Trabalho I – Abril de 2006

Otávio Augusto Moreira D`Elia


PAIXÕES QUE ALUCINAM: UMA ANÁLISE DAS FORMAS DE MANIFESTAÇÃO DO INCONSCIENTE

 

INTRODUÇÃO

O tema proposto para nossa investigação – as formas de manifestação do inconsciente nos três personagens do filme “Paixões que alucinam”, do diretor Samuel Fuller: Stuart, Tren e Boden – nos traz de início – e de acréscimo – duas outras questões fundamentais (ou ao menos preambulares): de qual inconsciente estamos falando e de que forma ele se dá a conhecer, isto é, de que maneiras ele se manifesta no sujeito.

Então, antes que possamos nos perder no exercício ao qual o trabalho nos convida – e nos seduz, nesse convite – devemos delimitar com algum rigor os conceitos dos quais lançaremos mão em nossa exposição. O apoio conceitual que nos irá guiar nesse empreendimento ousado virá, essencialmente, d´A Psicoterapia da Histeria. Contudo, advertimos desde já que o fato do filme lançar mão de algumas idéias derivadas do que poderia ser chamado de uma vulgarização do pensamento freudiano, nossos comentários poderão desatender, em algumas passagens, o rigorismo a que nos propomos no início. Isso porque essa “vulgata freudiana” acabou por embaralhar conceitos, agrupando-os sem qualquer preocupação cronológica e ou coerência lógica, em total desatenção ao conjunto do pensamento freudiano, resultando na apresentação de fenômenos psicanalíticos de maneira um tanto grosseira, a ponto de torná-los de difícil reconhecimento. Voltaremos mais adiante a essas questões. De todo modo, esses comentários que eventualmente não pertençam ao texto freudiano em referência serão apontados no curso do trabalho, como medida de esforço para conservar a sua coerência e a fidelidade à obra de Freud indicada.

CONSIDERAÇÕES TÓRICAS PRELIMINARES

Como se articula o inconsciente neste texto inicial de Freud, A Psicoterapia da Histeria? Por certo, não estaríamos autorizados a pensar o inconsciente como um “locus” dentro de um aparelho psíquico estruturado , até porque estamos muito distante do estabelecimento dos conceitos da metapsicologia. Parece possível pensar aqui não em uma instância psíquica mas em um processo em que alguns elementos são retirados do comércio associativo do tecido psíquico, recalcados e mantidos à distância, não sendo acessíveis sem antes vencer a poderosa ação de uma força de resistência. Freud descarta desde logo a possibilidade da existência de “uma segunda inteligência inconsciente”, que considera apenas uma aparência:

Todas essas conseqüências da pressão dão-nos uma impressão ilusória de haver uma inteligência superior fora da consciência do paciente, que mantém um grande volume de material psíquico organizado para fins específicos e ficou uma ordem planejada para seu retorno à consciência. Suspeito, porém, de que essa segunda inteligência inconsciente nada mais eja do que uma aparência. (PH, 286)

Na verdade, ao invés de lançar mão de uma “segunda instância da consciência”, Freud, na Psicoterapia da Histeria, desenvolve a tese de que a histeria encontraria sua etiologia no recalcamento de uma idéia que se mostra incompatível com a cadeia associativa do sujeito, ou seja, a retirada da idéia intolerável dessa cadeia de associações traduziria uma estratégia de defesa do aparelho psíquico do sujeito. Nesse sentido, o recalcamento dessa idéia iria conservá-la como um traço mnêmico fraco, de débil intensidade, enquanto que o afeto que lhe foi arrancado retornaria em alguma “inervação somática”, isto é, retornaria para marcar o corpo do sujeito:

