FREUD, ROUDINESCO E EDIPO

Nora Beatriz Susmanscky de Miguelez

 

O interessante livro "La Famille em désordre" de Elizabeth Roudinesco , propõe-se analisar as perturbações profundas que nossa época gera na família.

Perseguindo esse objetivo, realiza um instigante percurso que tem início na análise desenvolvida por C. Lévi-Strauss dessa instituição como fenômeno universal da cultura. A proibição do incesto, que determina o intercambio e a circulação das mulheres, constitui o ponto de sustentação elementar e necessário para a génese da família. Segue-se uma história dessa instituição, que leva à autora a analisar as vicissitudes da figura do pai e a mostrar o declínio de sua função. Paralelamente, assiste-se ao aumento da importância da mãe e da mulher em geral, o que leva a definir como igualitária a ingerência relativa de cada membro do casal parental nas famílias atuais. Porém, essas relações parecem encaminhar-se para o predomínio materno. Todas essas mudanças que desagregaram a família patriarcal são fonte de profundas angústias que sacodem o corpo social e a psique dos seus membros.

Nesse contexto, Roudinesco analisa o "invento" freudiano da família edipiana . É sobre o desenvolvimento dessa análise que quero me centrar, porque no percurso da mesma, a autora avança determinadas afirmações sobre as que gostaria de fazer alguns comentários.

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O primeiro comentário se refere ao uso do termo "invenção": "invenção da família edipiana" , "invenção do modelo do homem edipiano" , "invenção do Ödipuskomplex" , "reinvenção de Édipo" , "invenção freudiana do Complexo de Édipo" , etc.

Freud não se considera inventor, mas sim descobridor do Complexo de Édipo. Assim, a mesma Roudinesco cita uma frase freudiana que pertence ao "Esquema da Psicanálise": "A descoberta do Complexo de Édipo é suficiente para que a psicanálise tenha seu lugar entre as aquisições mais preciosas do gênero humano."
Que diferença estabelecer entre "inventar" e "descobrir"? Segundo os dicionários, o primeiro termo, tanto em francês quanto em português , enfatiza a produção de algo novo, que não existia previamente. Assim, inventa-se a pólvora, mas não o vírus da pólio. Já o segundo faz referência ao levantamento de um véu que encobria algo pré- existente. Descobre-se aquele vírus, mas não a pólvora.

A escolha do primeiro termo pela autora, me parece o reflexo de sua posição em relação ao conceito freudiano de Complexo de Édipo, tal como ela a explicita no decurso dos capítulos citados. Com efeito, para ela, Freud "inventou" o conceito como se inventa um instrumento, ao serviço de determinados interesses, desejos ou propósitos, conscientes ou inconscientes. Assim, por exemplo, ela enuncia:
"Freud reinventa Édipo para responder de forma racional ao terror da irrupção do feminino e ao medo do apagamento da diferença sexual.".

"Freud utiliza a personagem (Édipo) porque ele mesmo está tomado por identificações às antigas dinastias reais".

"Freud pôde assim dar valor às antigas dinastias heróicas para projetá-las na psique de um sujeito culpável de seus desejos.".

"...esclarecem-se aspetos sutis da invenção psicanalítica: a correlação que ela estabelece, em fins do século XIX, entre o sentimento de declínio da função paterna e a vontade de inscrever a família no interior de uma nova ordem simbólica.".

Considero que essas hipóteses de Roudinesco são possíveis. No contexto de construção de um conceito intervêm sempre elementos mais ou menos arbitrários, mais ou menos subjetivos, mais ou menos datados pelas preocupações de uma época para as que se "inventam" soluções.

Mesmo assim, penso que está presente uma dimensão de descoberta no conceito freudiano de Complexo de Édipo, que talvez Roudinesco não enfatize. Parodiando o dicionário, diria que Freud levanta um véu: aquele que encobria os efeitos, no sujeito, da lei de proibição do incesto segundo a modalidade de sua inscrição na cultura. Esses efeitos foram designados por ele como desejos incestuosos e hostis e constituíram o núcleo do Complexo de Édipo, a partir da enunciação freudiana. Hoje, a universalidade de tais efeitos pode parecer-nos discutível . É possível considerá-los relativos a determinados tempos e culturas. Mas, na Viena de finais do século XIX, foi essa a descoberta de Freud, pertinente àquilo que desvelava nas produções do inconsciente, nessa época e local.

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Outra afirmação que chamou minha atenção, aparece no início do Capítulo 3. A autora se refere ao fato de que Freud considerava o Complexo de Édipo como um princípio essencial da psicanálise. Na seqüência, coloca entre aspas que o tal Complexo seria "um fundamento da sociedade, na medida em que asseguraria uma escolha de objeto normal" . As aspas da frase levam a crer que se trata de uma citação de Freud. Mas não aparece referência bibliográfica alguma.

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Um outro aspecto da argumentação da autora aparece através das seguintes afirmações:
"Caindo do céu dos deuses, o mito e a tragédia investem o campo dos sofrimentos comuns. Freud pode, então, inventar seu Ödipuskomplex.".

"Ao preço dessa distorção, Hamlet se transforma para Freud na prova clínica da existência do Complexo..." .
"Associando uma tragédia do destino (Édipo) a uma tragédia do caráter (Hamlet), Freud reuniu os pólos necessários para a fundação mesma da psicanálise...".

"E é porque ele queria assinar a Hamlet esse lugar de fundamento na história da clínica...".

Penso que Roudinesco exagera o valor heurístico para Freud da mitologia, da tragédia de Sófocles e do drama de Shakespeare. Para examinar isso, consideremos as duas fontes que a autora menciona e cita.

