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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    02 Setembro de 2007  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

Percurso nº. 38 publica resposta às opiniões polêmicas de E. Roudinesco sobre os Estados Gerais da Psicanálise


 
GISELA HADDAD*

 

Publicada na revista Percurso nº. 37, a entrevista feita à psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco trouxe algumas opiniões da mesma a respeito dos Estados Gerais da Psicanálise[1], movimento do qual foi uma das idealizadoras, junto a outros psicanalistas de vários lugares do mundo, em 2000, Paris.  Roudinesco exalta o sucesso do I Encontro Mundial realizado em Paris em resposta à convocatória de René Major, mas surpreendentemente desconsidera o valor do II Encontro Mundial, ocorrido no Rio de Janeiro em 2003, e omite qualquer referência aos quatro encontros latino-americanos, dos quais três foram realizados no Sedes com grande afluência de psicanalistas brasileiros e argentinos, inclusive muitos  membros de nosso Departamento.

 

A publicação da entrevista suscitou, à guisa de resposta, o envio de dois textos elaborados respectivamente pelo Comitê de Organização do 2º Encontro Mundial ("Quem escreve a História da Psicanálise?") e pelo Comitê de Coordenação do IV Encontro Latinoamericano ("Estados Gerais da Psicanálise: acontecimento ou movimento?").

 

Ambos os documentos foram publicados na seção Debates da Revista Percurso número 38 e já estão circulando entre os participantes do movimento, acompanhados de uma proposta para a organização de um próximo encontro latino-americano. Seguem aqui também divulgados.

  

QUEM ESCREVE A HISTÓRIA DA PSICANÁLISE?

Em entrevista concedida à revista Percurso nº. 37 e publicada recentemente, Elisabeth Roudinesco responde de forma incisiva e competente às variadas e polêmicas questões que lhe foram dirigidas na ocasião. A resposta à primeira pergunta, que indaga sobre seu percurso entre a história e a psicanálise, é um prenúncio do lugar do qual Elisabeth Roudinesco vai responder a todas as outras: o de historiadora da psicanálise, em particular o de "ego-historiadora". Essa idéia, por ela adotada, lhe permite "... fazer o historiador testemunhar - usando os métodos da história - sobre si mesmo" e "explicar devido a quais motivações pessoais escolheu um objeto de estudo e não outro". Coerente com esta posição, declaradamente implicada já que recusa as ilusões da neutralidade, discorre com desenvoltura e da forma assertiva que lhe é característica sobre os temas abordados, todos eles urgentemente atuais, sem recuar diante do teor altamente conflitivo e contraditório que alguns temas encerram.

 

A leitura desta entrevista nos suscitou uma reflexão útil e necessária; nossa manifestação, entretanto, não implica a intenção de intervir de modo geral naquilo que é exposto na entrevista. Obedece, antes, à necessidade de questionar certas afirmações ali contidas, não apenas para contestá-las mas, principalmente, para evitar que suas declarações possam vir a ‘estabelecer a história', em particular a história de um evento recente e que nos implica como grupo, que foi o Segundo Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise, no Rio, em 2003.

 

Aquilo que primeiro chama a atenção é sua afirmação peremptória de que, em sua opinião, este segundo encontro foi um fracasso. Apesar de o uso das palavras "a meu ver" circunscrever o que declara ao campo da opinião, expressando um ponto de vista, o fato de ser expressão de uma historiadora, e duplamente implicada, como historiadora e psicanalista, encerra o risco de que tal ‘fracasso', que nos diz respeito, vir a ser sancionado como verdade factual para todos aqueles que nada sabem da história. Nada se sabe sobre a análise nem sobre as motivações pessoais que a levaram a uma conclusão tão terminante e definitiva: "já não é mais o caso de ficar ruminando sobre o acontecido", nos diz. Tampouco se conhecem quais fatores levaram a entrevistada a historiar o segundo encontro dessa maneira, principalmente considerando-se que ela lá não esteve presente, como se esperava.

 

Ocorre, então, perguntar: o que entende Elisabeth Roudinesco por fracasso? Quais seus critérios de análise que norteiam esse diagnóstico tão comprometido e aparentemente definitivo? Falta de quorum não foi; o Encontro Mundial do Rio contou com a presença ativa de centenas de psicanalistas experientes e reconhecidos, dispostos a um inédito debate plenário, tal como de fato aconteceu. Ela mesma assinala que, para seu grande espanto, uma das conferências - onde foram proferidas, segundo sua opinião, "coisas absurdas" - foi aplaudida por 700 psicanalistas. Em respeito à verdade histórica, deve-se corrigir esse número: o segundo encontro reuniu 576 participantes, psicanalistas em sua grande maioria mas também alguns não-psicanalistas, pagantes, além de umas duas dezenas de convidados, entre os conferencistas, jornalistas e que tais. Se não foi por falta de participantes, teria o teor altamente polêmico das conferências sido o responsável por essa visão? Estranhamente, em trecho anterior da entrevista, Elisabeth Roudinesco critica a facilidade com que psicanalistas muitas vezes se antagonizam por "cada um ter seu próprio dogma". Ali ela analisa bem o dogma como sendo a opinião institucional - os psicanalistas e suas escolas - que limita o debate; em seguida utiliza sua opinião para determinar que o debate fracassou? Justamente quando o encontro se realiza fora das instituições e das escolas, para debater os temas mais candentes da atualidade?