No que afirmei até agora, a idéia de resistência se impôs no primeiro plano. Demonstrei como, no curso de nosso trabalho terapêutico, fomos levados à visão de que a histeria se origina por meio do recalcamento de uma idéia incompatível, de uma motivação de defesa. Segundo esse ponto de vista, a idéia recalcada persistiria como um traço mnêmico fraco (de pouca intensidade), enquanto o afeto dela arrancado seria utilizado para uma inervação somática. (Em outras palavras, a excitação é “convertida”.) Ao que parece, portanto, é precisamente por meio de seu recalcamento que a idéia se transforma na causa de sintomas mórbidos – ou seja, torna-se patogênica. Pode-se dar a designação de “histeria de defesa” à histeria que exiba esse mecanismo psíquico. (PH, 298)

Assim, encontramos aqui alguns aportes teóricos importantes que nos servirão mais adiante na análise dos personagens do filme. Nesse momento da obra freudiana, o inconsciente é pensado como resultando de um processo de defesa, através do qual uma idéia incompatível com o ego (usado aqui como sinônimo de consciência) é retirada do comércio associativo e conservada como um traço mnêmico de fraca intensidade através do esforço do recalcamento; o afeto que acompanharia essa representação (idéia) é arrancado e retorna ao corpo, convertido. O mecanismo, contudo, não consegue dar conta de uma supressão completa da idéia; ao contrário, em um determinando momento ele irá malograr e o afeto arrancado marcará um lugar no corpo do sujeito.

Desse modo, a idéia incompatível que se tornará o chamado núcleo patogênico - precisamente porque veio a ser recalcada – não será introduzida no aparelho psíquico à maneira de uma cápsula estranha. Na verdade, esse núcleo foi arrancado da cadeia de associações do sujeito e sua patogenia resulta desse recalcamento. Mas é importante que se ressalte que esse núcleo não foi radicalmente extraído do ego: suas camadas externas, como Freud irá descrever, continuam a manter ligações com partes do ego “normal”. O que se quer dizer é que a fronteira entre ambos é tênue e de difícil estabelecimento e que o resultado da psicoterapia seria alcançado não com a extirpação cirúrgica de um corpo estranho e doente mas sim com a dissolução da resistência e com a incorporação do recalcado na cadeia associativa do sujeito, portanto, dentro de sua fala:

Farei agora um ou dois comentários adicionais sobre o quadro da organização do material patogênico a que acabamos de chegar. Dissemos que esse material se comporta como um corpo estranho, e que também o tratamento atua como a remoção de um corpo estranho do tecido vivo. Estamos agora em condições de ver onde essa comparação fracassa. Um corpo estranho não entra em qualquer relação com as camadas de tecido que o circundam, embora as modifique e exija delas uma inflamação reativa.Nosso grupo psíquico patogênico, por outro lado, não admite ser radicalmente extirpado do ego. Suas camas externas passam em todas as direções para partes do ego normal; e, na realidade, pertencem tanto a este quanto a organização patogênica. Na análise, a fronteira entre os dois é fixada de maneira puramente convencional, ora num ponto, ora em outro, sendo que em alguns lugares não pode em absoluto ser estabelecida. As camas internas da organização patogênica são cada vez mais estranhas ao ego, porém mais uma vez sem que haja nenhuma fronteira visível em que se inicie o material patogênico. De fato, a organização patogênica não se comporta como um corpo estranho, porém mais como um infiltrado. Nesse símile, a resistência deve ser considerada como aquilo que se infiltra. E o tratamento também não consiste em extirpar algo – a psicoterapia até agora não é capaz de fazer isso – mas em fazer com que a resistência se dissolva e assim permitir que a circulação prossiga para uma região que até então esteve isolada. (PH, 302/303)

Agora, de posse desses conceitos básicos, passamos à tarefa da análise do filme e das situações em que o diretor faz com que os três personagens centrais da trama, manifestem o inconsciente.

