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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    43 Setembro 2017  
 
 
HOMENAGEM

O BUSCADOR DOS SILÊNCIOS, DAS PALAVRAS E DOS RITMOS QUE INAUGURAM A VIDA PSÍQUICA


HOMENAGEM A VICTOR GUERRA[1]


CARLA B. METZNER[2]
ELOISA T. DE LACERDA[3]




Uma vivência, algo pelo qual
simplesmente eu passei, ou algo que
me aconteceu, ela não é nada se ela
não puder ser transformada em
alguma narrativa, compartilhável e
transmissível ao grupo ao qual eu
pertenço. É a transmissão, é o
compartilhar, que transforma a
vivência em experiência.

Walter Benjamin

Victor Guerra nos deixou!

Passamos agora por uma vivência. Vivência de luto que a psicanálise e a arte nos ajudam a trabalhar, e a tentar aqui converter em escrita esse afeto, buscando elaborar, partilhar, transmitir... e, nesta passagem pelas palavras, fazer a experiência dessa perda.

O homem, o psicanalista uruguaio Victor Guerra, faz falta.

O poeta Carlos Drummond de Andrade aloja a saudade em nosso peito fazendo da ausência um estar em mim, um estar em nós – uma ausência que ninguém nos pode tirar.

É certo que quando um amigo nos deixa, podemos manter uma conversa viva com ele, mesmo sabendo que já não pode responder às demandas das nossas dúvidas, das inquietações e das belezas que a arte na criação dos artistas nos oferece. E nisso podemos considerar que continua sendo muito importante dialogar com o pensamento clínico-teórico desse profissional. Foi esse o sentido de sua presença no último evento que promovemos. Ele não faltou, porque estava entre nós, em nós.[4]

Com sua criatividade nos manejos da clínica, sua consistência teórica e, sobretudo, com sua generosidade em partilhar conosco suas descobertas e seu pensamento, Victor metaforizava densos conceitos da Psicanálise com as palavras dos poetas e transformava em narratividade nossas experiências clínicas e nossos encontros com colegas de profissão e amigos de uma vida inteira. Com palavras e imagens – filmes, desenhos e obras de arte – sublinhava a importância do(s) vínculo(s) na vida das pessoas, de pacientes e profissionais, e os aspectos não-verbais do desenvolvimento, do corpo e da constituição do sujeito. Era assim que nos convidava a pensar a complexidade por demais intensa e bela dos primórdios da vida psíquica e também quando das relações e encontros humanos…

É muito difícil falar de Victor sem se emocionar. Sua alma ainda tão próxima e presente. Sua voz ainda reverberando em tantas trocas e diálogos... Eram tantos os autores – psicanalistas ou poetas – que conhecia, citava e de quem falava com entusiasmo! Victor dizia que os livros o encontravam e não havia para ele nada mais importante do que essa forma de conhecimento. Jorge Luis Borges diz que um livro é um conjunto de símbolos mortos que o “leitor certo” ressuscita e faz que a poesia por trás das palavras salte para a vida e se renove. Victor era esse leitor certo que tirava do silêncio as palavras e buscava nelas a infância da língua de Manoel de Barros, nosso poeta que tanto se ocupou do desconhecer.

A morte de Victor Guerra nos afeta.

Como nomear este momento em que precisamos falar dele, de nossa dívida para com ele, quando ainda gostaríamos de escutá-lo? E nos perguntamos o que acontece quando um grande homem se cala e, mais especificamente, quando esse homem nos deu o privilégio de conhecer seus “amigos imaginários” e seus “amigos reais”, oferecendo-nos uma paleta de cores de tons instigantes e renovadores? Se a literatura, a arte, a poesia e a psicanálise se beneficiam e se enriquecem do diálogo com a clínica e a teoria, essa alquimia entre o grande pesquisador, o pensador e o poeta era sempre harmoniosa. Victor passava de um campo de saberes a outro para fazer pensar e traduzir o humano em todas as suas nuances. Nesses momentos fazia-nos ouvir Octavio Paz, que assim traduzia seu pensamento sobre a vida: o humano e a vida têm um lado lamentável e um sublime.

Na sua clínica, Victor fazia valer criatividade para enlaçar as palavras e os saberes de sua maneira tão sensível, profunda e particular. Ouvia no silêncio os rumores das comunicações silenciosas, nos olhares os encontros e desencontros, nos ritmos as alternâncias do movimento da vida. Sempre dialogando com a arte, lembrava que Mia Couto era um biólogo que conversava com outros saberes, e que ele era um psicanalista que tornava o diálogo do pesquisador e do poeta profundos e ao mesmo tempo completamente simples na transmissão.

Dedicou sua vida ao trabalho com bebês, crianças e seus pais. Foi um dos idealizadores da Declaração de Cartagena em defesa do tratamento psicanalítico das crianças com suspeita de autismo. Sua frase crianças com suspeita de autismo e analistas com suspeita de ineficácia era uma provocação bem humorada à psicanálise contemporânea e à postura clínica que, muitas vezes, não consegue ir ao encontro das necessidades do paciente. E era assim que na sua escrita dessa clínica gostava de escovar as palavras, como os arqueólogos escovavam os ossos, à maneira de Manoel de Barros, que buscava nelas o caminho luminoso para tocar as notas certas e produzir os sons e os silêncios que se aproximavam da complexidade humana.

