Sobre a experiência transferencial
José Carlos Garcia

 

Resumo:
Este trabalho foi escrito com a intenção de conseguir elaborar algumas questões que minha clínica tem feito revelar com muita insistência. O contexto geral onde consigo, com facilidade, localizar as questões de que falo é, sem dúvida, o campo da transferência.
Procuro mostrar aqui através de duas vinhetas clínicas, que a transferência vista como a princípio a definiu Freud, limita o campo da análise e restringe a ação do analista. Em linhas gerais, a alternativa a este modelo clássico de análise seria dada pela possibilidade do analista localizar-se no campo analítico como um objeto capaz de promover a neo-gênese psíquica de aspectos da personalidade do paciente que por deficiências ambientais ficaram impedidos de se desenvolverem.

Palavras chave: escuta analítica, interpretação, potencialidade simbólica, repetição e transferência.

Abstract: This paper was written as an attempt to elaborate on some questions that emerge in my clinical pratice. The transference is the context where it is possible to address these questions.
Based on two clinical vignettes, i show that the transference as difined by Freud, limits the field of analysis and restricts the analyst action.
An alternative of this classical model of analysis would be for the analyst to situate himself as an object capable to promote the psychic neo-genesis of a patient's personality aspects that were obstructed in their development because of enviromental deficiencis.

Key Words: Analytical listening, interpretation, repetition, transference, symbolic potentiality.

 

No início deste trabalho, antes de qualquer reflexão teórica, gostaria de expor um breve material clínico para poder revê-lo e, quem sabe, reencontrá-lo de uma outra forma, com outro olhar, diferente daquele que pude ter quando estive capturado pela vivência do imediato, tentando dar conta do mesmo como analista.

Trata-se de uma pessoa cuja vida iguala neste momento o que de pior podem trazer os pesadelos. A doença grassa em sua família como uma peste, atingindo inclusive ela própria de maneira mutilante. Seu pai acaba de falecer e sua irmã vive seus últimos momentos numa pouco digna agonia. Há portanto um quadro realístico de desgraça e sofrimento assolando sua vida, mas há também seu jeito de ser e sua maneira própria de sofrer.

Numa determinada sessão, pouco depois da morte de seu pai, começou a falar sobre a irmã dizendo que ela está querendo vender, o mais rapidamente possível, um imóvel de sua posse porque gostaria de saldar algumas dívidas. Minha paciente reconhece neste gesto o contato de sua irmã com seu estado terminal e seu desejo de tomar as últimas providências práticas para facilitar a vida de seus entes queridos.

Em seguida, contou-me que continuava acordando no meio da madrugada e que, por isso, tinha voltado a consultar o psiquiatra, para talvez rever a redução que ele havia feito em sua dosagem de medicação. Relata que ele sugeriu que ela insistisse um pouco mais para tentar se adaptar a esta dose reduzida pois, caso contrário, ela provavelmente voltaria a sentir os efeitos colaterais de sonolência e moleza durante o dia como havia se queixado em sua última consulta.

Comentou então, que dormira um pouco melhor naquela noite e, na seqüência, disse-me que tinha achado legal uma coisa que o psiquiatra comentou com ela. Seu médico lhe teria dito que a realidade que ela estava vivendo era, de fato, perturbadora e que, portanto, ela tinha motivos para estar deprimida o que a deixou aliviada. Acho interessante comentar que isso foi uma das primeiras coisas que eu lhe disse ainda no começo de sua análise, sendo que tive, ainda recentemente, oportunidade de repetir algo muito próximo disso.

Durante este início de sessão a paciente tinha a respiração difícil e cheia de longos suspiros, que chamavam-me a atenção. Fez um silêncio mais prolongado e eu lhe perguntei o que se passava. Ela respondeu que achava que eu lhe dava pouco, que parecia frio e que ela me achava muito tímido, que me arriscava pouco.

Minha primeira reação a sua fala foi na linha de um pensamento mais reflexivo a respeito da possível verdade sobre mim contida naquela afirmação. Lembrei-me de algumas questões minhas, algumas doloridas e, em seguida, experimentei um certo alívio e pude continuar a ouvi-la sem nada interpretar.

Esta me pareceu uma experiência muito interessante pois, ao mesmo tempo em que o que ela havia dito me cabia em certa medida - minha medida - o fato de poder pensar nas minhas mazelas e reconhecê-las com suas proporções permitiu-me alcançar a tranqüilidade necessária para manter a escuta analítica.