O FILME

A trama do filme é razoavelmente simples e os temas que surgem parecem corresponder, de um lado, às teses anti-manicomiais em voga nos anos 60 inspiradas nos trabalhos de Laing, Cooper e Basaglia e, de outro lado, nas questões políticas cruciais do mesmo período, que podem ser agrupadas em três blocos: a corrida armamentista e ameaça da guerra atômica, a segregação étnica e a luta dos negros americanos pela igualdade de direitos e a guerra fria, marcada pela divisão rígida do mundo entre o bloco capitalista ocidental e os países comunistas. Essa tripartição dos grandes debates que marcaram com ferocidade os anos 60 (vale lembrar que o filme por ter sido produzido em 63 não trouxe um outro episódio de importância decisiva na época, a Guerra do Vietnam) estará presente nos três personagens que concentram a ação do filme: o sulista e ex-comunista Stuart; o primeiro negro a freqüentar uma universidade no sul dos Estados Unidos, Trent e o físico Boden, prêmio Nobel e responsável pelos projetos da bomba atômica e dos mísseis.

O adoecimento psíquico dos três personagens parece encontrar sua gênese nesses conflitos marcantes do período: Stuart não suportará o escárnio e o desprezo que sofrerá ao voltar aos Estados Unidos, após ter aderido ao comunismo e posteriormente, renunciado, voltando ao seu país em uma troca de prisioneiros; Trent sucumbe às pressões, após servir como uma autêntica “cobaia humana”,como o primeiro estudante negro a freqüentar uma universidade no preconceito sul dos Estados Unidos; por fim, Boden mergulhará em uma estranha regressão infantil, entrando em colapso pelo penosa e intolerável convivência com a idéia da destruição da humanidade, em razão da crescente corrida armamentista entre os blocos inimigos em que o mundo estava dividido.

Entretanto, como escapam aos limites deste trabalho as questões política e estéticas, abandonamos no nascedouro a tentação de toma-las como tema de discussão, retornando à nossa preocupação inicial e resgatando a análise dos modos pelos quais o inconsciente se manifesta nessas três figuras centrais do filme. Antes disso, porém,uma sucinta apresentação a trama servirá como introdução e suporte à compreensão do pano de fundo que cerca o drama dos três personagens.

O filme trata da estória de John Barret, jornalista obcecado pela fama que pretende se fazer passar por alienado para ser admitido em um hospital psiquiátrico, a fim de desvendar um crime, o assassinato de um sujeito chamado Sloan, morto no local. Nas cenas iniciais, encontramos Barret terminando seu processo de treinamento com um famoso psiquiatra: o jornalista será um sujeito que alimenta uma paixão incestuosa por sua irmã e que não consegue conter suas ações, atacando-a algumas vezes. O papel da irmã é assumido por Cathy, namorada de Barret, dançarina de casa noturna (que diz só faz o espetáculo por dinheiro) que, a todo momento, procura demovê-lo da idéia.

As súplicas de Cathy não alcançam qualquer efeito sobre o jornalista que ambiciona o prêmio Pulitzer por sua perigosa aventura. A jovem comparece a uma delegacia, presta queixa de Barret, fingindo ser uma irmã temerosa de suas atitudes; na seqüência, o jornalista é internado e começa sua jornada no hospital psiquiátrico, buscando as informações que necessita para encontrar o criminoso.

À medida que prossegue em sua investigação, inquirindo cada um dos três personagens – que teriam presenciado a cena do crime, sob a mesa – Barret vai mostrando claros sinais de perturbação psíquica, piorando progressivamente. Com Stuart consegue aproximar-se já visivelmente perturbado após o episódio em que é ferozmente atacado pelas “ninfomaníacas” (as descrições clínicas do filme parecem bastante imprecisas, próximas a informações do senso comum); mas já com Trent, começa a envolver-se em seus delírios de perseguição racista até chegar a um estado de desorganização quando rasga o seu retrato feito por Boden, aos gritos, não se reconhecendo mais na figura.

A degradação psíquica de Barret é vertiginosa; submetido aos tratamentos prescritos pelo Dr. Cristo, diretor do hospital, o jornalista chega a receber tratamento de eletro-choque, após o qual apresenta uma dificuldade cada vez maior para expressar-se através da fala. A cada visita, Cathy percebe a piora de Barret que parece acreditar, cada vez mais, na estória criada.