Percorreu a sétima arte para nos falar de conceitos densos como a ambivalência materna e o complexo do arcaico[5], trabalhando conosco o bônus Tin Toy da Pixar, no qual o bebê representa o arcaico de nossos primeiros tempos e o soldadinho a mãe, com sua ambivalência frente às intensidades de seu bebê. Trabalhou o ritmo na relação mãe-bebê com o filme Camelos também choram, e apresentou-nos a Tangos, de Carlos Saura, quando ministrou o curso A Observação Mãe-Bebê[6]. Nessa arte, torna-se também autor, e escreve nessa outra linguagem o filme Indicadores de Intersubjetividad (1ª parte, 0-12 meses: Del encuentro de miradas al placer de jugar juntos; 2ª parte, 6-12 meses: Del desplazamiento en el espacio al placer de jugar juntos[7] .

Sua tese de doutorado[8] trabalha o ritmo e a lei materna, que mantemos aqui em suas palavras: Esto implica que esa disponibilidad lúdica, necesaria, que tiene que tener la mamá para que el bebé se subjetivice y se separe, me llevó a mí a plantear una hipótesis sobre cómo pensar esos encuentros rítmicos, que favorecen los procesos de subjetivación y simbolización. Y, tomando en parte el aporte de René Roussillon (Paradoxes et situations limites de la psychanalyse. Paris: PUF, 1991), planteo la hipótesis de una ley materna. Porque, en psicoanálisis, estamos muy acostumbrados a los grandes aportes de Lacan de pensar una ley paterna que propicia la separación de la madre y del bebé. Pero, ¿por qué no pensar que a la par de una ley paterna habria una ley materna del encuentro, que está en consonancia con la ley paterna?[9]

Sua morte não encerra o diálogo que continuaremos a fazer com a sua obra e as suas grandes contribuições para pensar a psicanálise e suas questões mais contemporâneas e atuais, mas deixará muita saudade por ter partido tão cedo, prematuramente, do alto dos seus 59 anos de vida. Resta-nos o conforto de pensar no legado que Victor nos deixa. De pensar em sua obra até hoje muito pouco publicada, mas já tornada pública em eventos, aulas, supervisões e artigos em revistas do campo psicanalítico. Ela nos ajudará a aceitar melhor sua morte prematura e a buscar com ele – que agora já deve estar lá no alto conversando com seu querido Manoel de Barros e tantos outros também nossos queridos – tanto a complexidade fascinante dos primórdios da vida psíquica e do amanhecer da linguagem, quanto a poesia dos poetas e os roteiros dos filmes de arte e das artes cênicas.

Victor Guerra faleceu no dia 27/6/2017 e esteve até os últimos momentos da sua vida muito vivo, e deixou o mundo com “fúria silenciosa”. Talvez a poesia com a qual fazemos questão de finalizar nossa homenagem a Victor seja um pouco forte para este momento, mas com certeza era uma das muitas de que ele gostava muito.

Eu deixarei o mundo com fúria
Não importa o que aparentemente aconteça,
Se docemente me retiro
De fato
Neste momento estarão arrebentando
Raízes tão fundas
Quanto esses céus uruguaios
(com a permissão de Gullar)
Num alarido de gente e ventania
Olhos que amei
Rostos amigos, tardes e verões vividos
Estarão gritando aos meus ouvidos
para que eu fique
Não chorarei
Não há soluço maior do que despedir-se da vida.


Despedida, Ferreira Gullar

 

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[1] Psicólogo, Psicanalista Membro da A. P. U. – Associação Psicanalítica do Uruguai e Membro e Correspondente da ABEBÊ – Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê.
[2] Psicóloga e Psicanalista.
[3] Fonoaudióloga e Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[4] Victor Guerra não veio pessoalmente ao evento por já estar fisicamente muito debilitado. Dialogando com o Pensamento de Victor Guerra foi promovido este ano pela ABEBÊ com a parceria da SBP-SP e com o apoio de algumas instituições brasileiras: Sociedade Brasileira de Psicanálise/SP, Instituto Avisa Lá, CPPL- Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem, Clínica da Constituição do Laço: corpo, linguagem e psicanálise, Departamento de Psicanálise com Crianças do Sedes, Lugar de Vida. 01 de abril de 2017.
[5] No curso Os transtornos do sono no bebê e o pesadelo na vida dos pais, na Jornada A Terapêutica dos Vínculos pais/bebês: o ritmo, os sonhos e os pesadelos na música da vida promovida pelo Serviço de Acolhimento Relação mãe/bebê da DERDIC/PUC-SP em out/2008. E a publicação do texto “A ética dos cuidados: o Complexo do Arcaico e a estética da subjetivação”, In: Kahn Marin, Isabel; Aragão, Regina Orth (orgs). Do que fala o corpo do bebê. São Paulo: Escuta, 2013.
[6] Módulo do curso de pós graduação Lato Sensu Clínica Interdisciplinar com o bebê: a saúde física e psíquica na primeira infância no ano de 2009 na Cogeae/Puc-SP coordenado pela Eloisa Tavares de Lacerda (2003-2010).
[7] Esse filme nos foi apresentado na Jornada O Olhar, a Palavra e o Silêncio na clínica do in-fantil promovida pelo Departamento Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes em junho/2015.
[8] O ritmo e os indicadores da intersubjetividade no processo de subjetivação do bebê. Essa tese foi concluída em seus últimos sopros de vida, mas infelizmente não defendida! Será publicada em breve por uma editora francesa.
[9] Victor Guerra, Palavra, ritmo e jogo: fios que dançam no processo de simbolização, material gentilmente cedido pelo autor aos colegas inscritos no evento Dialogando com o Pensamento de Victor Guerra, op. cit. Publicado nessa versão em português na Revista de Psicanálise – SPPA.




 
 
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