PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    01 Junho de 2007  
 
 
O MUNDO, HOJE

Tempos de luto por vidas perdidas


MARIA LAURINDA RIBEIRO DE SOUZA*


Este texto foi escrito a partir de mais uma notícia dramática en-tre nós. Sua proposta é a de criar discussão, promover encontro de saídas possíveis, criar um espaço aberto de contribuições so-bre isso. Quem sabe, delinear alguma ação em que mais pesso-as se sintam mobilizadas para se incluir... Quando ele circulou pela internet, entre um grupo de pessoas conhecidas, provocou reações interessantes - foi tema de uma discussão comunitária, foi apresentado como proposta de trabalho numa escola, criou conversas entre amigos.... pequenos gestos, mas significativos. Quem sabe eles não criam uma rede e se tornam maiores...

Da reconstituição da cena do crime que provocou a morte de João Hélio Fernandes Viei-tes, feita no último dia 15, quero destacar três fatos: primeiro – a polícia desistiu da idéia de utilizar um boneco representando a criança violentada e morta, segundo – não levaram os jovens responsáveis por esse assassinato para a cena do crime, pois teme-ram que eles fossem linchados pela população, terceiro – das casas vizinhas à cena e da população presente, surgiram manifestações de solidariedade à família enlutada, pedidos de paz e de medidas eficientes de combate à violência.

Muita coisa já foi escrita no clamor emotivo da cena traumática – alguns textos reto-mando a exigência de diminuição da maioridade penal, criticando o que denominam de propostas “idealistas” ou “hipócritas” presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente, outros apontando para um fato já bastante conhecido – as cenas vividas por esses jovens infratores nos locais de aprisionamento – sejam as Febems e correlatos, sejam as celas das prisões comuns: superlotações, péssimas condições, maltratos, “escola do crime”, seja a vida nos bairros da periferia (mas não só) – condições de vida, desigual-dades sociais, desemprego predominante entre os jovens, tráfico e uso de drogas, cha-cinas provocadas por milícias, ou por gestos vingativos... De tudo isso nós sabemos, mas mesmo assim...

Parecemos ter energia muito maior para o protesto, para as queixas e para a exigência de medidas punitivas e violentas contra os criminosos. Se eles forem menores a indig-nação é maior, porque para eles ainda há uma “certa barreira garantida” pela lei – e essa barreira deveria, então, ser eliminada. Talvez, também, porque por serem jovens teriam um tempo maior de vida e, portanto, maiores possibilidades de reincidir no cri-me – repetindo o mesmo tipo de delito. Talvez porque não suportamos olhar para as conseqüências reveladoras de alguns desses crimes: se o Brasil figura entre os países com maior índice de violência, com maior desigualdade social, com o medo disseminado no exterior de viajar turisticamente para cá, não é porque a “maldade” de nossa gente anda à flor da pele, esperando o momento oportuno de se manifestar e, portanto, cabe a medida preventiva de eliminar os portadores que a revelam. Sabemos que essas situ-ações são como a ponta de um iceberg – elas põem de manifesto a descrença na prote-ção do Estado e na garantia de que ele será o porta-voz legítimo da violência. Denunci-am, ao contrário, a violência aviltante da corrupção generalizada que desvia os poucos recursos disponíveis das ações sociais para o enriquecimento ilícito e para o turismo pelos bancos estrangeiros... É reveladora também da perda dos laços sociais, do pre-domínio dos interesses narcísicos e individualistas, da crueldade de um coletivo que condena à marginalidade e à invisibilidade os que não tem “sucesso”, da desvalorização da vida e da banalização da morte... Mas, com relação a isso, o que fazer?

A apatia e a descrença em nossas possibilidades de intervenção no caos da vida política e social tem sido maior do que nossas possibilidades de ações eficazes. A apatia e a descrença caminham em paralelo com o crescimento da violência. Numa cultura como a nossa, em que o maior índice televisivo atém-se aos Big-Brothers da tela – onde parece que o nosso cotidiano só se preenche com diálogos pobres e cenas explícitas de rela-ções amorosas ocasionais e sem respeito pelo outro, onde tirar a cueca de um dos par-ticipantes dá mais ibope do que pensar na falta de proteção e do “cuidado de si”, onde o que importa é estar na vitrine, ser visível a qualquer custo – não importando os efei-tos de seus atos - haveria muito o que analisar...