 

Não se trata, aqui, de apontar uma controvérsia sobre um mesmo fato, menos ainda de uma tentativa de reverter a sanção de fracasso em sucesso, como se tratasse de um espetáculo. Todo crítico tem direito a emitir um juízo de valor a respeito daquilo que analisa mas é necessário que apresente seus argumentos e, quando implicado, que também apresente a análise da sua implicação. Trata-se de entender a lógica que pode ter levado Elisabeth Roudinesco a construir a sentença, estranha a uma historiadora, que diz que "a experiência [de Paris] não devia ter sido repetida". Surpreendente assertiva: seja como historiadora, seja como psicanalista, pois ela sabe que as experiências não se repetem. Acrescenta que os Estados Gerais de Paris constituíram um "momento único e não-renovável", "um instante fulgurante, arrancado à continuidade da história", "um puro acontecimento", e que, por isso, não quis vir ao Rio de Janeiro. Ora, os Estados Gerais foram fundados como movimento e o Encontro no Rio de Janeiro foi seu segundo passo. Quase um continuum de reflexão e debate, inaugurado com o encontro de Paris, sem o caráter de institucionalização e filiação, tão bem criticados pela historiadora. Na assembléia de encerramento em 2000, Elisabeth Roudinesco não se manifestou contra a idéia de um segundo encontro. O que agora lemos parece ser uma estranha negação pós-fato, negação que pretende, de um só golpe, tornar um encontro mundial de algumas centenas de psicanalistas um não-acontecimento e, ao mesmo tempo, recusar a experiência viva de um movimento internacional.

 

Houve algumas suposições sobre sua não-vinda ao Rio. Todavia, a própria entrevistada, pouco antes da realização do segundo encontro, enviou nominalmente a dois membros da comissão de organização uma mensagem endereçada aos Estados Gerais do Rio; pedia que seu texto fosse lido na tribuna. Nele, diz que não pode vir ao Rio, para "essa segunda grande reunião" por motivos pessoais, "ligados ao seu emprego do tempo e a circunstâncias excepcionais". Gostaria de, entretanto, através dessa breve mensagem, fazer-se "presente entre nós e saudar, em primeiro lugar, o sucesso dos organizadores dessa reunião". Mais adiante, diz saber que "essa segunda reunião será ao mesmo tempo diferente da de Paris - o que é necessário - e bem dentro do espírito do que foi iniciado por René Major". Tal carta está publicada, na íntegra, no site dos Estados Gerais.

 

Se Rio não repetiu Paris, isso se deu por motivos diversos e não porque Elisabeth Roudinesco assim o tenha determinado: não compreendemos o porquê da insistência nessa comparação historicamente impossível. A diferença do segundo encontro deve ser procurada na sua produção, produção essa que a historiadora parece desconhecer. Afinal, qual dessas duas posições tão diferentes é a legítima? A que saúda o segundo encontro com alvíssaras ou a que assevera ter sido, desde sempre, contrária à sua realização?

 

Que se tenha sabido, Elisabeth Roudinesco não se declarou contrária ao evento nem se manifestou, formalmente, sobre outras razões de sua ausência. Em sua mensagem, entre outras afirmações, tecia elogios à escolha dos conferencistas, fazendo apreciações altamente favoráveis sobre cada um deles. O fato de ela dizer, posteriormente, não ter concordado com a realização do encontro não é motivo suficiente para considerá-lo como um fracasso histórico. Será que, do contrário, para ser um sucesso, nós teríamos que ter contado com sua presença? Esse é um discurso negador a priori. Parece que esse encontro estava antecipadamente fadado a ser um fracasso porque Elisabeth Roudinesco diz, agora, não ter apoiado sua realização. Parece que seu não-apoio, revelado mais de três anos depois, bastou para decretar o que ela avalia como um fracasso. Sabemos que sempre houve alguns prognósticos - ou desejos - de fracasso, motivados por razões diversas; entretanto, o que se viu foi um encontro que aconteceu e produziu intensos debates plenários em torno dos trabalhos apresentados, onde foram tratados temas "não-neutros" da atualidade - e não apenas do mundo imediato do divã -, colocando seus participantes em lugar oposto ao de "psicanalistas que desertaram dos combates políticos de sua época, inclusive do combate contra seus piores inimigos", tal como recomenda a historiadora em sua entrevista. Não esperávamos encontrar tal desejo de fracasso em alguém que participou decisivamente do início da aventura dos Estados Gerais da Psicanálise e que se declara "fiel à concepção que tenho da aventura e da conceitualização freudiana".