A paciente continuou sua fala e, ao referir-se a mim, o fez usando meu nome na forma que mais lhe confere um tom de proximidade e intimidade, chamando-me de "Zé". Quando terminou sua frase, disse-lhe que ela havia se arriscado, fazendo com isso alusão clara ao fato de ela ter me dito que eu não me arriscava. Ela sorriu e, nas associações seguintes começou, de forma um pouco confusa, a me dizer que havia se questionado se não deveria ter procurado sua antiga analista, pois esta a conhecia muito bem e talvez pudesse ajudá-la mais.

Seguiu-se um breve silêncio e, então, contou-me que as pessoas costumam dizer que ela é fria, relacionando isso com o assunto que trouxera no início da sessão: a venda do imóvel da irmã e o modo como resolvera objetivamente a situação. Ela acredita que esses comentários sobre sua frieza sempre lhe foram feitos, pelo menos, desde a adolescência. Lembra-se então do aborto que fez e de ter sido bem pragmática no encaminhamento das providências que teve que tomar. Disse-me, em seguida, que estava com vontade de chorar mas que não conseguia fazê-lo.

Disse-lhe que a impressão que tinha de sua respiração, enquanto ia me contando suas coisas, era de que tinha estado chorando desde que acordara ainda de madrugada e que eu pensava que ela estava abortando o sono e o sonho para não entrar em contato com sua tristeza.

A paciente chorou intensamente e, quando se acalmou, contou-me que fizera outra associação com a questão da frieza: disse-me que havia ficado pensando em seu jeito machista de lidar com os homens. Sai com vários deles, mas não tem nenhum companheiro; usa-os apenas para transar quando tem vontade; só quer sexo.

Neste momento, digo-lhe que me parece que ela precisava desesperadamente da minha ignorância sobre ela. Pensava, é claro, no motivo pelo qual ela havia procurado outro analista e não a anterior. Ela então me disse que achava a ignorância muito cinza, muito pesada.

Comentei que podia concordar com ela, mas que quando ignoramos e conseguimos admiti-lo, abre-se também a possibilidade de se ter esperança, o que, quase sempre, a certeza nos tira. Seguiu-se um tranqüilo silêncio e só voltei a ouvi-la quando, ao sair, olhou-me e disse "obrigada".

Terminada a sessão, vi-me envolto em pensamentos sobre o meu trabalho e, principalmente, sobre a questão da transferência. O que penso a respeito dela, enquanto um dos mais fundamentais conceitos psicanalíticos? Como lido com ela em meu trabalho clínico? Foi com esse estímulo que resolvi recompor aqui, em linhas gerais, o acontecido durante a sessão relatada.

O primeiro aspecto que me chamou a atenção foi que em minhas interpretações, raramente, utilizo expressões como: "você está repetindo comigo o mesmo que dizia acontecer referindo-se ao seu chefe", ou a seu pai, tanto faz. Tenho sempre a impressão de que isso o paciente pode descobrir por si mesmo sem grandes dificuldades.

O que faço então, diante da compreensão de que minha paciente relata com frieza a proximidade da morte da irmã e, pouco depois, atribui a mim frieza e timidez quando se trata de arriscar? O curioso desta situação foi exatamente o fato de que meu trabalho analítico teve, em primeiro plano, que se voltar para mim mesmo. Era como se à paciente eu devesse uma interpretação silenciosa, enquanto tinha que dar conta de continuar minha própria análise, pelos caminhos abertos pela reverberação dos ruídos da transferência da paciente em mim. Antes portanto de interpretar a transferência, ou, em outras palavras, a projeção para mim de vivências arcaicas sendo repetidas, foi necessário interpretar a mim mesmo, para evitar ser simplesmente reativo - no sentido negativo do termo - o que poderia levar a uma forma de ataque à paciente com o intuito defensivo de minha parte.

Aqui abrem-se algumas perspectivas interessantes. A primeira delas é que, deste ponto de vista, a análise pareceria poder progredir independentemente da interpretação direta do material trazido pela paciente, simplesmente pelo fato de que a compreensão da dinâmica transferencial liberaria o analista do circuito repetitivo e o deixaria livre para continuar mantendo a escuta analítica. A segunda perspectiva seria a de que, a partir deste novo lugar transferencial, o analista poderia então se apresentar para a relação com o paciente fazendo uso da potência que tem este espaço para a produção de novas simbolizações de experiências emocionais.