Outros escritos e entrevistas nos meios de difusão tentaram alertar para o fato de que o maior índice de criminalidade não está entre os jovens abaixo de 18 anos e que o fato destes serem presos em celas comuns não tem evitado as reincidências e os crimes bárbaros – portanto, esta não seria obviamente a melhor solução. Isto não quer dizer que a impunidade deva ser defendida, e não é disso que se trata em nenhuma das a-bordagens feitas. Pelo contrário, a punição é legítima e deve ser agilizada – principal-mente para os crimes cometidos pelo Estado, pois a sua impunidade se dissemina pelas redes sociais e aumenta os slogans tão conhecidos: “rouba, mas faz”, “cada um por si e os outros que se fodam”, “o importante é ser esperto”...

Também alguns articulistas, nestes quinze dias seguintes à morte de João Hélio, cha-maram a atenção para o fato de que nada mudará – esse será mais um escândalo - como tantos outros - que cairá no esquecimento. Ou no recalque que, psicanaliticamen-te, é o esquecimento confortante à nossa imobilidade. Caberia aqui uma responsabiliza-ção de todos que falam publicamente ou intimamente com sua família, amigos, vizinhos etc. Seria importante que se pudesse ir além das palavras, para que não se incorresse na mesma dissociação hipócrita entre discurso e ato que tanto criticamos na prática política. Escrevemos, falamos, bradamos por mudanças, mas parece que pensamos que, dessa forma, já teríamos feito a nossa parte, como os políticos em seus palan-ques. Fato curioso: nos desimplicamos no exato momento em que terminamos de falar. Será que não seria viável, por exemplo, que todos que se aterrorizaram, se indignaram pudessem oferecer, dentro de suas especialidades, algum tipo de atividade que manti-vesse presente o questionamento de uma cultura pautada pela violência e desenvolves-se, nos cidadãos, outro tipo de valores e de acolhida aos que vivem situações desfavo-recidas? E a mídia? Que tal seria se, a cada semana, os jornais fizessem um caderno específico só para bairros (e para todos os bairros) onde caberiam investigações sobre os recursos de saúde, educação, segurança, cultura e um espaço significativo às mani-festações da população – não só de suas necessidades, de suas carências, mas também de suas produções? Artigos escritos pelos anônimos que teriam, dessa forma, outra visibilidade possível.

Retomemos, então, os pontos destacados na cena de reconstituição do crime. Uma cri-ança, um sujeito humano não poderia ser equiparado a uma “coisa”, a um objeto inaNimado – essa foi, aliás, uma das falas supostas de um dos jovens criminosos “é só um boneco”! Essa decisão aponta para o valor que deve ser priorizado e reconhecido em qualquer ser humano. Acertou a polícia quando desistiu de incorrer no mesmo erro; fez uma ação afirmativa do valor da vida.

Acertou, também, ao não levar os jovens assassinos para a cena do crime – pôs de relevo a assertiva de que em situações de pânico a violência se generaliza e provoca maior violência – sabia que havia um desejo vingativo e de chacina, à flor da pele. Con-firmou, por essa ação, que a justiça precisa de tempo – tempo justo e não procrastina-ção e acúmulo de processos e de decisões – e de distância da cena do crime. Priorizou-se a idéia de justiça e não o clamor de vingança. Em terra onde as penalidades forem pautadas pela Lei de Talião – olho por olho e dente por dente – temos grandes riscos de perda dos dentes, dos olhos e da vida, afirmando-se o predomínio da barbárie.

E por último, e o que nos resgata, ainda, a possibilidade de sermos humanos: muitas das pessoas presentes e moradores das casas vizinhas à cena do crime, manifestaram sua solidariedade e fizeram apelos de combate à violência. Ocuparam o espaço público reivindicando um direito justo: poder transitar pelo espaço urbano sem tanto medo e sem ver em cada vizinho um inimigo. Talvez seja isso que deva ganhar mais visibilida-de: ainda são possíveis os gestos de solidariedade, ainda é possível acreditar na saída do narcisismo e do individualismo de nossas celas privadas e ocupar as ruas como for-ma de protesto e de pressão política para uma vida mais digna, uma vida onde se pos-sa acreditar no futuro, na força da juventude, na justiça e onde seja possível abolir a ocorrência de tantos crimes bárbaros tendo o cuidado de não fazer uso abusivo da le-gislação do pânico e não se pautar pelo furor vingativo.

*Maria Laurinda Ribeiro de Souza – psicanalista, membro do Departamento de Psicaná-lise do Instituto Sedes Sapientiae, autora do livro Violência – Casa do Psicólogo, 2005. Colaboração de Lia Fernandes – psicanalista, autora do livro Olhar do engano – Autismo e Outro primordial – Edit. Escuta, 2000.




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/