgia. Ela retirou-se. Não está lá.

Klein nos diz em uma nota de rodapé no capítulo sobre o Desenvolvimento Sexual da Menina à pg 220: "nenhum sofrimento infligido por fontes externas pode ser tão grande quanto aquele infligido em fantasia por um medo contínuo e avassalador de danos e perigos internos"

Posteriormente vim a saber que esta menina desenvolvia já há alguns meses um glaucoma, quadro bastante atípico para alguém de sua idade.

Desenho 3

O dente bravo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

P- Eu tenho mesmo medo desta cirurgia. Quantas raízes será que tem este dente que eu vou tirar? Eu vou fazer com três.

A - Parece que está bem enraizado mesmo. O que você vai pensando ao desenhá-lo?

P- Que odeio ter que pensar nesta cirurgia. Que eu ia me sentir melhor no hospital, dormindo, com anestesia geral. Que eu não quero ver. Sempre quando tiram alguma coisa de mim eu não fico bem depois: sangue, dentes. Bem, eu já perdi um monte de dentes de leite, mas este é permanente.

A- Está com raiva e ao mesmo tempo com medo. Tem receio que te tirem coisas que são mesmo suas, como os seus pensamentos, coisas bem queridas e importantes...

Neste surgimento de angústias muito arcaicas, creio que minha paciente frente ao ato cirúrgico, à retirada de seu dente, teme a retaliação, revivescência de angústias persecutórias em que por atacar, teme ser atacada. (mordo, me mordem, tiro um pedaço - tiram-me um pedaço). Por isto diz que se sente mal quando tiram algo de seu corpo. Em "Psicanálise de Crianças" no capítulo sobre Efeito das Ansiedades Arcaicas na Menina, à pg 213, Klein aponta que "o medo mais profundo da menina é o de ter o interior do seu corpo assaltado e destruído".

Minha paciente revive estas angústia arcaicas despertadas pela situação da iminente cirurgia. Diz que se sente mal quando tiram algo dela: tem medo de tirar sangue, da retirada de um dente. Acredito que no caso de minha paciente, a situação cirúrgica a fez reviver com intensidade seu sadismo. Com a mesma intensidade com que ela atacou em fantasia seus objetos, imagina a retaliação e teme ser destruída ao se submeter a um ato cirúrgico. É o medo de ser atacada, destruída, que emerge como angústia da posição esquizoparanóide. Em Psicanálise da Criança, Klein já enuncia sua primeira teoria da angústia. Para ela o instinto de destruição, sendo dirigido contra o organismo, é considerado um perigo para o ego. Continua: "A meu ver é esse perigo que o indivíduo sente sob a forma de angústia. Portanto, a angústia nasceria da agressividade" (Klein, 1932, pg 140).

O sadismo é expressão da pulsão de morte. Neste desenho, é interessante como o sadismo e a raiva são representados pela criança por um dente, elemento que a criança concretamente pode fazer uso para morder, rasgar, cortar, destruir. A angústia de minha paciente tem origem na agressão. A revivescência do impulso de destruir, arrancar, estraçalhar o objeto, a faz temer a retaliação: tem medo que a ataquem, que retirem algo de seu corpo: um pedaço, o dente, sangue. Vão de encontro a estes pensamentos, as postulações de Klein mais à frente no mesmo artigo, à pg 149:

"A ansiedade evocada na criança pelas suas moções pulsionais destrutivas faz-se sentir no ego creio eu em duas direções. Em primeiro lugar implica o aniquilamento de seu próprio corpo por seus impulsos destrutivos , o que constitui um medo de seu perigo pulsional interno, mas em segundo lugar focaliza seus medos quanto a seu objeto externo, contra quem são dirigidos seus sentimentos sádicos, como uma fonte de perigo"... " A esse respeito pareceria que ela reage ao intolerável medo dos perigos pulsionais transferindo o impacto maciço dos perigos pulsionais para os seu objeto, transformando ,desse modo, perigos internos em perigos externos".

Desenho 4

Os Olhos de Deus

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Verbalização

P- Esta menina está pensando na vida ou vendo uma estrela cadente.

A: Quais são os pensamentos?

P- As coisas boas e ruins que ela fez ou faz.

A- Coisas ruins...