Quando Barret ouve de Boden que o criminoso é Wilkes - o enfermeiro teria cometido o crime para impedir Sloan de revelar ao Dr. Cristo que aproveitava das ninfomaníacas - já apresenta um profundo desequilíbrio; toma o seu retrato que Boden havia feito e aos gritos de “não sou eu” é mais uma vez isolado dos outros pacientes. Quando acorda, não sabe mais quem é o autor do crime e repete frases desconexas “fui eu, foi Cathy, foi Dr. Cristo”.

O drama caminha para seu desenlace: Barret sonha (ou delira) que está sob chuva intensa no hospital e desperta aos gritos, ao lado de Pagliacci, um curioso personagem de inspiração operística, que passa o filme cantarolando famosa área da ópera homônima (teria sido internado por assassinar sua mulher). Na seqüência procura Dr. Cristo para contar que “é uma fraude, que não é louco, sei quem matou Sloan”; o diretor apenas pede que “esqueça Sloan e faça companhia para Pagliacci”. Barret procura Wilkes e, ao encontrá-lo, trava uma luta feroz por todo o hospital, arrancando-lhe aos socos a confissão.

Por fim, em um desfecho sombrio do filme, o jornalista mergulha em uma anunciada “esquizofrenia catatônica”, sob o olhar desesperado de Cathy que o chama inutilmente, sugerindo que passará sua vida agora inerte e mudo, ao lado dos outros pacientes, Stuart, Trent, Boden e Pagliacci, cada um deles imerso em suas agonias pessoais e todos perfilados no mesmo corredor.
Em pinceladas rápidas, este é o enredo do filme “Paixões que alucinam”. Cabe agora, examinar individualmente o modo como os personagens manifestam o inconsciente, quando Barret deles se aproxima para extrair a informação que procura: o assassino de Sloan. Para tanto, seguiremos a seqüência do filme.

STUART

Stuart é um rapaz branco, católico, sulista, filho de fazendeiros que se apresenta como o General Jeb Stuart, herói confederado da Guerra da Secessão, que assolou os Estados Unidos na segunda metade do século XIX. Permanece em estado constante de delírio, usando um chapéu de comandante e age e fala como general.

Após uma tentativa de contato inicial, Barret finalmente o encontra sozinho, enquanto se recupera dos ferimentos sofridos pela investida das ninfomaníacas. Senta-se ao seu lado, começam a conversar vagamente, até que Stuart pronuncia a palavra “comida”.

-Não como bem desde o Japão, diz. Em seguida, impulsionado pela referência ‘Japão” os elementos da cadeia associativa vão se sucedendo rapidamente, como a disparar uma enxurrada de material mnêmico e simbólico.

O que surpreende aqui é a forma como as associações avançam sem qualquer restrição ou barreira. À medida que o discurso de Trent vai literalmente escorregando de uma representação para outra (de Japão vamos a Buda “que fica me olhando”, depois a monges passando, depois gueixas, “pedem que Buda cuide de mim”; daí para comunistas na Coréia, depois trem, brinquedo, trem novamente, Monte Fuji, “não, é o trem”, “devíamos proteger o trem mas fomos capturados”, “estava frio”) o (ou os) núcleos patogênicos vão se revelando de maneira fácil, sem qualquer resistência. Tudo se passa como se o recalcado pudesse ser apanhando sem esforço, sem encontrar qualquer resistência por parte do paciente. O inconsciente se revela aqui quase como no monólogo final de “Ulysses”, de James Joyce , uma explosão de imagens e associações que, ao final, dão a conhecer o drama de Stuart.

Soldado capturado na Coréia, Stuart encanta-se com o comunismo e adere ao regime. Conta que seu pai só lhe deu “intolerância e ignorância”, não o ensinando a ter orgulho de seu país: “puseram um câncer em mim”, não sentia nada pelo meu país”. Os comunistas, ao contrário, “me fizeram sentir importante, me ensinaram tudo e me deram uma mulher”. Um sargento preso, contudo, fez ruir essa crença no comunismo.

