PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    02 Setembro de 2007  
 
 
ESCRITOS

Psicanálise para quem?


                                   MARA SELAIBE*

 

Dizer que é preciso se manter sempre sob o domínio da lógica é tese ordinária num mundo que se preza pela posse da razão. Em defesa dessa posição, toda irracionalidade deve ser estrategicamente cooptada a ponto de forjar um tecido duro que sustenta em suas fibras a ordem científica concêntrica. Loucuras tristes do pensamento.

 

Quando Freud enunciou a psicanálise como método de acesso ao inconsciente, ofereceu à sua época algo a mais do que o muito que a poesia, a filosofia, a dramaturgia e a literatura já nos tinham feito saber no transcorrer dos tempos precedentes: a proposta racionalista é obtusa por pretender fazer assepsia, através de matrizes lógicas, da matéria primariamente sem fundamento e sem forma de onde o pensamento se cria. O pensamento organizado é trama que se faz num caldo de sensações, percepções, fantasias, intuições, sonhos, observações e acasos. Um caldo composto de fluxos do inconsciente articulados, por alguma linguagem, na ordem da consciência e do eu. Por isso não lhe compete ser asséptico. Mas o mais notável é Freud ter sustentado que o eu não é a instância geradora e central pela qual se toma.

 

Foi ele, então, quem enunciou a terceira das três feridas narcísicas da humanidade: o eu não é o centro de si. E o eu não é o centro de si num mundo no qual, faz questão de nos lembrar o próprio psicanalista, a Terra não é o centro do Universo (Copérnico) e nem a espécie humana é criação divina, mas se origina na ordem da natureza (Darwin).

 

Ainda que a modernidade tenha organizado seus saberes levando em conta, em especial, Copérnico e Darwin, o mesmo não se passou com Freud e sua psicanálise. Esta nos rouba a quimera de nos auto-dirigirmos, de sermos o que escolhermos ser. A dor é tamanha que mesmo entre os homens mais instruídos sobre as verdades da cultivada Ciência, muitos resistem a acatá-la. A psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco (Paris, 1999) conta que em Biology of the conscience (New York, 1992), Gerald M. Edelman, neurobiologista norte-americano e ganhador do Nobel de medicina, relata o desfecho de um tipo de discussão calorosa e freqüente que mantinha com seu amigo Jacques Monod (reconhecido biólogo molecular) a respeito de Freud. "Ele (Monod) afirmava peremptoriamente que Freud era anticientífico e que, provavelmente, tinha sido um charlatão. Por meu lado eu defendia a idéia de que, mesmo não sendo científico no nosso sentido da palavra, Freud fora um grande pioneiro intelectual, em particular no que concerne à sua visão do inconsciente e do papel deste no comportamento. Monod, que vinha de uma austera família protestante, respondia a isso dizendo: ‘Sou inteiramente cônscio de minhas motivações e inteiramente responsável por meus atos. Todos eles são conscientes'. Exasperado um dia eu lhe retruquei: ‘Jacques, vamos dizer, muito simplesmente, que tudo o que Freud disse se aplica a mim e que nada se aplica a você'. ‘Exatamente, meu caro amigo', respondeu ele."

 

Não apenas homens do saber se opõem a admitir que não sabem de si. Popularmente parece que foi necessário inventar uma frase que, absolutamente, não tem a ver com a própria natureza da psicanálise, mas que exerce o poder de iludir e frustrar a todos que a tomam como verdade. Refiro-me à conhecida expressão "Freud explica". Será mesmo? Freud nos contempla com um método e uma teoria que nos obrigam a suportar justamente a ignorância, a face obscura, a ininteligibilidade de muitos de nossos móveis. E pior de tudo, saber que o conflito interno de cada qual não se extirpa nunca - uma vez que o inconsciente vibra e pulsa sem cessar. Mas se a psicanálise não é explicativa, ainda assim ela se presta à nossa insaciável busca de produção de sentido para tudo que vivemos e experimentamos. Mesmo que seja, no limite, para nos apropriarmos do pior em nós.

 

É assim que, como adepta, declara Françoise Giroud no periódico francês Le Nouvel Observateur (n.1610, 14-20 de setembro de 1995): "A análise é árdua e faz sofrer. Mas quando se está desmoronando sob o peso das palavras recalcadas, das condutas obrigatórias, das aparências a serem salvas, quando a imagem que se tem de si mesmo torna-se insuportável, o remédio é esse. Pelo menos eu o experimentei (...). Não mais sentir vergonha de si mesmo é a realização da liberdade (...). Isso é o que uma psicanálise bem conduzida ensina aos que lhe pedem socorro".

 

*Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Integrante do Grupo de Estudos sobre a Intolerância, conveniado ao Laboratório de Estudos sobre a Intolerância da Usp (LEI/ USP). Autora do livro Ensaio clínico sobre o sentido (EDUSP/Casa do Psicólogo, 2003).




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/