Gostaria de salientar que a primeira das perspectivas que destaquei não pode ser tomada de maneira ingênua. É claro que não estou menosprezando o trabalho interpretativo mais convencional do processo analítico nem banalizando seus efeitos. O que penso é que o paciente poderá usar mais intensamente o espaço da análise a partir dos recursos que lhe são oferecidos pelas características do mesmo, as quais dependerão diretamente do modo como o analista se comporta na transferência. Quando colocamos a situação do enquadre psicanalítico que, em geral, inclui o divã, a freqüência semanal das sessões e a regra da associação livre, além, é claro, da forma especial de escuta que dedicamos ao que o paciente nos conta, estamos propiciando um espaço de mudança.

No melhor dos casos, quando o paciente se acha preparado para usar o espaço a ele oferecido - e que, na verdade, é construído por ambos, analista e paciente - poderemos facilmente reconhecer que o paciente, em muitas ocasiões, será capaz de chegar à interpretação por si mesmo, apenas ajudado pela paciência "parteira" do analista. O destaque pretendido por mim visava a apontar que o trabalho mais profundo da análise está em lidar com situações da vida mental do paciente que ainda não têm prontidão alguma para serem simbolicamente cingidas por uma interpretação do tipo que empregamos para alcançar o material reprimido.

Se recorrermos ao importante trabalho de Laplanche e Pontalis seu Vocabulário da Psicanálise , encontraremos, no verbete sobre a transferência, o seguinte resumo da concepção freudiana geral sobre o tema: " Designa em psicanálise o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica. Trata-se aqui de uma repetição de protótipos infantis vivida com uma sensação de atualidade acentuada." (p. 668/669)

Esta definição de transferência contempla, de maneira direta e específica, o que chamei acima de material reprimido e a forma como este é revivido na relação com o analista. Identificar apenas o sentido dessa reprodução é o que considerei a parte mais superficial do trabalho analítico, o que, insisto, não tira de forma alguma a sua importância e nem nos redime de ter que levá-lo adiante. O que estou, todavia, querendo salientar é que, diante desta perspectiva transferencial, a compreensão de uma possível terapêutica psicanalítica se organizaria em torno do esclarecimento - e uso essa palavra com o intuito de referir um ato intelectivo - que o analista pudesse propiciar ao paciente a respeito desse circuito repetitivo que o impediria de elaborar seu conflito.

É bastante provável que esta sucinta exposição mereça crítica pelo caráter de brevidade e simplicidade pela forma como tratei o tema da transferência em Freud, mas desculpo-me a partir da intenção de ter pretendido apenas usá-la como contraponto às idéias que estou buscando desenvolver.

Pensando em minha paciente, se todos e ela própria sabem como ela é - e aqui me refiro a certo conhecimento sobre a incidência da repetição de seu comportamento frio- penso que seria muito importante que ela pudesse viver uma relação transferencial que contemplasse a possibilidade da ignorância sobre ela, mesmo porque todas as certezas na vida dela são atualmente mortíferas. E não será sempre assim com a certeza?

O sentido principal destas idéias, que procurei ilustrar com a pequena vinheta clínica apresentada, seria o de expor uma forma de teorizar o campo transferencial entendendo-o a partir da possibilidade de criação de um espaço de apresentação de potencialidade simbólica para as experiências emocionais do paciente na relação com o analista. Podemos perceber que a paciente revela, em sua relação comigo, toda a trama de sua posição como ser desejante. Poderíamos, por exemplo, salientar os aspectos marcadamente fálicos de sua personalidade que permeiam toda sua relação com o outro e, seguindo este raciocínio, concluiríamos pelo diagnóstico de histeria. Penso que, do ponto de vista psicanalítico, não seria muito difícil encontrar aquiescência para o que foi exposto. Porém, gostaria de caminhar um pouco mais em uma direção um tanto distinta.

Os acontecimentos dramáticos que descrevi sobre a vida da paciente carregam, sem dúvida, a intensidade do traumático e exigem que a paciente os enfrente com os recursos que tem a sua disposição. A transferência, conquanto traga repetição dos esquemas que sustentam a vida mental da paciente, traz também em seu bojo, como potência, uma nova forma de vivenciar a situação traumática.

Quando o analista está atento a essa possibilidade, sua atenção se desloca do mero esclarecimento do efeito transferencial repetitivo para a intenção de propiciar, a partir do enlace transferencial, uma experiência transformadora dos recursos do sujeito.

Penso ter deixado isso claro quando comentei que minha paciente precisava que eu pudesse me surpreender por ignorar, de fato, suas pré-concepções de si mesma e estar, por isso mesmo, aberto à potencia do novo contida na experiência de nosso encontro.