“O Sargento Callowed me contou coisas que nunca imaginei, me contou coisas que me fizeram sentir orgulho de meu país, coisas que os meus pais deveriam ter contado; abandonei o comunismo e voltei, ninguém falava comigo, o meu pai cuspia em mim; fui expulso do exército, os jornalistas não paravam de me perseguir.”

Depois da avalanche de lembranças e representações, Stuart consegue verbalizar sua história: entre o momento inicial e a fala final, as representações se encaixam com perfeição, sem qualquer resistência a sua eclosão.

Não é assim, contudo, que o processo se desenvolve, tal como Freud nos apresenta na sua Psicoterapia da Histeria: o acesso ao núcleo da organização patogênica é muito difícil e depende de uma série de tentativas e manejos para ser alcançado:

“Se tivermos que iniciar uma análise assim, em que tenhamos razões para esperar uma organização do material patogênico como essa, seremos ajudados pelo que nos ensinou a experiência,ou seja, que é inteiramente inútil tentar penetrar direto no núcleo da organização patogênica. (...) Não há nada a fazer senão manter-se, a princípio, na periferia da estrutura psíquica.” (...) Não podemos esperar que as comunicações livres feitas pelo paciente, o material proveniente das camadas mais superficiais, facilitem ao analista reconhecer em que pontos o caminho conduz às profundezas ou onde ele irá encontrar os pontos de partida das ligações de idéias que está procurando. (PH, 304/305)

Na verdade, o relato feito com facilidade pelo paciente, como sugere Freud, quando submetido a uma visão crítica, evidenciará “lacunas e imperfeições” (PH, 305).

Em Stuart, contudo, as organizações inconscientes se dão a conhecer de modo límpido, sem qualquer resistência, sendo trazidas à fala do personagem com extrema rapidez e coerência. Não é assim que a prática clínica nos ensina; ao contrário dessa facilidade, nos deparamos com dificuldades complexas ao lidar com a resistência nos pacientes, que exigem muito do analista e da sua capacidade de interpretação e de encontrar as ligações entre os elementos das camadas que se sobrepõem ao núcleo patogênico.

“A persistente resistência do paciente é indicada pelo fato de que as ligações se interrompe, as soluções não aparecem e as imagens são recordadas de forma indistinta e incompleta. Voltando a olhar de um período posterior para um período anterior da análise, muitas vezes ficamos atônitos diante da maneira mutilada com que surgiram todas as idéias e cenas que extraíamos do paciente pelo método da pressão. Precisamente os elementos essenciais do quadro estavam faltando – a relação do quadro com o próprio paciente ou com os principais conteúdos de seus pensamentos – e eis por que ele permanecia ininteligível.” (PH, 295)

Assim, o modo pelo qual o inconsciente se manifesta em Stuart não se assemelha à forma exposta por Freud; representa uma redução bastante incompleta do fenômeno, sugerindo uma facilidade que não se encontra na prática clínica ou na vida cotidiana.

Mas não é apenas por este aspecto que a cena está dissociada do modo de investigação do inconsciente proposto na Psicoterapia da Histeria. Há um outro aspecto igualmente importante, negligenciado no filme.

Quando as lembranças patogênicas são de alguma forma integradas à fala do paciente, ele experimenta uma sensação de alívio por esta integração: “Sempre que uma coisa nova é elucidada ou se atinge um estágio importante do processo da análise, também o paciente se sente aliviado e desfruta de um antegozo, por assim dizer, da sua libertação iminente.” (PH, 310)

O paciente sofre uma mudança em sua forma de se expressar, ou seja, a integração dos conteúdos patogênicos em seu discurso produzem sempre algum tipo de transformação do sujeito: “Quando uma lembrança patogênica ou uma ligação patogênica antes retirada da consciência do ego é revelada pelo trabalho da análise e introduzida no ego, verificamos que a personalidade psíquica assim enriquecida tem várias maneiras de expressar-se quanto ao que adquiriu.” (PH, 310/311)

Ora, em Stuart, os conteúdos inconscientes que emergem não são capazes de produzir qualquer transformação. Ao contrário, cessada a recordação, ele retorna ao seu estado de delírio. Não houve ab-reação, não houve qualquer incorporação das organizações patogênicas. O inconsciente está ali como uma cápsula, desligado das camadas do ego, intruso dentro do tecido psíquico, absolutamente distinto daquilo que Freud nos dá a conhecer a partir de sua experiência clínica e da sua elaboração teórica. Se esteticamente é interessante a apresentação das organizações inconscientes a cores, dentro de uma película em branco-e-preto, como recurso para causar impacto no público, do ponto de vista clínico a apresentação se ressente em razão das falhas aqui enumeradas.

