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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    01 Junho de 2007  
 
 
ESCRITOS

Crônica para uma vida anunciada


DÉCIO GURFINKEL


O desejo de escrever esta crônica foi despertado pela confluência de diversos fios, entrelaçados no espaço intermediário entre o pessoal e o compartilhado. Dentre eles, destaco dois: o ressurgimento do Boletim e a Segunda Jornada do Feminino do nosso Departamento de Psicanálise.

A participação na Primeira Jornada do Feminino foi para mim muito estimulan-te, assim como tem sido o caso de grande parte dos eventos do Departamento. Foi movido por este entusiasmo que me inscrevi na Segunda jornada; mas quis um azar do destino que eu não pudesse estar presente, já que estaria em um evento fora de São Paulo. Eu já havia, porém, preparado o trabalho que iria apresentar, e quando soube do ressurgimento do Boletim logo pensei em encaminhar o texto para ser pu-blicado neste órgão; esta seria minha forma de “não perder” inteiramente a Jornada, contornando a minha “falta” pela presença simbólica no Boletim. Em seguida compre-endi, no entanto, que a característica do artigo não condizia com o perfil do Boletim1, o que ensejou a presente reflexão.

Bem, e qual era a idéia que pretendia apresentar na Jornada? O trabalho bus-cava discutir a noção de “encontro” em conexão com alguns aspectos da teoria da sexualidade, utilizando como material ilustrativo uma pequena narrativa não-ficcional. Freud postulou, em sua teoria sobre a sexualidade, a contingência do objeto da pul-são. Esta formulação poderia nos fazer concluir que o encontro com o outro é sempre uma miragem, ou pelo menos um simples meio casual e ocasional para atingir o fim último que é a satisfação da pulsão. Anos depois, Freud retomou, em Além do princí-pio do prazer, o mito de Platão que concebia a busca amorosa de um parceiro como a busca de uma outra metade de si perdida. Este mito nos faz pensar que todo encon-tro é sempre um re-encontro. Freud retomou o mito no seio da reformulação da teoria das pulsões de 1920, e especulou que o princípio de “retorno a um estado anterior” – sua nova maneira de conceber a natureza da pulsão – poderia ser aplicado à pulsão sexual nos termos do mito de Platão: o “estado anterior” seria o estado mítico anteri-or do ser homem-mulher indiviso. Neste novo momento da teorização, a problemática sexual passa a ser inserida no círculo mais amplo das pulsões de vida (Eros). Lacan veio a afirmar, posteriormente, que “a relação sexual não existe”; a sua meta era ressaltar – penso - o fundo narcisista e o engodo de toda relação amorosa, a radicali-dade da alteridade e o desencontro estrutural Eu - outro. Winnicott, por sua vez, con-cedeu um lugar privilegiado à idéia de encontro (meeting). Em sua pesquisa sobre a transicionalidade, ele postulou a experiência da ilusão como a matriz da criatividade humana, na qual se sobrepõe percepção e concepção do objeto. O encontro com o outro – e o encontro amoroso - podem ser referidos à área da ilusão, abrindo cami-nho para uma releitura da problemática da escolha de objeto.

Com esta idéia em mãos, me ocorreu que o “encontro amoroso” também po-deria ser considerado no âmbito das relações grupais e institucionais. Ora, esta “asso-ciação” combinou com meu sentimento atual com o Departamento: um discreto oti-mismo, no qual o gosto pela produção psicanalítica compartilhada suplanta os dissa-bores das dificuldades da convivência. Vejo neste “espaço entre” com meus pares uma área possível de ilusão e de encontro, reconhecendo-me no seio de uma comuni-dade psicanalítica “suficientemente boa”.

Como pensar “a mítica do encontro amoroso e o trabalho de Eros” – pois este é o título de meu artigo – no âmbito de uma associação de psicanalistas como a nos-sa? Se o outro pode ser nosso objeto de satisfação, nosso adversário ou nosso rival, ele pode ser também nosso “semelhante”. Mas a constituição de um par, para que seja consistente, deve resultar de um árduo trabalho de elaboração da ambivalência da dor da diferença, do qual pode emergir uma possível identificação mais ou menos estável e madura. Algo assim como um trabalho da sublimação, mas não só: também penso no controvertido “caráter genital” (segundo Abraham, a elaboração humana-mente possível do narcisismo e da agressividade), no trabalho de reparação (Klein), na função do terceiro na relação especular (Lacan) e na construção de um espaço potencial de ilusão e de encontro (Winnicott). No caso da vida institucional, estes “trabalhos” incluem necessariamente o enfrentamento do conflito entre individual e coletivo, conflito que acredito não estar necessariamente fadado ao impasse; pois na área transicional, este conflito pode ganhar um novo encaminhamento se experimen-tado segundo o paradoxo da sobreposição entre criação própria e encontro com o ob-jeto.

Uma das grandes contribuições de Winnicott foi ressaltar como, para manter a área da ilusão, não basta o movimento pessoal do desejo; é necessário um outro que vá ao encontro [to meet] deste movimento, sustentando, desta forma, a mítica da reciprocidade do encontro amoroso. O ponto crucial é, pois: até que ponto cada um de nós encontra no Departamento este “ambiente suficientemente bom”, no qual po-de lançar os fios do desejo próprio e encontrar um espaço de ressonância e de entre-laçamento possíveis? É claro que a resposta só virá da experiência, e que o que está em jogo é sempre uma aposta. Mas a aposta não se dá às cegas: ela depende das condições subjetivas (pessoais) e objetivas (“ambientais”) para ser lançada e, talvez, ter a força e a sorte de engendrar um devir mais auspicioso. Repito: o meu sentimen-to é de uma conjuntura favorável, e por isto o relançamento do Boletim me desperta vagas sensações de sonho.

Concluo com uma fantasia pessoal e com um brinde. Convido meus pares a compartilharem, se possível, da seguinte imagem onírica: neste momento de renas-cimento do Boletim, figuremo-nos reunidos no interior de um templo grego dedicado a Eros, a fim de celebrar o momento e de pedir ao deus protetor de nossa pequena / grande comunidade psicanalítica que aceite mais esta oferenda. Trata-se de uma “cesta de frutos” de nossa (modesta?) colheita, dando seguimento à aposta coletiva que nos agrega. TIN-TIM!


1 Segundo informação da comissão organizadora da Jornada, o referido artigo provavelmente integrará um livro dos trabalhos do evento a ser publicado, juntamente com os de outros colegas que, como eu, não puderam estar presentes.
erá ser acessado também pelo público em geral.

 




 
 
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