P-É ter respondido para a mãe dela. As mães tem hora que saem do limite, acham que ela é certa. As vezes minha mãe duvida do que eu penso. Estes são os olhos de Deus, eles conseguem ler o pensamento dela, o que ela está sentindo, o coração. Ele está lendo que ela quer ficar calma.

A: Você deve imaginar que eu leio os seus pensamentos, que dizer, que eu percebo mesmo aquilo que você não diz. Mas o que eu posso perceber em você é aquilo que está de verdade aí, que você mesma me traz.

P- Olha os traços vermelhos são os pensamentos ruins que estão indo embora. Por exemplo querer o mal da mãe.

A: Você não se sente bem com esta raiva.

P-É. lembra que você falou que ia me ajudar a entender como eu poderia fazer esta cirurgia, mas não, ia decidir por mim. Eu falei isso para minha mãe, que eu sou eu e ela é ela. Eu é que sei o que dá para mim fazer. Eu fico brava com a arrogância das pessoas. Agora os traços azuis são pensamentos bons.

A: Então, parece que todos têm coisas boas e ruins.

P-E quando a pessoa tem coisas boas e ruins. Onde está Deus?

A- Acho que fica aí no mesmo lugar onde você o colocou.

A paciente escreve sobre a cabeça da menina: Tranqüilidade.

A- Você se sente mais tranqüila...

P- É os círculos em volta são uma boa energia envolvendo a terra. A estrela cadente também dá a volta e transmite boas energias.

Segal (1975) em Introdução à Obra de Melanie Klein à pg 48, nos questiona sobre como o indivíduo normal ultrapassa a posição esquizoparanóide concluindo que:" para que a posição esquizoparanóide dê lugar gradualmente ,e de modo suave e relativamente imperturbado ,à próxima etapa do desenvolvimento, a posição depressiva, a precondição necessária é que haja predominância das experiências boas sobre as más. Fatores internos e externos contribuem para essa predominância"

Observamos aqui a presença de objetos que são ou persecutórios ou idealizados. Estamos frente à angústia persecutória mas também temos presente a angústia depressiva. Deus, o analista, a mãe, representam esta idealização mas em contra partida a persecutoriedade pois podem ver tudo que a menina pensa, os pensamentos cindidos em bons e maus. A cisão por outro é o que propiciará a integração. Para integrar é preciso haver cindido primeiro.

À medida que se processa uma clivagem entre imagos benévolos e malévolas, que no caso a paciente mostra significativamente com os traços dos pensamentos bons e dos pensamentos maus, pode-se ir modificando a relação com os objetos externos. Portanto a clivagem e ambivalência são mecanismos importantes em direção à integração. A presença da analista confirmando objetos bons da realidade ajuda na introjeção do bom objeto, abrandando o superego representado aqui pelos "Olhos de Deus".

Vimos nos desenhos anteriores a paciente submetida à pressão de ansiedades arcaicas reavivadas pela tensão de submeter-se a um ato cirúrgico.

Se conseguimos ler estes desenhos com nosso inconsciente, como que na linguagem de um sonho, vemos de modo plástico e belo como depois de expressar suas ansiedades nos desenhos anteriores, neste a menina representa um superego nos "Olhos de Deus".

Através da fantasia que pode se expressar nos desenhos, a criança foi constituindo objetos para dar conta da pulsão de morte, que sai fundida à libido narcísica. A integração permite ir adentrando a posição depressiva.

Melanie Klein descreve a formação do sentimento de culpa como conseqüência direta das pulsões sádico destrutivas, acompanhado das fantasias inconscientes de ter atacado e danificado objetos de que se necessita. O que permite sentir a culpa depressiva é o reconhecimento da diferença entre o sujeito e o objeto.

Bem mais à frente em sua obra, num artigo de 1948 "Sobre a teoria da angústia e da culpa" à pg 306, Klein expõe que à medida que a integração dos objetos progride, "sentimentos tanto de natureza destrutiva quanto amorosa são experimentados por um mesmo objeto e isso dá origem a profundos e perturbadores conflitos na mente da criança".

Desenho- 5 Pôr do Sol

O desenho fala por si só. A paciente mostra satisfação ao realizá-lo, e diz que gosta mais da tarde, do pôr do sol. Que suas cores são bonitas e a alegram.