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Na carta 71 , dirigida a Fliess, Freud começa fazendo referência a sua auto-análise, que considera "o essencial que agora tenho e promete ser de supremo valor para mim quando acabe" . A seguir, narra um fragmento importante dessa auto-análise, que continua e completa o relato começado na carta anterior, a de número 70. E conclui: "Muito fácil não é. Ser completamente sincero consigo mesmo é um bom exercício. Um único pensamento de validade universal me tem sido dado. Também em mim tenho achado o desejo pela mãe e o ciúme pelo pai e agora considero isso um sucesso universal da infância .".

Penso que a citação fala por si mesma a respeito de qual foi a fonte principal da descoberta freudiana de aquilo que, muitos anos depois ( treze, para ser precisa), chamaria de Complexo de Édipo. É, sem dúvida alguma, sua auto-análise. Mas a auto-análise não é a única fonte. A palavra "também", na citação, aponta sem ambigüidades, aos seus pacientes. Estes habitam o território da correspondência com Fliess em forma assídua e constante. Por outra parte, já na Carta 69 (21-9-1897),na qual Freud faz abandono explícito da teoria da sedução, ele afirma que, nos neuróticos, "...a fantasia sexual apropria-se quase sempre do tema dos pais", início da pista que o leva a descoberta dos desejos incestuosos e hostis que enuncia na carta 71. Só depois da citação que reproduzi aqui, Freud ocupa-se da tragédia de Sófocles . Suas palavras deixam claro que não se trata da fonte de sua descoberta e sim de uma mera ilustração: "Se isto é assim, compreende-se o poder de cativar de Édipo Rei..." . Do mesmo modo, menciona o drama de Shakespeare: "Fugazmente, passou pela minha cabeça que o mesmo poderia estar no fundamento de Hamlet".

b -

Em "Os Sonhos da Morte de Pessoas Queridas" , no Capítulo V da "Interpretação dos Sonhos", Freud assevera que esse tipo específico de produção onírica expressa a realização do desejo infantil recalcado da morte de determinados seres amados, notadamente o progenitor do mesmo sexo que o sonhador, que foi sentido como competidor. Para demonstrar essa hipótese, inicia um longo percurso.

Ocupa-se, em primeiro lugar, do desejo da morte dos irmãos rivais. Numerosos exemplos clínicos e análises de sonhos infantis são caracteres marcantes do texto. A seguir, centra-se nos anelos mortíferos dirigidos aos pais. Freud diz: "...as coisas apresentam-se como se desde muito cedo aparecesse uma preferência sexual, como se o menino visse no pai, e a menina na mãe, competidores no amor, cujo desaparecimento só poderia trazer vantagens." . Segue-se uma longa justificação teórica, que Freud apóia explicitamente nas "análises dos neuróticos" . Logo depois, expõe dois exemplos, extraídos da observação de crianças e ainda considera longamente os sintomas e os sonhos em três casos clínicos (duas mulheres e um homem). Uma vez apresentada toda essa casuística, conclui teorizando a universalidade da conjunção de desejos incestuosos e hostis em todo sujeito, neurótico ou normal.

Será só depois de todo esse extenso périplo que aparecem as menções a Édipo Rei e a Hamlet. Os mesmos cumprem novamente - como na Carta 71- uma função ilustrativa. Trata-se de uma aplicação em personagens literários, do conjunto de hipóteses presentes na análise dos neuróticos.

Temos agora suficientes elementos como para voltar as citações do livro de Roudinesco que transcrevi acima. Parece-me evidente que Freud não oferece apóio para que se considere que Édipo o Hamlet são "provas clínicas", ou "lugares fundadores" do Complexo de Édipo. Já a auto-análise e a abundante casuística presente nos textos, talvez sejam mais apropriadas para cumprir essa função. Também é obvio que a interpretação dos "sofrimentos comuns" não "caiu do céu". Muito pelo contrário, caiu do intenso trabalho analítico realizado por Freud para decifrar as formações do inconsciente: sintomas, sonhos, atos falhos.
Por tudo isso, penso que nem remotamente Édipo e Hamlet foram "os pólos necessários para a fundação mesma da psicanálise", como Roudinesco afirma. Sem dúvida nenhuma, ambos personagens possuem para Freud uma rica função ilustrativa e metafórica, mas não decidem sobre as características que ele outorga ao Complexo de Édipo.

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Outro fato apóia essa hipótese: como mencionei antes, treze anos se passam entre a formulação da conjunção de desejos incestuosos e hostis a respeito dos progenitores e sua denominação como "Complexo de Édipo". Será somente em 1910, no artigo intitulado "Sobre um tipo especial de escolha de objeto no homem", que Freud usa pela primeira vez essa expressão. Será que não se ocupa dele no intervalo? Muito pelo contrário, verdadeiros pilares da teorização e da clínica edipiana são constituídos nesse período. Sem pretender transcrever aqui a extensa lista de textos publicados entre 1897 e 1910, e que se ocupam do conceito, recordemos sinteticamente três: "Fragmento de análise de um caso de histeria" (Dora) publicado em 1905, "Análise da fobia de uma criança de cinco anos" (o pequeno Hans) publicado em 1907 e "A propósito de um caso de neurose obsessiva" (o Homem dos Ratos) publicado em 1909. Neles, não existe dúvida de que o Complexo de Édipo e intensamente analisado e trabalhado. Claro que leva outro nome: é o "complexo nuclear das neuroses" ou ainda o "complexo parental". A denominação a partir do personagem de Sófocles, parece não ter muita importância para Freud.

TRABALHO A SER PUBLICADO NA REVISTA DO "DEPARTAMENTO FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE"