RESUMO
O texto trata da relação entre modernidade, iluminismo, psiquiatria e psicanálise. Fala sobre o engodo iluminista e sobre a ditadura ideológica da medicina sobre a doença e sobre o apagamento do sentido de sujeito para o médico psiquiatra organicista moderno. A subjetividade não interessa mais. O que vale é o efeito que o elemento químico pode produzir sobre qualquer sujeito, independentemente do ele seja em sua singularidade, em sua particularidade, em sua pessoalidade.

Palavras chave: psicanálise, psiquiatria organicista, narcisismo, inibição da inteligência, grupo e subjetividade.

Emir Tomazelli
Psicanalista
Professor do Curso de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
Doutor pela USP em psicologia Escolar
Rua Arizona, 1046, casa 3
<emirtoma@dialdata.com.br

(Trabalho publicado na Revista Psicanálise e Universidade - n° 14 - Abril/2001)

 

PSIQUIATRIA ORGANICISTA, PATOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS E A RETÓRICA DO ILUMINISMO

 

1) "Dor e adversidade são parte da herança de todas as coisas vivas. É no mínimo tão fácil ser cruel negando-as como componentes da vida do homem, quanto é fácil ser cruel negando ajuda mútua." (Bion, W., p. 354)

2) "A civilização enferma paga o ônus pela falência de sua vitalidade desintegrando-se em uma minoria dominante, que governa com crescente opressão, mas sem liderança, e em um proletariado (interno e externo), que responde a esse desafio tornando-se consciente de ter uma alma própria e estruturando-se para mantê-la viva." [Arnold Toynbee(1948) - Study of History, in Bion, p. 346]

Cito Horkheimer, e, desde já, quero que ele marque minha indisposição pessoal diante da forma de pensar da psiquiatria organicista e da visão que a pesquisa que se diz científica me transmite. A citação fala por si mesma e não exige maiores explicações.

"Desde sempre o iluminismo, no sentido mais abrangente de um pensar que faz progressos, perseguiu o objetivo de livrar os homens do medo e fazer deles senhores. Mas, completamente iluminada, a terra resplandece sob o signo do infortúnio triunfal." (Max Horkheimer em parceria com Theodor Adorno)

Saliento apenas que minha crítica não se dirige ao esforço de visão, ao esforço consciente de evitar que o delírio substitua a realidade que há na idéia como proposta evolutiva "de um pensar que faz progressos", o peso da reprovação dirige-se ao método, ou melhor, à doença do método, seus vícios, seus perigos e sua sedutora afirmativa de que luz é mais realidade.

Por esse caminho, então, sinto necessidade de afirmar que o organicismo é um iluminismo e essa atitude mental torna problemática a investigação das dificuldades que se apresentam no campo da ausência de luz. O iluminismo moraliza o problema. O iluminismo se esquiva da turbulência emocional e dificulta a relação amistosa entre o delírio e o sonho de compreender a realidade que têm os cientistas. Além disso cria uma intensa animosidade com outras áreas do pensamento e da investigação uma vez que tenta uniformizar condutas, atitudes e elementos que são da ordem do singular, isto é, são da ordem do não universal; são efeitos decorrentes da subjetividade emocionada diante da curiosidade que vive quando encontra algum fato que mobiliza a alma daquele que observa. Para um psicanalista, a necessidade que um cliente pode vir a ter do uso continuado de medicação, expressa mais uma confirmação do diagnóstico do psicanalista sobre as dificuldades de elaboração psíquica de seu cliente (portador que é de uma deficiência simbólica seguida de desastre mental) do que fala a favor da eficácia da medicação. Isto é, o remédio e sua eficácia, mais esclarecem o quanto ainda falta ao sujeito percorrer do caminho simbólico para poder chegar aos níveis emocionais comuns aos humanos medianos e saudáveis - que também, tanto quanto os que estão doentes, têm que suportar fracasso, solidão e desamparo -, que vem, aos olhos de minha particular observação, demonstrar haver uma mais aprofundada compreensão da patologia em questão naquele caso. O iluminista crê, romanticamente que a supressão de sintoma é igual a cura. Para febre, antipirético, para psicose, antipsicótico; e aí temos o vírus comparado à mente. Além disso, essa 'postura' também não esclarece a função transformadora do remédio que é incapaz de levar em consideração a especificidade do nível evolutivo em que se encontra o doente que se apresenta para a consulta. Sendo um cala a boca mais que uma resolução, a clareza e a objetividade do método obscurece a pouca precisão dos resultados que obtém, e, sem mais nem menos, não deixa entrever a baixa eficiência daquilo que chama de remédio. Toma-se o particular pelo geral, toma-se o coletivo pelo singular e acaba-se por medicar uma curva estatística, uma linha mediana, um padrão normativo, mais do que permitem ao pesquisador ou ao médico a compreensão real da complexidade daquilo que é o emocional de cada um de nós operando.

Sem que estejamos minimamente de acordo com o fato de que existe, expressa nas atitudes do cotidiano humano, uma imensa gama de inteligências distintas (o que implica em uma construção distinta de "éticas", por assim dizer, produzindo realidades emocionais tão distintas que dificultam o andamento da carruagem no convivo social, tanto quanto dificultam a compreensão de um padrão por aquele que observa e busca fazer do fato ciência) e de que essas diferenças intelectuais são distribuídas de modo completamente aleatório, não escolhendo raça, credo, família ou educação, não chegaremos a ter a consciência e a discriminação fundamental do que é que um sujeito necessita no momento em que procura uma orientação médica psiquiátrica ou alguma ajuda psicoterapêutica. Sem reconhecermos que a psiquiatria organicista, na verdade, elimina as diferenças dos estados de saúde mental determinados pela diferença dos níveis de inteligência, como elimina também as tremendas diferenças quanto ao nível de evolução emocional no qual o sujeito se encontra - isto é, o remédio serve para todos sem discriminação, jamais se poderá compreender, nem tampouco afirmar qual tratamento seria o mais correto para aquela patologia, e, assim sendo, termina-se por fazer uma confusão entre, por um lado, as doenças éticas (que de algum modo prescindem de medicação) e as doenças psiquiátricas onde o que se perdeu foi a capacidade de produzir simbolicamente aquilo de que o remédio vem apenas evidenciar a falta.

Talvez o remédio ajude a compensar estados onde as tensões internas estejam insuportáveis, mas é certo também que esse equilíbrio não está relacionado a um incremento evolutivo na personalidade do sujeito. O remédio pode conter, mas, infelizmente, não é capaz de transformar a ação do sujeito dando a ela um destino criativo. O impulso ensandecido que vem do inconsciente não reconhece no remédio os ensinamentos de um mestre, menos ainda os ensinamentos que derivam da capacidade que um sujeito humano tem para aprender da própria experiência. Na verdade, o que se ingere quando se toma uma medicação psiquiátrica é um superego químico sem capacidade para pensar. O franco atirador que alvejou, sem consciência ou remorso, as pessoas que assistiam, em um Shopping Center de São Paulo, ao filme "O Clube da Luta", estava fortemente medicado, por psiquiatra competente e, mesmo assim, o que se vê é que o remédio não dá conta do recado. Creio que isso complica bem as coisas e abre outras possibilidades de pensamento que eu não observo abertas na pesquisa coordenada pela indústria farmacêutica associada ao pensamento iluminista somado ao oportunismo maquiavélico raciocinado na perspectiva do aumento compulsivo do poder econômico.
Se todos estamos deprimidos, como evidenciam as estatísticas dos níveis de consumo de antidepressivos, por exemplo, é necessário, urgentemente, que sejam revistas as causas subjetivas e sociais dessa depressão, pois, certamente, uma boa parte dela não deriva de distúrbios orgânicos, mas sim da escassez de fraternidade, da escassez de ajuda mútua, e do baixíssimo nível de tolerância ao fracasso, no mundo humano moderno. Se, a título de curiosidade, nos basearmos nos índices publicados nas revistas científicas sobre o consumo medicamentoso, verificaremos que elementos como o calor humano, o sentimento de amizade, o carinho e o respeito - componentes vitais ao sucesso de cada um na longa jornada da vida - estão sendo extintos ou entrando em atrofia; poderemos também perceber que a medicação que falta não está no campo das certezas positivistas. Assim sendo, é obrigatório que possamos reconhecer, então, que a falência dos vínculos sociais e do compromisso do homem com a sanidade emocional é iminente. Necessário também é perceber que os remédios apenas fazem substituir e adiar a verdadeira solução necessária ao problema. Isso, de modo algum, impede que a comunidade tenha que responder com responsabilidade pela saúde mental de cada elemento do grupo oferecendo a esse elemento doente a ajuda humana da qual ele necessita. O efeito farmacológico da pessoa do outro, isto é, o efeito curativo derivado do próprio contato emocional com o outro humano, não está contemplado quando alguém está querendo observar apenas o efeito farmacológico da cura e derivar disso o elemento químico capaz de agir sobre a mente do sujeito moralmente falido.
Tomar a síndrome de pânico, a anorexia e os transtornos bipolares, como elementos da modernidade, é apenas o reflexo do atraso, do 'gap', do vazio de pensamento lógico com o qual a ciência trabalha justamente com os temas da evolução emocional dos humanos, e, nesse mesmo sentido, é o reflexo também da lentidão com que raciocina sobre as noções de saúde mental que, bem ou mal, já tiveram suas bases assentadas há mais de um século e foram pensadas de formas completamente diferentes, se quisermos tomar apenas Freud como referência. Como alguém, hoje, em sã consciência e sem qualquer dilema, afirma que, para uma insônia, o remédio é um sedativo ou um hipnótico, depois de saber que o traçado apresentado pelo eletro-encefalograma no exame de polissonografia feita durante uma noite de sono do sujeito medicado indica significativas alterações na sua arquitetura? Entre essas alterações, está a presença marcante de ondas rápidas nas fases do sono de ondas lentas, um predomínio das fases mais superficiais do sono (particularmente a fase 2), assim como uma diminuição na densidade do sono REM (no qual se acredita que predominantemente ocorrem os sonhos).Todas essas alterações indicam uma superficialização do sono, ou seja, um sono que não é de boa qualidade, e isso tudo constatado através das próprias pesquisas científicas feitas pela psiquiatria organicista...! Onde isso vai parar?

Bem, creio que isso pode ser considerado como um pequeno sinal de que as coisas vão muito mal. Freud já havia descrito essas síndromes desde 1892, quando ainda não dispunha da clareza que sua própria invenção teórica lhe traria nos anos seguintes. Porém, isso não importa. Não importa o fato de Freud já haver descrito patologias que estão hoje na moda tratadas sob um outro nome. O que importa, na verdade, é reconhecer que o iluminismo psiquiátrico não é capaz de compreender, da mesma forma que já não compreendia naqueles tempos; o que importa, na verdade, é reconhecer que essa mesma psiquiatria continua a confundir a fabricação química do alívio da turbulência emocional com a recuperação da saúde psíquica de um homem. É esse o desastre cognitivo: imaginar que a razão possa dar conta do sofrimento mental e que, a pesquisa financiada possa provar mais do que o próprio limite técnico do laboratório que produz o medicamento, Ou seja, a pesquisa financiada prova apenas o que é necessário provar enquanto solução do problema.
Por outro lado, só é possível falarmos de patologias da modernidade se pudermos acreditar que ao longo do tempo houve uma real transformação dos estados mentais primitivos e que eles evoluíram (!) para novas patologias como se seguissem as leis darwinianas da seleção natural ou a linha do tempo formal. Não é para isso que minha clínica aponta. O que eu sei, observando as atitudes e as falas de meus clientes, é que talvez o nível de desprezo por si mesmo tem aumentado na mesma proporção que o do investimento feito na imagem do ego, numa sociedade que hoje se define como sendo a sociedade do espetáculo. A frieza diante do outro aumentou e com isso a compreensão de si mesmo reduziu-se. Fica cada vez mais patente a problemática ligada a deterioração simbólica tanto da malha social quanto da do ego de cada um. O eu tornou-se um problema para o sujeito e isso gerou um efeito em cascata que desembocou no desenvolvimento de uma evitação do encontro afetivo e em uma pouquíssima disponibilidade pessoal para viver o sofrimento gerado pela própria experiência de estar vivo.

Então, pode-se afirmar que há evolução da doença, de tal forma que as patologias de hoje devem ser reavaliadas, uma vez que o sujeito sobre o qual as observações foram feitas no passado é um sujeito que não existe mais neste momento social. Não creio, porém, que isso autorize alguém a participar cegamente desse processo de aumentar a avalanche de medicações espalhadas no mercado das drogas psicotrópicas e que são indicadas para interromper o processo psíquico em curso sem compreende-lo, nem à sua função e nem à sua finalidade. É certo que o verbo evoluir exigiria que alguma transformação verdadeira pudesse ser apreendida na observação dos casos que nos procuram. No entanto, o que se nota é que a realidade observada na experiência clínica indica, ou melhor, aponta para onde o profissional deve olhar, e sugere que está havendo um desgaste, um apodrecimento, uma deterioração do e no tecido afetivo de toda a raça humana e uma degradação moral no interior do próprio sujeito: ele já não distingue mais o que pode ser o eu e o que pode ser o outro. Autonomia e hetronomia, não são mais versos de cada um dos lados da evolução do indivíduo, o que ocorreu foi uma dissolução da subjetividade no caldo ácido da moral social, na crítica destrutiva do superego delinqüente e sádico. Nunca houve momento na história onde o senso comum odiou tanto o sujeito. O que sabemos, através dos relatos de casos atendidos por psicanalistas que publicaram seus atendimentos depois de Freud, é que a encrenca continua a mesma, só se evidenciou com mais clareza o que era a neurose: um estado seriíssimo de 'ensimesmamento' narcísico, vulgarização do self, desespero e um agregado de gestos apelativos como resposta primária ao desconhecido, promiscuidade, brutalização, perda de contato com a realidade e incapacidade para produzir pensamentos capazes de servir para pensar, e masoquismo no seu mais alto grau. Foi isso que o tempo nos trouxe: nos trouxe questões muito maiores que as que o próprio Freud já havia previsto em sua obra e, mais, questões que só Melanie Klein viria a esclarecer mais tarde e que alteravam a já complexa definição da noção de desejo. No interior desse quadro, não passamos de um reflexo pálido da desilusão sentida no primeiro contato com a realidade, reflexo que como primeira resposta apresenta uma defesa: o não saber e logo em seguida um impulso de não ser. Trabalhamos com patologias cujo exato problema é esse, o de não se curvar diante da força do tempo. Assim sendo, não podemos falar de evolução, mas sim de atemporalidade, de repetição, de tragédia. Dito em uma palavra, de ânsia pela ignorância.

Da mesma forma que a patologia neurótica ou psicótica não evoluiu, a personalidade do cientista também não, pelo contrário, degradou-se tanto quanto a própria civilização. Conhecer se tornou o problema e compreender se tornou o perdão. Os progressos na ciência ocorreram nos domínios da tecnologia - domínio da técnica - porém, a evolução do caráter, da alma e da vida mental do conhecedor continua relegada a um plano menor. A observação científica clássica insiste em eliminar, do próprio processo de observação, uma parte do problema que não é eliminável: o elemento primário visceral, afetivo, o relâmpago intuitivo ou o desastre emocional. Isto é, a observação científica clássica insiste em eliminar o sujeito vivo em estado de curiosidade, e, essa mesma eliminação amputa ou destrói a observação científica do fato e impede a formulação correta de qual é a questão que está em jogo, como conseqüentemente impede o surgimento do ser psíquico que ali espera seu momento de nascer em meio a alguma verdade. Se a medicação interrompe o processo de loucura, não explica como não se chega a tal estado. Certamente, não podemos limitar a compreensão do complexo ser que somos ao volume de serotonina presente na sinapse entre cada neurônio. Não podemos, em sã consciência, reduzir o homem a uma espécie de mínimo estrutural, apenas para evitarmos tomar contato com as coisas não compreensíveis da mente em ação. É necessário que se interrompa essa manifestação 'científica' de desprezo ao afeto e a experiência emocional que necessariamente é vivida. Sem essa experiência, estamos isolados dos significados primários dos fatos que observamos e conseqüentemente do senso comum que nos aproxima de nossa comunidade. Esse estado de coisas parece criar um enorme problema para o desenvolvimento do pensamento científico e da compreensão solidária do que pode ser o humano e de onde se encontram os problemas com a verdade e não as dificuldades com o domínio da tecnologia.

Bion, no seu livro póstumo, Cogitações, indica a questão com muita clarividência. Ele diz:

..."que os escritores Clássicos estavam presos a uma crença na supremacia e integridade da razão, ao passo que os Românticos estavam mais conscientes do componente emocional nos relacionamentos humanos." (p. 348)

"Parece-me que o ser humano foi bem-sucedido ao empreender a regulamentação de suas relações externas por meio de leis; o fracasso surge quando se tem que produzir algum método para lidar com as tensões emocionais subjacentes às relações humanas. Toda vez que elas se imiscuem como um elemento intrínseco no problema que está sendo estudado, os homens voltam a explorar mais as possibilidades de regulação externa. Essas repetidas preocupações com os sistemas organizados, que não passam de um subproduto do fracasso de se ater ao problema principal, nunca ultrapassam o nível dos tecnicismos das operações policiais, não importa quão importante seja a linguagem de que se revistam."

Mas esse é o duplo infortúnio; não só se foge do problema principal, mas os líderes das comunidades, pela natureza do refúgio que encontram para seu fracasso, deixam de ser os líderes criativos que Toynbee descreve como essenciais para o crescimento saudável da civilização. Tornam-se, ao invés disso, a minoria opressora dominante." (p. 349)

É certo que os doentes modernos não são outros que não nós mesmos, os terapeutas modernos! Somos nós que medicamos, somos nós que nos afligimos diante do estado mental no qual se encontra o cliente. Certo também é que a metodologia pesada, usada pela mente "Clássica" nos protege do infinito de nossa imaginação agindo, como também certo deve ser que ainda se persiste nessa atitude "neutra" diante dos fatos observados, que sempre é seguida de uma tentativa de fazer com que a razão dê conta de exercer o máximo de poder e controle sobre os fenômenos incontroláveis do pensamento humano. São essas formas de temer - para onde a investigação científica correta nos conduz - que tendem a configurar um estado deplorável de imbecilidade no observador. A sociedade, completamente perdida e fragmentada, tenta toda noite juntar seus restos assistindo à televisão e, todos nós, devidamente medicados, estacionados diante do de nosso destino, subsidiamos as pesquisas médicas e as fortunas astronômicas dos laboratórios farmacêuticos. Completamente drogados, completamente narcotizados, emborcados na imponderabilidade de nossa própria imagem - de Narciso apenas um resto, e de Ícaros - um falso projeto, queremos que essa investigação nos poupe da aflição e da desconfiança que nossa ignorância sugere e sustenta, mas... toda a noite, toda a noite antes de dormir, tomamos nossos soníferos, verificamos as oito fechaduras da porta de entrada de nossa casa três vezes cada uma e, depois, rezamos a noite inteira para que os assaltantes não entrem usando as ferramentas que o poderoso iluminismo construiu.

Assim, trancados em nossas celas quimio-elétricas, olhamos na tela de nossos "personal computers" e supomos ver a realidade ali se abrindo e, com ela, a experiência que o virtual proporciona transforma-se na expressão mais viva de como a inteligência supre nossas faltas. Completamente satisfeitos com os rígidos esquemas de segurança, matutados por nossas maravilhosas caxolas, gritamos aos quatro cantos que a cognição é essa luz sobre o objeto. O que fica sendo evitado e oprimido é o saber que acaba sendo substituído por um fazer metodológico, maquiado por uma retórica que deve obedecer aos limites de um estreito corredor ideológico - politicamente determinado - e bradada por uma "minoria opressora", que tenta vender uma imagem de segurança, onde os menos iludíveis só podem ver dúvida, incerteza e equívoco.
No fim das contas, o que parece se buscar é, "inexplicavelmente", exercer um controle opressivo sobre a pessoa do observador e também sobre as suas emoções diante do acontecimento observado, impedindo assim que ele seja vítima da influência funesta dos elementos imaginários derivados do próprio processo psíquico do sujeito que investiga e que não permita que recaia sobre o objeto a ser observado essa carga emocional que é compreendida como 'distorcedora' da razão. É certo que, durante o processo de tomada de consciência, elementos imaginários perturbadores ou contributivos naturalmente derivam da própria operação mental vivida pelo sujeito que se dispõe a observar e pensar sobre o mundo, e disso tirar a consciência de sua ciência. Mas isso fica categoricamente escondido, não falado, ganha o espaço do mutismo, do silêncio oportunista. E, dessa maneira, a ciência migra ou deixa-se seduzir pelo espaço do político, do poder, da esperteza, do ardil, e, logicamente, do engano. A propaganda feita pelo superego - isto é, o senso comum - convida o sujeito à submissão e, nesse gesto, lança sobre ele mesmo (o próprio sujeito) uma falsa realidade transformada em exigência moral e obediência às regras.