No artigo de 1929 "Situações de ansiedade infantil refletidas em uma obra de arte e no impulso criativo Klein expõe que a ansiedade mais profunda sentida pelas meninas é a seguinte: "A pequena menina tem o desejo sádico, originário dos primeiros estágios do conflito Edipiano de roubar o conteúdo do corpo da mãe, ou seja, o pênis do pai, e os bebês, além de destruir a própria mãe".

Klein conclui que este desejo desperta a ansiedade de que a mãe roube o conteúdo de seu corpo, principalmente os bebês, e é esta a ansiedade mais profunda da menina.

Neste desenho a menina coloca o mesmo nome do primeiro que executou: "O pôr do sol", porém não o faz com cores apagadas como naquele, nem expressa aqui um conflito. Ao contrário pode falar de coisas que sabe apreciar .Sente-se sujeito de seus sentimentos.

Verbaliza que gosta da tarde, das cores do pôr do sol, que estas cores a acalmam. Notamos que este desenho tem também o formato de um útero, só que aqui a criança o pinta com cores alegres e vivas, esmerando-se em sua criação, Esta "arte" da paciente parece representar o interior do corpo materno reparado. Os órgão internos da mãe, atacados no auge do sadismo revivido na situação pré cirúrgica, são agora coloridos, como numa restituição.

Mais à frente neste mesmo artigo de 1929, Klein conclui que após a expressão de desejos destrutivos, a criança pode demonstrar tendência reativas, e "vemos constantemente que o desenho e a pintura são usados como um meio de restaurar as pessoas".

Desenho 6

A flor

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Verbalização:

P- É uma flor. Ela traz alegria. Nasce para animar as pessoas... Ela não morre, mesmo quando morre.

A- Como uma força, como uma esperança, algo que não se apaga no meio da confusão.

P-É: Ela está lá.

Em "Estágios Iniciais de Conflito Edipiano e Formação do Superego", Klein sublinha que:

"A própria ansiedade que é proeminentemente uma agência inibidora no desenvolvimento do indivíduo, é ao mesmo tempo um fator de importância fundamental na promoção do crescimento de seu ego e da vida sexual".

No capítulo 10, sobre as Situações de Ansiedades Arcaicas, Klein aponta que "À medida que sua relação com a realidade avança, a criança faz uso crescente das relações com seus objetos e suas várias atividades e sublimação como um auxílio contra o medo do superego e dos impulsos destrutivos. Meu ponto de partida foi que a ansiedade estimula o desenvolvimento do ego".

Atenuada a pressão do superego, pela interpretação dos desenhos anteriores, a criança faz este movimento de reparação. Simon (1986) comentando Klein, diz que as "sublimações podem instalar-se movidas por tendências reparatórias." Se o superego continuasse tirânico, a reparação e sublimação não seriam possíveis. Ficaria só culpa pela destruição.

Os estados depressivos aumentam a integração do ego. Aumentada a capacidade de síntese, é possível uma aproximação mais realista entre as situações internas e externas. A paciente pôde chegar a uma melhor compreensão de suas angústias persecutórias e depressivas.

Segundo Simon, os objetos externos que estavam cindidos entre "aterrorizantes e, idealizados, vão ficando cada vez mais próximos da realidade. Nessa aproximação progressiva, à medida que os maus aspectos dos objetos vão sendo atenuados pelos aspectos bons, também a assimilação do superego pelo ego vai aumentando. Aumentam as tendências para a reparação . As sublimações e reparações se tornam os meios preponderantes para evitar ou diminuir as angústias depressivas".

Vemos aqui a reparação como forma de elaborar a culpa e reconstruir a relação com os objetos atacados em fantasia e introjetados. É o que vemos também nas obras de arte, na pintura, na escrita. Minha paciente esmerou-se no desenho e na pintura da rosa dizendo que ela traz alegria, que ela está lá. Pôde após mais algumas sessões ,submeter-se à cirurgia com certa tranquilidade.

Notemos que a reparação do objeto é também uma reparação de si, por isto as palavras da menina: ela está lá, que contrasta com a fala do segundo desenho. "Ela" é a mãe boa, a analista, a própria paciente.

A partir da destrutividade, da cisão, foi possível a integração. O holding, a presença do bom objeto na presença da analista, foi o que permitiu à menina diminuir persecutoriedade, a culpa e reparar.