TRENT

Trent é o primeiro estudante negro a ingressar em uma universidade no sul dos Estados Unidos. Contudo, justamente essa condição e a pressão excessiva que recai sobre seus ombros o levará a um colapso psíquico, resultando na sua internação.

Barret aproxima-se do jovem paciente que porta um cartaz com a frase: Integração e democracia não se misturam. Fora crioulo.” A inscrição revela o estado atual de Trent: vítima de racismo e perseguição, converte-se ele mesmo em perseguidor, em um interessante mecanismo psíquico da paranóia cuja abordagem, no entanto, escapa aos limites desse trabalho.

Barret aproxima-se de Trent em meio a essa fala delirante que cita insistentemente a Ku Klux Klan (organização de caráter racial que prega a supremacia branca e a segregação dos negros) e nela se incorpora, passando, na seqüência, a perseguir em desabalada correria, outro paciente negro que passava pelo corredor em que se encontravam.

Contidos, são levados ao isolamento onde podem repousar. É nesse momento que Trent tem um sonho revelador. (Introduzimos aqui uma advertência: Freud não trata na Psicoterapia da Histeria da manifestação das organizações inconscientes através dos sonhos, mas sabemos que esta é, por excelência, uma das suas formas mais notáveis de aparição. Assim, não temos contornar essa questão senão ultrapassando os limites do texto freudiano e admitindo a eclosão de conteúdos inconscientes através dos sonhos, como ocorre com Trent).

Mais uma vez, a manifestação inconsciente se dá através de imagens coloridas, apresentadas com a voz de Trent, narrando: “sou um garoto da selva amazônica; alguém arranha minha pele para transformar meu sangue em branco; arranha com dentes de piranha; a Suprema Corte decreta uma dança cerimonial para o fim imediato da segregação; la vem a KKK, - corra, corra! _ não consigo ver seu rosto! – corra, corra!” Vemos imagens de uma tribo de índios em que o menino tem sua pele efetivamente raspada; vemos as danças cerimoniais e vemos ao fundo, impressionantes figuras com a parte de cima do corpo recoberta por algo semelhante a folhagens brancas, impedindo a visão do torso e do rosto e lembrando associativamente a imagens dos cavaleiros mascarados da Klu Klux Klan.

Interessante o deslocamento produzido pelo sonho (aqui apenas mencionaremos o deslocamento, um dos mecanismos da elaboração onírica, sem qualquer aprofundamento): o jovem não é negro, mas índio; a pele é escura, contudo, continuando a marcar a diferença; a raspagem da pele pode remeter à experiência universitária recente, uma forma de ocupar o mesmo lugar dos brancos; as figuras recobertas, talvez feiticeiros, aludem diretamente à KKK e aparecem justamente acompanhadas dos gritos de “corra!”

Quando Trent acorda, exclama: - sempre o mesmo pesadelo! Eu me acalmo depois dos sonhos.

Aqui, temos novamente o mesmo fenômeno do caso de Stuart: embora o sonho possa ser lembrado (como ele mesmo diz, ao afirmar que se acalma após sonhar) produzindo até um certo alívio, ele não traz qualquer modificação na forma de expressão de Trent. Da mesma forma que Stuart, ele acessa conteúdos das organizações inconscientes, sem que tal acesso signifique qualquer alteração em seu discurso. Em poucos momentos o veremos voltar aos delírios, abandonando as associações trazidas pelo sonho.