Em outro lugar, já procurei desenvolver esta forma de compreender a transferência como situação privilegiada que pode dar lugar à produção de novos recursos psíquicos na medida em que o analista ocupe o lugar de objeto atual da pulsão e que, a partir desta posição, possa propiciar ao paciente a realização de uma experiência afetiva até então não praticável em conseqüência de limitações vividas nas relações objetais. Neste sentido, o que estou afirmando é que, se o analista for capaz de compreender sua posição transferencial da forma como acabei de propor, ele poderá usá-la para romper a repetição, introduzindo sua ação desnorteante. Algo que acredito ter feito, quando apontei para a paciente a partir de que lugar eu poderia acolhê-la, meu lugar de confiança e abertura para o seu devir.

Gostaria de ampliar um pouco a discussão do tema da transferência incluindo aqui o material de um outro paciente. Farei um breve relato de nosso encontro ou, como seria talvez mais apropriado dizer, do fracasso de nosso encontro. Minha intenção é explorar o que há de radical na experiência transferencial e os impasses a que ela nos submete. Este foi um daqueles acontecimentos de nossa clínica que nos submetem ao desconforto da mais plena impotência diante do outro, por aquilo que ele nos solicita e pelo abandono que nos oferece em troca.

Fui procurado pela mãe de um garoto de dezesseis anos porque ela estava preocupada com o filho, principalmente como sua tristeza. Conversamos bastante pelo telefone e fiquei sabendo que, dentre seus maiores temores, estava a utilização de drogas que o filho vinha fazendo. Ela havia encontrado maconha em suas coisas e, a partir daí, começou a insistir com ele que buscasse ajuda. No final de nossa conversa, disse-lhe que gostaria de entrevistar seu filho e que depois disso voltaríamos a nos falar para que pudéssemos, se fosse o caso, definir as condições formais da análise.
Quando recebi Marcos para a entrevista, deparei-me com um menino assustado, tímido e de aparência frágil. Nossa conversa, apesar das dificuldades iniciais, foi progredindo e conseguimos estabelecer entre nós um bom contato, suficiente para tratarmos de alguns temas importantes.

Marcos contou-me que seu pai é uma pessoa muito rígida, que eles não conversam muito e que a sua atividade profissional faz com que ele precise viajar muito, ficando com isso mais ausente de casa. Sua queixa principal é sobre a rigidez do pai quanto aos horários de assistir televisão, já que este permite que ele assista aos programas apenas depois das dezenove horas. O paciente diz que isso é um desrespeito ao seu ritmo e que não faz, absolutamente, com que ele estude mais: só o deixa chateado e infeliz. Conta que o relacionamento com a mãe é mais tranqüilo e que eles conversam bastante, não sobre todos os assuntos, embora seja com ela que ele tem mais intimidade.

Marcos me contou de alguns relacionamentos que tem, basicamente na escola, mas foi ficando bastante claro que ele não possui, de fato, nenhum amigo íntimo.

Outro tema importante tratado por nós foi sobre o uso da maconha. Ele me contou que fora reprovado no último ano letivo e que isso o deixara muito triste e infeliz, pois perdera o contato mais freqüente com seu amigos, o que teria facilitado a experiência com a maconha. Revela então que, quando fuma, consegue, por breves momento, aliviar-se da tristeza e do desconforto pessoal que sente com sua vida.

Marcos tem dois irmãos mais velhos, cuja adaptação à dinâmica familiar é, segundo palavras dele, mais tranqüila, embora não consiga estabelecer com eles uma relação mais amistosa. Contou que os irmãos têm interesses diferentes, compatíveis com suas idades - ambos são maiores de dezoito anos - mas que, todavia, acha que tem uma boa convivência com eles.

Ao final da entrevista, nossa conversa parecia mais solta e Marcos mostrava-se mais à vontade. Disse-lhe que, em minha opinião, era justificável que ele começasse um processo de análise, pois era evidente o seu sofrimento, sua depressão e a sensação de falência de recursos que o atingia em alguns momentos de sua vida . Além disso, parecia-me que havia ficado claro para ele que a maconha estava lhe trazendo mais angústia do que promovendo alívio.

Perguntei então à Marcos se estava de acordo com o tratamento - se estava disposto a começá-lo - e ele mostrou-se interessado, ao mesmo tempo em que parecia satisfeito com a perspectiva de alívio que isso lhe traria.