Esse estado de coisas é decorrência da desconfiança que o social deposita sobre as palavras afirmativas do sujeito - aquelas palavras que nascem das intuições que, como delírios ou alucinações, atravessam a mente do homem comum e tomam conta do espaço real. Se o social odeia o sujeito e se o narcisismo pode ser uma função da relação do paciente com o grupo ao que pertence, e, além disso, também indica esse mesmo narcisismo só vem indicar que "em sua relação com o grupo, o bem-estar do indivíduo é secundário à sobrevivência do grupo" (Bion, 1992), então:

"A teoria de Darwin da sobrevivência dos mais aptos, necessita ser substituída por uma teoria da sobrevivência dos mais aptos a sobrevier no grupo - até onde a sobrevivência do indivíduo possa interessar. Isto é, ele precisa ser dotado de um alto grau de senso comum: 1) uma habilidade de ver o que todos os outros vêem, quando submetidos ao mesmo estímulo. 2) Uma habilidade para acreditar na sobrevivência dos mortos, depois da morte, em um tipo de paraíso ou Valhala ou algo assim. 3) Uma habilidade para alucinar ou manipular fatos de modo a produzir material para um delírio: de que há no grupo um fundo inexaurível de amor por ele, paciente. Se, por alguma razão, faltar ao paciente essa capacidade, ou algum conjunto similar de capacidades, para obter subordinação ao grupo, ele terá que se defender do temor que sente do grupo - grupo que, sabidamente, é indiferente ao seu destino enquanto indivíduo - destruindo seu senso comum ou o senso de pressão do grupo sobre ele como um indivíduo, como o único método através do qual conseguiria preservar seu narcisismo."(p. 42/43)

É claro que a reação narcísica - defensiva contra esse ódio que o senso comum tem da subjetividade que, de alguma forma, se pretende mais que ele, acaba sendo uma resposta de intolerância e isolamento contra essa pressão exercida pelo coletivo sobre o indivíduo, intolerância essa que o remédio tampona e encobre. É curioso notar o quanto o sujeito oprimido nega que o senso comum estrangule o seu narcisismo e, todo domingo, segue feliz para encontrar seus pares no culto, no clube, no bar. Curioso é também ver o quanto a pesquisa científica necessita, ao transformar o sujeito em idéia geral, eliminá-lo enquanto ameaça que deve ser evacuada ou contida pela força impessoal do medicamento. Tornado inofensivo, torna-se também alguém sem nenhuma especificidade nem pensamento. Tornado inofensivo e sem mente o homem medicado torna-se alguém sem nenhuma qualidade além daquela que o coletivo e a estreiteza mental dispõe-se a atribuir e compreender e, sobre a qual, dispõe-se a raciocinar. E, aí sim, esse mesmo homem recupera a saúde, pois já não ameaça ninguém.

É nesse exato ponto mesmo, que quero introduzir a questão do médico, da medicação e da medicina que não quer saber o que se passa na vida íntima do sujeito, mas se interessa bastante por aquilo que o senso comum diz sobre esse sujeito. Essa é uma medicina do diz-que-diz, da fofoca, da maledicência, é uma medicina que não quer nada com o ser em sua singularidade. É o neurônio, seu universal impessoal. É desse micro-físico que o médico quer tratar. Não há ninguém ali, só o médico está vivo mas, infelizmente, inanimado em sua neutralidade iluminada e ingênua apoiada pelos textos propedêuticos. Pena que de nós resta pouco: resta, na verdade, somente essa suposta generalização universal, capaz de transmitir uma estranha impressão de frio que se confunde com verdade e com que o médico se vincula; esse é o objeto observado, esse é o seu cliente. Esse universal, esse "social-ismo" dado pela distância científica da neuranatomia, da neurofarmacologia e da neurofisiologia é o aspecto que o pesquisador iluminado quer ver isolado, para não ter que compreender ou ver o desastre humano diante do qual está, tanto quanto, não quer ver qual é a amplitude correta do problema e o tamanho da responsabilidade que lhe cabe, enquanto alguém que pretende se inscrever nas linhas de frente, para oferecer ajuda psíquica ao homem comum, que está no campo de batalha do dia-a-dia. Se for só na 'segurança' inerte da materialidade do neurônio que o cientista torna-se capaz de acalmar a mente do psiquiatra organicista, creio que não se trata mais de compreender a patologia do cérebro do cliente e sim a patologia da mente do observador. Observador esse somente capaz de observar aquilo que não lhe diz nada, que não lhe significa nada. Com certeza, se. ainda nessas condições, esse observador não está morto, o seu cliente já foi faz tempo; inanimado, é lógico, mas, completamente curado! É bom que se compreenda.

Essa pressão dada pelo excesso de luz que nada mais é que a desoladora duplicata da experiência emocional do abandono original denominado por Freud como desamparo e que tanto o âmbito social quanto o científico insistem em lembrar ao indivíduo, remete, esse mesmo indivíduo, sempre que possível, a uma condição de ignorância e invalidez, e, sendo assim, é quase certo que acabe mal. Acabe em uma péssima solução onde se aceita trocar de bom grado a experiência de verdade pela tarefa insana de crer na retórica iluminista, formulando-a compulsivamente como se ali estivesse a germe da sabedoria. É o "show bizz", é a propaganda que agora comanda o espetáculo, e as vozes que nos odeiam continuam falando contra nós, espalhadas em todos os lugares por onde passamos, dentro e fora de nós.