É na transição entre a posição esquizoparanóide e depressiva que parece emergir um Eu. O trecho seguinte do artigo de Persicano (2000) parece definir belamente aquilo que foi se constituindo durante as sessões de minha paciente.Transcrevo-o:

"Nessa transição vai sendo criado um novo campo de vivências ou estado de ser no qual um sentido de Eu - dade vai ganhando espaço, isto é, vai se desenvolvendo a subjetividade, entre a distinção emergente entre símbolo e simbolizado, entre os próprios símbolos e a coisa simbolizada, entre os próprios pensamentos e aquilo a respeito do que alguém pensa".

A flor trazida pela minha paciente é esta Eu-dade. Remeto-os à poesia de Drummond com a qual introduzi este caso clínico. O escritor criativamente diz que uma flor nasceu: furou o asfalto, o medo, o ódio.

Conclusões:

"Na paisagem do rio
difícil é saber onde começa o rio,
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem
onde a pele
começa da lama,
onde começa o homem
naquele homem"
(João Cabral de Melo Neto)

 

O percurso deste trabalho fez-me refletir sobre a constituição da subjetividade humana. Subjetivo, define-se no dicionário Houaiss por:

-próprio para servir de sujeito.

-aquilo que pertence ao sujeito pensante e a seu íntimo.

Algo da ordem do sujeito essencial que em algum momento muito arcaico se colocou em movimento. O que o coloca em movimento?

Já me referi na introdução deste trabalho à etimologia da palavra agressividade: movimento para frente.
Primeiro movimento para constituir o psiquismo, mas que não caminhará sem a primeira complementariedade ou simultaneidade: libido narcísica.

(Lembremo-nos: criação é trabalho libidinal)

Caminho em direção a que?

À constituição de uma subjetividade, de uma realidade total de um ser individual ou seja, uma entidade. Entidade que só o é, porque se contrapõe, se contrasta e confronta com a alteridade, ou, palavras de Octávio Paz: "a outridade, natureza ou condição do que é outro, distinto de mim."

Reconhecer o objeto, sua alteridade, a outri-dade, é agüentar o amor e o ódio pelo mesmo objeto, é ter consideração e tentar reparar.

Persicano (2000) em "Considerações a respeito do sujeito dialeticamente constituído/descentrado da Psicanálise", nos aponta que:

"O eu humano é por assim dizer, um eterno condenado a um estado de ser cindido entre diferentes organizações estruturais objetais que nunca poderão se juntar em um único eu, ilusão com a qual vive o sujeito que necessita se sentir dono criador da própria história".

No trabalho realizado com esta paciente pude perceber com clareza estes movimentos em que na oscilação entre as posições , uma subjetividade vai se constituindo, e a paciente podia ir se apoderando de seus próprios sentimentos, desejos e convicções. Pude perceber também a veracidade da observação de Ogden, à pg 34 de Sujeitos da Psicanálise , onde o autor propõe que "As posições coexistem umas com as outras numa relação dialética. "

Esta afirmação emergia com clareza durante os desenhos de minha paciente, tornando para mim a teoria extraordinariamente viva. Momento criador. Termino este trabalho com uma poesia de Drummond que parece-me ilustrar bem aquilo que tem o humano de capacidade criadora, aquilo que está potencialmente dentro de cada um e pode permitir segundo o que lhe possibilitem, a construção de uma subjetividade.

"O serralheiro não sabia
o ato da criação como é potente.
E na coisa criada se prolonga,
ressoante...
...É dentro em nós que as coisas são,
ferro em brasa - o ferro de uma chave"
(Carlos Drummond de Andrade)

 

BIBLIOGRAFIA

Hinshelwood, R. D. Dicionário do Pensamento Kleiniano. São Paulo: Editora Artes Médicas. pg 61-81, 127-135

Klein, Melanie. A Psicanálise de Crianças .Rio de Janeiro: Imago Editora - 1997.pg 145-168, 196-258

Klein, Melanie. Amor, Culpa e Reparação. Rio de Janeiro: Imago Editora - 1996.pg 197-228

Ogden, Thomas. Os Sujeitos da Psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo- Livraria e Editora - 1996
Pgs 29-44

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Fátima Cristina Monteiro de Oliveira
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