A seqüência do processo de entrevistas colocou-me diante da mãe para que pudéssemos falar sobre os aspectos formais do trabalho. Eu e Marcos havíamos discutido a respeito dessa entrevista com sua mãe e eu garanti a ele que manteria sigilo sobre as coisas que tínhamos conversado, atendo-me apenas a uma devolutiva mais genérica sobre as minhas impressões a respeito do nosso encontro, para que sua mãe pudesse sentir-se mais tranqüila.

Definimos então os horários em que Marcos viria ao consultório e combinamos o dia em que o tratamento se iniciaria. No dia marcado ele compareceu pontualmente e assumiu uma posição no divã que era intermediária entre estar sentado e deitado. Sua postura revelava certa apreensão e ansiedade sobre como se comportar, o que ele expressou perguntando-me se eu gostaria de fazer-lhe perguntas. Pedi-lhe que se lembrasse de que poderia falar sobre qualquer coisa que lhe ocorresse, como havíamos combinado, e que, eventualmente, eu também lhe faria perguntas.

Marcos me contou que no dia anterior estava com vontade de comer massa e que, sem que ele tivesse falado nada, sua mãe fizera massa no jantar. Assinalei que me parecia que ele gostaria que eu também pudesse entender o que acontecia dentro dele sem que ele precisasse falar.

Daí para frente existiram alguns momentos de silêncio mas pudemos conversar sobre a família, a escola e os amigos numa espécie de visão panorâmica. Ao terminar a sessão, despedimos-nos e a minha impressão íntima era de que havia sido uma sessão relativamente parecida com tantos outros primeiros encontros analíticos com pacientes adolescentes. A única coisa que me chamava a atenção de forma especial é que eu havia sentido muito sono em alguns momentos e experimentado uma sensação de algo arrastado - pesado - no contato.

Um dia depois recebi um telefonema da mãe de Marcos dizendo que ele não voltaria mais e que não queria falar a respeito, nem com ela, nem comigo. Conversei um pouco com ela a respeito da minha surpresa e incompreensão do ocorrido, já que não havia percebido nada em meu encontro com Marcos que justificasse tal mal estar da parte dele. Sugeri-lhe que mantivéssemos o horário do dia seguinte e que ela, por sua vez, tentasse fazer com que o filho viesse a sessão para que pudéssemos conversar sobre as dificuldades que ele estava experimentando.

No dia seguinte, ela me ligou dizendo que Marcos estava irredutível e que, para não chegar a uma situação de enfrentamento com ele, não queria forçá-lo para que viesse. Concordei com ela e coloquei-me a disposição caso ele mudasse de idéia.

Depois disso fiquei remoendo a situação toda em minha mente, sentindo um profundo desconforto e, na verdade, percebendo que havia sido muito mal tratado e desconsiderado. Resolvi então, depois de longa e penosa reflexão, que precisava ser ouvido por Marcos e, já que não me permitiria isso diretamente, eu faria chegar a ele minhas palavras.
De alguma forma eu achava que, se me permitisse ficar impotente, como Marcos sentia que seu pai ficava diante das coisas, eu estaria fazendo mal a nós dois. Liguei então para a mãe dele e contei a ela o que estava pensando. Pedi-lhe que dissesse a Marcos que eu havia ligado e pedido a ela que lhe transmitisse o seguinte: "Que eu não entendia porque ele não queria sequer conversar comigo, mas que achava importante que ele soubesse sobre as coisas que me fez pensar e sentir. Ele havia me procurado e conversamos sobre a ajuda que ele precisava para então decidirmos juntos começar um trabalho e que, por isso, o mínimo cuidado que ele me devia era permitir-me participar também de sua decisão de não levá-lo adiante. E que, por fim, eu gostaria que ele soubesse que eu me preocupava com o fato de que, depois da violência desse rompimento, ele achasse que tudo poderia ser simplesmente esquecido".

Repeti as idéias principais várias vezes para que a mãe - uma mulher inteligente e perspicaz - fosse capaz de transmitir o essencial a ele. No final de nossa conversa, disse-lhe que, caso Marcos não concordasse em falar comigo, seria muito importante que ela o ajudasse a encontrar outra pessoa que pudesse atendê-lo, pois seria essencial para ele poder começar o mais rápido possível a lidar com suas dificuldades. Depois dessa conversa, pela qual a mãe se sentiu muito grata, não tive mais notícias de Marcos, a não ser os insistentes ecos da memória deste desencontro que, por isso mesmo, mobilizam-me a refletir sobre esse encontro transferencial marcado pela impossibilidade.