Dessa solução, por sua vez, deriva uma outra mais desastrosa ainda: uma tomada de posição diante da realidade que se apresenta como uma atitude paranóide para consigo mesmo e para com o outro. Isto é: passa-se a manter (usando a capacidade intelectual para obter o máximo de controle que a mente pode exercer sobre os fatos) todos os acontecimentos internos e externos vigiados, controlados, conferidos, previstos, antecipados e, além disso, o estado emocional do sujeito, para dar conta do recado, deve ser aquele estado de quem se encontra, de tal forma tenso e esticado, que só pode indicar que o vivido encontra-se num campo tão inóspito que, ao homem comum, só pode restar - para tentar realizar que ainda está vivo - a atitude de desconfiança, de aflição e a de viver sempre à espera de um ataque que certamente virá pelas costas, inclusive, se não do objeto, do próprio irmão.

Sem descansar jamais, esse sujeito punido pela desobediência às regras ditadas pela medicina vive completamente perseguido, nesse mundo violento e impessoal da racionalidade iluminada, assustado e insone. Agora sim estamos prontos a admitir (e a psiquiatria organicista será capaz de me compreender e me perdoar) o espaço e o cabimento para o diagnóstico de síndrome de pânico. Agora sim posso definitivamente dizer que esse nome "síndrome de pânico" nada mais é que a etiqueta do cadáver na mesa de dessecação anatômica, feita pela ciência limpa, quando, em seu furor compreensivo, deseja mais esconder o desastre eminente no fato observado que pensá-lo com a devida tristeza derivada da dúvida profunda sobre o que se pode de fato conhecer pelo olho iluminado do organicismo, que nos abandona completamente ao jugo social que nos odeia. Se há uma síndrome de pânico, é esta vivida pelo cientista observando sem emoção. É uma síndrome, onde o investigador tem medo de si e das imagens que vêm ao seu íntimo, tornando-se incapaz de produzir uma fala adequada, dada a estupidificação na qual aceitou entrar, fazendo vista-grossa para o que não quer ver.
Pura solidão, pura desolação. Essa pressão, que está no ventre do discurso científico legalizado e é praticada por aqueles que se colocaram ao lado do lado 'claro' da ciência (lado onde, diz-se, está a verdade, ou, mais que tudo, a objetividade científica), é uma pressão psicotizante e convidativa para o surgimento de atos delinqüenciais e para a formulação de campanhas publicitárias internas que difamam o sujeito, dado ele não ser bem-vindo aos olhos do social que o circunda. Na verdade, o que se tem é um sistema de regras montado - ao modo dos jogos, que devem render milhões para as inteligentíssimas empresas de marketing - para nos dar a impressão de que, uma vez a investigação sistematizada, dele (do sistema) deve, naturalmente, derivar-se a luz e a clareza justa e necessária para penetrar e explicar o objeto sem sujá-lo com nossas fantasias imundas que nascem em nosso íntimo, sem a etiqueta sã do raciocínio iluminado.

Certamente, um grande 'trompe l'oeil' é montado, para dar a impressão de que a organização do sistema está apta a iludir o cientista dizendo-lhe que o conhecimento não é desamparo, da mesma forma que fazemos quando desenhamos uma janela numa parede e, depois da janela, a paisagem e o mundo de fora, e, ali onde está a janela, na realidade, só há parede pintada oferecendo a impressão de realidade e nada mais. 'Trompe l'oeil' ou princípio de realidade? Conhecimento ou sedução? Conhecimento ou submissão do narcisismo ao senso comum? Arrisco uma conclusão: o homem não está habilitado ao conhecimento intuitivo que dele deriva em sua simplicidade alucinatória. É fraco, é covarde, duvida de si mesmo, não sabe quem é e, pela lógica, não dá conta do principal. Suspeita dele mesmo, e dele mesmo debocha. Na verdade, é sobre ele que recai a dúvida sistemática de Descartes! Desacreditado e só, diante do senso comum, é o eu que está condenado ao silêncio e ao mutismo. Mata-se a mãe interna, bela e falante, em nome de uma certa normalidade malsã diante do social. Assim segue-se e, assim, com a cara estampada na janela desenhada na parede, termina-se por confundir a crueldade desumana do ideal de perfeição com o projeto amoroso de se tornar consciente das limitações do conhecimento.

Tornamo-nos arrogantes, inseguros e perigosos. Ninguém pode nos desmentir, temos provas documentadas, temos fidedignidade, temos uma ampla amostragem e dados apoiados em pesquisas conduzidas por grupos especializados. Tornamo-nos seres megalomaníacos, calçados por informações advindas da observação científica da realidade e no entanto o que predomina são uma infindável coleção de atos imbecis, apartados do real. Impossibilitados de ter acesso a nossa tristeza, disfarçamos a figura imperfeita e claudicante que somos, e, na melhor das hipóteses, recorremos à pura sedução para vender a imagem de que, uma vez o sistema iluminado usado, garantido fica que o desamparo será negado. Ou então, caso isso venha a falhar, tornamo-nos truculentos, brutos, apáticos sociais ou enveredamos pela ciência ou pelo crime.
Eis aí o sintoma cognitivo: tomar como "homem irresponsável" o homem cognoscente. Depois, só nos resta declara-lo doente e com isso receber autorização para seguir deixando esse rastro de violência que é a expressão do discurso que a opinião iluminada tem sobre o que desconhece, forjando verdades científicas sobre a doença e sobre o que deve vir a ser a saúde mental.