O inconsciente, aqui acessado na forma de sonho, novamente parece ganhar uma forma de cápsula, mantida à parte da organização psíquica, como um produto bruto que ora surge, ora desaparece, sem trazer qualquer transformação para o sujeito, desaparecendo de sua fala com a mesma rapidez com que surgiu.

Freud fala insistentemente dos fios que ligam os núcleos patogênicos ao ego e do caráter tênue da fronteira entre ambos. Contudo, Fuller não transmite essa idéia através de suas personagens, como nos casos de Stuart e Trent (e como será com Boden, como veremos adiante), que se abrem para os seus núcleos inconscientes oferecidos sem qualquer resistência.

BODEN


Boden é um físico americano, agraciado com prêmio Nobel, que trabalhou nos projetos da Bomba Atômica e H e também com fusão nuclear, construção de mísseis e foguetes para a lua. Teria sucumbido à pressão de suas atividades, apresentando agora a mentalidade de uma criança de seis anos.

É dessa forma que Boden se apresenta a Barret, propondo que brinquem de esconde-esconde, como duas crianças. Na seqüência, assistimos um encontro de Cathy e Barret, em que este último informa à jovem que Boden está fazendo seu retrato.

Na cena seguinte, encontramos Boden segurando seu bloco de desenho e rindo infantilmente, quando de repente, algo que se parece com uma alucinação auditiva o interrompe e ele imagina estar sendo chamado pela Nasa e Terranova, local de onde decolavam foguetes em 1953.

O que se segue é inusitado: Boden recupera a consciência e passa produzir um discurso coerente e lógico sobre os perigos da humanidade diante do avanço científico:

- Nos sofisticamos na arte da matança, temos intelectuais demais; cansei da pílula diária do veneno da humanidade. Sou ciência pura; estamos à beira da destruição, como tigres. Dão quinze dias para a raça humana; não consigo viver com prazos finais; então desisti de viver.

Barret aproveita e indaga de Boden sobre o assassino de Sloan. Ainda ostentando coerência na sua fala, Boden explica que Wilkes é o assassino e que Sloan foi morto por ter-se confrontado com o enfermeiro, por este ‘aproveitar das loucas no pavilhão feminino.”

Enquanto fala, Boden encerra o desenho e o entrega a Barret que horrorizado com a figura, põe-se a gritar “não, não, não sou eu”, agredindo-o com seu bloco de desenhos. Boden se retrai e volta a se comportar como criança. “Não quero mais brincar com você!”

Mais uma vez um dos personagens acessa conteúdos que estão fora de sua cadeia associativa, permanece em contato com tais conteúdos através da fala e, mas uma vez, esses conteúdos voltam a se tornar inconscientes, sem produzir qualquer efeito transformador sobre aquele que fala.

Essa seqüência de modos semelhantes de vivenciar as organizações inconscientes nos levam a supor, no filme, a concepção de inconsciente como um grupo fechado e estanque de recordações que pode emergir na consciência e, portanto, aparecer na fala do personagem, sem aquelas características que Freud marcou para tais conteúdos em sua Psicoterapia da Histeria: ligações com o ego; disposição em camadas ao redor do núcleo patogênico; aparição dificultosa e bloqueada por uma série de momentos de resistências e, principalmente, possibilidade de fornecer alívio e compreensão para o sujeito, na medida em que é reintegrado na sua cadeia associativa.

Ao que parece, se Fuller foi corajoso nos temas que enfrentou, nas críticas que apresentou em seu filme, merecendo destaque não só por esses aspectos mas também por lançar mão de efeitos estéticos interessantes, como o contraste entre o branco-e-preto do hospital e o colorido das imagens inconscientes, dentre outros, questões que estão além dos limites desse trabalho, contudo, ao tematizar os conflitos psicológicos, não escapou de lançar mão de conceitos produzidos por uma vulgarização dos conceitos freudianos e de uma visão de inconsciente que guarda muito pouca relação com aquela que apresentamos aqui, amparados pela Psicoterapia da Histeria.


São Paulo, 02 de maio de 2006