Levantei algumas questões sobre o que teria acontecido entre nós e que se transformou em inviabilidade. Uma das coisas que me ocorreu foi procurar entender que efeito pode ter tido para Marcos a proposição do enquadre analítico. Acredito que aí resida alguns dos aspectos importantes ligados a sua deserção da análise.

Do pouco que pude conhecer de Marcos, uma de suas maiores dificuldades era lidar com a imposição de horários que o pai fazia, o que ele considerava algo sem sentido, tolhedor e de alguma forma, revelador da impotência paterna. Teria havido, por conta disso, um importante impacto pela colocação de um enquadre que lhe propunha vir ao consultório duas vezes por semana, em horários determinados e ter quer falar sobre si?

Se for verdade, teria eu, por não haver compreendido isto, privado o paciente de um encontro menos marcado por definições e, portanto, menos claustrofóbico para ele? Seguindo este raciocínio, poderíamos pensar que, antes de lidar com seus conflitos de uma forma geral, esse paciente precisaria ter sido acolhido numa relação transferencial que lhe propiciasse recuperar ou desenvolver a confiança na criatividade do outro e na dele próprio.

Minha experiência transferencial com Marcos foi marcada, como já disse, por uma sensação de peso e muito sono, como se algo dentro dele estivesse imobilizado. Talvez seja neste sentido que a intimidade se revele a Marcos como algo tão difícil. Ele se relaciona com as pessoas mas não estabelece intimidade profunda com ninguém, exceto, talvez, com sua mãe.

Fico pensando se não seria esse o sentido claustrofóbico contido no enquadre que lhe propus, não teria sido esta a espécie de horror que, depois da primeira sessão, fez com que ele se afastasse?

Horror pela experiência de entrar em contato com sua própria interioridade e reconhecer-se diante de uma violência mortífera e defrontar-se com a impotência e a depressão que isso gera: pelo menos foi pensando desta forma que me decidi a mandar-lhe aquele recado através de sua mãe. Queria que ele soubesse sobre o efeito da violência praticada e os sentimentos que ela me causou e, acima de tudo, que soubesse que continuei vivo e me importei em transmitir-lhe minhas impressões de como tinha sido estar com ele.

Acredito que, se ficasse aprisionado na impotência em que ele me deixou, sem poder usar minha agressividade - a não ser contra mim mesmo - teria perdido uma oportunidade de ajudá-lo. Embora não saiba o alcance que possa ter tido minha intervenção, quando reflito a respeito disso sou levado acreditar que ela talvez possa ter promovido nele alguma mobilização que lhe tenha permitido levar adiante um projeto de análise com outra pessoa.

Outro aspecto interessante a ser considerado no presente caso é que talvez eu, enquanto pessoa real, tenha contado realmente muito pouco no desencadeamento transferencial. É provável que meu registro transferencial para o paciente tenha sido todo tomado pela formulação do enquadre enquanto desencadeador de uma vivência mortífera.

Busquei alcançá-lo para que nossa experiência juntos pudesse, de alguma forma, ser significada e para que ele pudesse integrar pelo menos os limites principais desta vivência emocional da qual ele tentava se livrar fazendo de conta que ela não existiu.

Não sei, entretanto, se minha voz transmitida a ele pela mãe teve um efeito de realização promovida a partir de um corte simbólico em relação à sua onipotência, ou se simplesmente ecoou como uma fantasmagoria do além. Seja como for, eu pude me ouvir e entrar em contato com meus limites, questioná-los e desafiá-los, na medida em que não fiquei impotente para pensá-los.

Foi a primeira vez que fiz uma interpretação, se assim posso chamá-la, intermediada pela voz de um terceiro. Talvez o encontro com Marcos tenha tido força criativa suficiente para me impulsionar a não ficar aprisionado nos limites das noções psicanalíticas estabelecidas e, quem sabe, meu gesto tenha podido significar isto para ele!

De qualquer forma, penso que o que estou buscando enfatizar neste trabalho é que o processo analítico nos exige muito mais do que a mera interpretação do reprimido e que a possibilidade de integração teórica e técnica desta concepção se daria a partir de uma visão metapsicológica que permitisse compreender a posição transferencial do analista como suporte direto da premência pulsional.

José Carlos Garcia
Professor e membro do Departamento Formação em Psicanálise
do Instituto Sedes Sapientiae - São Paulo
E-mail: josecgarcia@terra.com.br
Tel: 3081-7906


TRABALHO PUBLICADO EM:
PSICHê - Ano VI - nº 9 - Junho / 2002