Depois de adoecidos pela palavra autoritária da "minoria opressora", da santa e cínica ciência da iluminação, tornamo-nos clientes dos organicistas e desistimos de viver sem eles. Aí, já quando quase tudo está pronto, basta submeter o sujeito à concepção sadicamente demonstrada que o objetiva, para logo em seguida impor-lhe uma conduta terapêutica apoiada na realidade estabelecida pelas pesquisas, mandando-o calar a boca que fala.

Isto posto, o normal, agora evocado pelo discurso dos manuais psiquiátricos que norteiam os médicos sobre o que é a saúde mental, vem a encobrir a gravidade derivada da própria observação científica, que escamoteia a própria psicose do observador, construindo, a partir desse engodo, a idéia de normal, que não coincide com a idéia de saúde como algo ligado à própria subjetividade.

Apoiado, assim, nos generosos pilares das certezas organicistas, limpas e claras, como que se estabelece então uma carta magna que autoriza um discurso sobre o outro, uma encíclica que constrói uma nosografia religiosa e retórica, onde a cura no campo médico, lamentavelmente, não é outra senão aquela que é da ordem do assassinato da testemunha ocular no momento em que ela vai depor. Do 'orgânico' ao fenômeno manifesto no mundo mental do sujeito que se queixa, nada existe a não ser uma máquina desmontável em suas peças, não há transtorno psíquico algum, o que há são esses elementos paranóides controlados pelos rituais obsessivos que chamamos de ciência e que, segundo as crenças, têm poderes que livram o pesquisador de suas taras, de suas franquezas, de suas imundícies.

Gradativamente, então, essa busca de luz - ou melhor, de mais luz! - com que a "hard science" exibe sua clareza correta, e seu imenso pênis ereto e violento (inútil para vaginas humanas, é claro!), vai minando a possibilidade dos cientistas recuperarem a capacidade natural dos homens comuns de chegar a soluções sem, necessariamente, passar pelo problema. Vai minando o uso da velocidade da intuição como veículo daquilo que é simplesmente o processo natural do pensamento inconsciente, ou seja, mina o estalo, a fulgurância imaginativa.

Essa visão "mentalista" (como me agrada chamá-la) do cientista puro, que faz supor que o raciocínio sobre alguma coisa é suficiente e dá a ele algum controle racional sobre o futuro de um acontecimento, ou que faz supor ser o controle excessivo aquilo que sustenta a verdade, confunde (e o faz de modo gravíssimo) curiosidade com desconfiança, impedindo com isso que se diga claramente que o conhecimento é luto e o desejo desilusão. Eles, os cientistas claros, que não choram nem sonham, só se apóiam nos fatos dados pela luz científica, desconhecem as palavras para comunicar as dores que a curiosidade envolve. Tratam o saber e o aprender como experiências não álgicas. Desconhecem o quanto de contensores simbólicos são exigidos à psique no momento de formular conhecimento e publicá-lo.

Se alguns supõem que, com esse proceder, são capazes de evitar abusos da imaginação, não é esse o caso de Freud, que, como paradigma de sua ciência, fez recair sobre ele mesmo a dúvida em relação à própria capacidade de dizer a verdade, reconhecendo em si mesmo, como cientista e como homem, os efeitos lesivos do inconsciente que ele acabara de inventar, dando com isso a ele mesmo a materialidade da que se sentia falta. Freud não evitou "walk in the wild side", e nem deixou de exigir seu lugar de cientista. Não abriu mão também de sua potência para opinar com a mesma força que o status quo opinava sobre os estudos das personalidades doentes de seu tempo. Com isso, fez também com que o establishment pudesse repensar a mente fora do campo orgânico, campo esse tido no discurso iluminista como o elemento capaz de indicar a objetividade, a veracidade e a segurança de não estarmos embriagados pela influência de nossos delírios egóicos.

Façamos tudo pelo caminho mais longo e mais lento. Essa é a proposta do iluminismo!? Verifiquemos tudo mais uma vez, depois mais uma, depois mais uma e depois mais uma. Priapismo da luz. Ereção sem gozo. Pura inutilidade.

É impressionante notar como é mal compreendida e abarcada, pelo cientista 'positivo' da hard science, a própria evolução dos seus processos internos de pensamento e a incerteza em que se apóiam, quando busca, em seu íntimo, a compreensão limpa do mundo. Defendido pelo escudo da neutralidade científica e pela coerência que a lógica positivista lhe empresta, cheia de procedimentos, cheia de rituais semelhantes aos religiosos e aos obsessivos, imagina ser o controlador insensível e imortal do mundo dos deuses zangados. Não nota que, no fim das contas, é incapaz de controlar e reconhecer os estados psicóticos em que sua mente entra intermitentemente quando trabalha na observação de um fenômeno ou mesmo quando ele desenvolve curiosidade e produz conhecimento.

É necessário lembrar e lembrar e lembrar que, mesmo com todos os cuidados tomados para evitar o equívoco e o engodo naturalmente causado pela impureza da mente do pensador em trabalho, o que se consegue mesmo é trabalhar mais do que o necessário para se produzir uma hipótese ou uma compreensão dos fatos observados. Curioso como o campo da "hard-science" não habilita ninguém ao gesto criativo, os paramentos sempre vêm primeiro, as máscaras precedem e envolvem o sujeito pensante, e o idealismo narcisista faz com que o ego (tratado de modo semelhante a um bebê criado para ser um ídolo), submisso às sansões puristas que o social impõe, opte mais uma vez pelo procedimento e pela obediência cega à regra, repetindo padrões destituídos de pensamento, destituídos de pessoalidade, destituídos da verdadeira vitalidade das descobertas feitas. Necessário é reconhecer que a observação prudente e credenciada tende a desenvolver-se como uma patologia que acaba por ficar a serviço da negação da realidade observada, não podendo servir para a construção do conhecimento.

