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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    01 Junho de 2007  
 
 
O MUNDO, HOJE

A psicanálise e o tempo dos esquecimentos


DAVID CALDERONI*


Esquecimentos que parecem absurdos, impossíveis e inexplicáveis podem sim acontecer com qualquer pessoa. Desde os seus primórdios, a psicanálise afirmou e procurou fundamentar essa idéia.

Esquecimentos desconcertantes que surpreendem pessoas normais em meio aos seus afazeres diários são abordados no livro em que Freud introduz uma explicação geral e sistemática desses fenômenos: Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, lançado em 1901. É justa a popularidade da obra, pois oferece ao homem comum a possibilidade de encontrar em mecanismos psicológicos universais uma explicação convincente para os chamados lapsos ou atos falhos, designações que englobam perturbações da memória, da linguagem e do controle motor.

Segundo o mecanismo básico proposto por Freud, os lapsos ocorrem quando um desejo inconsciente adquire intensidade maior que a das forças que o reprimem, levando a pessoa a agir de modo contrário à sua vontade consciente, pois causaria mais desprazer agir conforme o figurino. Mas Freud frisa que quanto maior é o estranhamento diante do ato falho, tanto maior é a dificuldade em descobrir qual é o desejo inconsciente. Isso porque, para driblar a censura erguida pelas forças que o reprimem e com ele conflitam, o desejo inconsciente acaba se expressando mediante formas disfarçadas. Isso significa que se eu esqueço de dizer um polido não ao responder se quero a última guloseima da mesa, a intenção inconsciente pode ser imediatamente descoberta e facilmente reconhecida, pois não está em jogo uma grave transgressão. Porém, se eu esqueço de seguir uma regra de segurança e provoco um sério acidente que afeta entes queridos, isso não significa necessariamente que havia um desejo inconsciente de machucá-los. A investigação da natureza dos desejos em jogo, conforme a regra fundamental da clínica psicanalítica, chamada de livre-associação, requer o esforço consciente de suspender qualquer julgamento moral, lógico ou estético sobre os pensamentos e os sentimentos da pessoa engajada nessa investigação.

Evidentemente, há esquecimentos para os quais a psicanálise não tem uma teoria explicativa pronta. No fatal esquecimento dos bebês, os pais apontaram a quebra da rotina como causa ocasional das tragédias, o que sugere, a meu ver, a necessidade de se pensar numa teoria psicanalítica do tempo social.

De fato, não só pela coincidente alegação de quebra de rotina, o tempo é um fator notável nas tragédias do consultor de academias Carlos Alberto Legal e do biólogo Ricardo Garcia: ambas as crianças tinham pouco mais de um ano; as duas fatalidades ocorreram com intervalo de um ano, no início do outono. Além disso, seja indo à academia, seja buscando dormir sob intensa cefaléia, o lapso do esquecimento abriu um intervalo de tempo para que os pais pudessem cuidar de suas urgências pessoais.

No tempo em que predomina a luta de todos contra todos, a rotina sulca estratégicas trincheiras entre o cuidado de si e do outro. Invólucros dos esquecidos, os carros são os veículos de distribuição destes tempos, entre cujas passagens as crianças desapareceram. Minha hipótese é que a quebra de rotina contrapôs o cuidado do filho ao cuidado de si, num contexto em que o modo de existência e de acumulação social da riqueza implica uma luta incessante contra o invisível e impessoal ladrão dos tempos da delicadeza, da solidariedade, da amizade e do amor, ocasiões em que o cuidado de si e do outro se alimentam reciprocamente. Em outro tempo e espaço, talvez possamos desenvolver essa direção de idéias.

*David Calderoni é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, doutor em Psicologia pela USP e professor do Curso de Especialização em Psicopatologia e Saúde Pública FSP-USP. Publicou O Caso Hermes: a dimensão política de uma intervenção psicológica em creche.




 
 
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