Entupida por rituais uniformes e por filtros impróprios para proteger o sujeito que observa e faz ciência dos distúrbios esquizóides e depressivos, que surgem durante o processo de cognição, a mente do cientista puro, objetivo e ligado à corrente do iluminismo, necessita estar completamente 'calçada' por doses cavalares de neurolépticos e antidepressivos. Só assim, sentem-se sadios e prontos para pairar sem destino sobre o mundo das drogas (mundo destituído da religiosidade que sempre a ele esteve consagrada), e prontos para afirmar qual é o ponto iluminado de nossa sanidade desde que ela apareça no protocolo usado para avaliar ao mundo que essa psiquiatria diz tratar. Pobre conhecimento, pobre conhecedor, vai, sem destino e abandonado no fascinante universo oferecido pela palavra idealizada e pelo procedimento recomendado, e se transforma em mais um executor do discurso da minoria opressiva ao que está preso, determinando que a realidade é só aquela parte da vida sobre a que se pode exercer controle e soberania, mesmo que o resto fique esquecido ou relegado ao plano do inexistente.

Privada da relação com a verdade mais cotidiana, a ciência se torna onisciência e "a onisciência substitui a discriminação entre o verdadeiro e o falso por uma afirmação ditatorial de que uma coisa é moralmente certa e outra errada. A pretensão de ter uma onisciência que negue a realidade seguramente faz com que a moralidade, que nessas condições se forma, seja uma função da psicose." (Bion, 1967) . Uma vez que a tomada de consciência de cada sujeito diante dos elementos derivados da observação e da curiosidade não pode se manifestar fora do senso comum da coletividade que é público desse espetáculo.

Bem, esse quadro sem dúvida aponta para a intensa relação entre as defesas neuróticas e psicóticas (presentes na observação de um fenômeno e na construção das teses cientificas ligadas ele) e aponta também para uma maneira bastante específica de aquisição de conhecimento no campo da ciência, que é o conhecimento eufórico, pouco profundo, destituído dos traços necessários advindos da tristeza cognitiva e da relação direta com a verdade. Com isso, para meu gosto, fica quase que demonstrada a face mórbida do iluminismo e sua impressionante virulência. Tudo não passa de teatralização, de arte cênica, de pantomima, de espetáculo.

"Mas qualquer que seja a disciplina, existe uma primitiva, fundamental e inalterável linha - a verdade - que serve de base e limita o trabalho do cientista, do religioso e do artista. 'O que é a verdade?' disse Pilatos mofando-se, segundo Sir Francis Bacon e não aguardou resposta. Quem sabe não possamos aguardar a resposta porque não temos tempo. No entanto, a verdade é o que nos concerne, ineludivelmente, inevitavelmente, ainda que não tenhamos idéia do que é verdadeiro e do que não é. Posto que nos ocupamos de caracteres humanos, também nos concernem as mentiras, os enganos, as evasões, as ficções, as fantasias, as visões, as alucinações; de fato, a enumeração poderia prolongar-se quase até o infinito." (Bion, 1982 b, p.228)

Fica aqui a última palavra que, para mim, meu texto ainda pode afirmar. Não se pode dar mais crédito a essa cruzada iluminista dos antidepressivos contra a beleza da experiência de tristeza, tão necessária ao crescimento humano. É urgente que essa atitude seja revista por essas correntes racionalistas, behavioristas, cognitivistas... O homem não é ninguém sem sua capacidade para entristecer; sem ela não sabe para onde ir. A beleza só é possível se for circundada por um alo de desilusão amena, constituída por um desejo suave e por um apego sutil. O conhecimento segue no mesmo trilho e disso pode derivar o gesto de cura que não prescinde da presença viva do sujeito humano. É desse preceito que retiro minhas afirmativas e também por onde me encorajo a afirmar que a doença do pânico é a doença do máximo cinismo e da descrença completa na existência de alguma fraternidade possível entre os homens. Patologia própria da máxima arrogância, da máxima tentativa de evitar responsabilidade e temporalidade, o pânico descrito como sintoma não revela a gravidade do desrespeito humano interno que o doente carrega consigo. Da mesma forma, sua parceira, a anorexia, é a doença do desprezo pela dádiva que é o corpo vivo e ativo com fome e desejo. Se o homem comum crê poder seguir nessa toada e nesse tom, certamente perderá o ritmo, a voz e a capacidade para louvar, cantar e agradecer pelo que é. A rigor, o que cada um vive, só concerne a ele mesmo, e nem a dor, nem a patologia justificam que se derrame, em todos os cantos por onde se passa, a vulgaridade interna da qual certas doenças se constituem. A vida é, no fim das contas, apenas a expressão ativa da capacidade de estar só e de conter dentro de si aquilo que suscita e incrementa a violência social. Necessitamos um do outro, é certo. Mas não para julgar-nos ou para avaliar-nos. Necessitamos do outro porque necessitamos tanto do calor quanto da companhia viril e substancial que os tempos rudes nos exigem.

É isso aí.

Emir Tomazelli

São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001.