 

Conforme ela ali menciona, é verdade que não se pode saber com antecedência como se comportarão os convidados nem o que proferirão em suas conferências. Se houvesse um movimento nesse sentido, isto é, o de tentar estabelecer previamente o que pode ou não pode ser dito, acreditamos que essa comissão estaria agindo de forma totalmente arbitrária e contrária ao espírito de uma assembléia, exercendo um direito ilegítimo de censura prévia. As conferências, obviamente, foram da inteira responsabilidade de quem as proferiu e lançadas ao debate em nome próprio e sem representação, como compete a uma assembléia. É sempre bom lembrar que os Estados Gerais são, historicamente, uma assembléia. Certamente as falas não agradaram a todos, haja vista as efusivas manifestações que provocaram, tanto de aplauso como de repúdio. Estávamos diante de reconhecidos intelectuais politicamente comprometidos com as suas idéias; não podíamos esperar uma polêmica puramente acadêmica. Freud recomendava não convocar os fantasmas se é para depois fugir quando estes aparecem. Talvez esse tenha sido, curiosamente, o aspecto mais provocativo de nosso encontro. O que ratifica a idéia de que os psicanalistas se reuniram em Paris, pela primeira vez, com o intuito de sair do lugar-comum dos congressos psicanalíticos e debater questões que dissessem respeito à política e às situações atuais do homem. Nada mais atual, nos parece que a polêmica despertada pelos acontecimentos de 11 de setembro nos Estados Unidos e as posições divergentes que daí partem. O conflito não nos assustava - como analistas não devemos recuar diante do conflito - e continua não assustando. Ao contrário da crítica que Elisabeth Roudinesco faz aos psicanalistas, encastelados em seu supremo saber e "não precisando se confrontar criticamente com outras abordagens", nós preferimos enfrentar as questões mais delicadas de nossa época. E o que se viu foi a não-neutralidade: houve acaloradas reações às posições políticas de alguns de nossos conferencistas. A escolha desses pensadores acabou por se revelar a mais produtiva: apostando alto no confronto das diferenças, não convidamos apenas os "amigos da psicanálise": convidamos pensadores independentes, até mesmo críticos da psicanálise, mas que aceitaram o convite e vieram debatê-la conosco. Definitivamente, o encontro do Rio não ficou restrito à fala dos conferencistas convidados, sem trocas frutíferas, indignadas ou não, com a assembléia; tampouco a escolha destes pode ser considerada como "desastrosa": o que se pretendia não era o debate com outros segmentos do pensamento contemporâneo? Ou será que devemos nos ater a conversar com os ditos amigos, com quem temos afinidades de pensamento e opinião? Se o outro não profere uma fala semelhante à nossa isso nos dá o direito de classificá-la como "completamente inadmissível"? Este segundo encontro convidou políticos e filósofos para debater com a plenária, justamente por serem intelectuais militantes e implicados com o mundo atual. Desta feita, os psicanalistas se viram lançados a um duro confronto público direto, porque político, com suas diferenças e especificidades, sem o álibi da neutralidade - como nos conclamou Derrida no primeiro encontro - e sem a proteção de suas instituições. E ninguém sai incólume de um embate desse calibre. Quando lemos que a historiadora considera "lamentável" que todos - setecentos! - os psicanalistas tenham aplaudido o discurso de um dos convidados, ignorando as discussões acaloradas, nos vemos subitamente reduzidos a uma massa submissa, incapaz de dissensão ou crítica. Somos então forçados a pensar que estamos diante de um estranho caso de censura a posteriori e não de um registro histórico-crítico, como seria de se esperar.

 

Em trecho anterior da entrevista, Elisabeth Roudinesco afirma "não acompanhar suficientemente a produção [teórica] latino-americana", muito embora conheça bem a sua história. Os latino-americanos representaram mais de 1/3 dos trabalhos apresentados no encontro de 2000 em Paris. Sendo membro do comitê francês de preparação, esperava-se que ela tivesse tido a oportunidade de entrar em contato com essa produção. Mas parece que isso não aconteceu; entretanto, ela atribui o "sucesso fantástico" dos Estados Gerais de Paris a "uma espécie de fervor", devido em grande parte aos latinoamericanos, e ao discurso de Derrida. Fervor?

 

Acreditamos que o que aqui é considerado como "fervor" - independentemente dos vários sentidos que se pode atribuir a essa palavra - possa ser mais bem compreendido como a maciça adesão dos latino-americanos à convocação para o primeiro encontro. Quer dizer que para a historiadora Elisabeth Roudinesco os latinoamericanos constituíram parcela mais que significativa nesse "sucesso fantástico" na Europa e são um terminante fracasso justamente na América Latina?

 

A contrapartida não aconteceu: a presença de estrangeiros ao segundo encontro - sobretudo europeus - foi bem menos significativa. Como podemos compreender esse fato? Faltou "fervor" aos europeus? A psicanálise como movimento resiste apenas na América Latina? Será que esse fato não é discrepante com a idéia de que o segundo encontro foi um "fracasso"? Talvez a sensação de insucesso possa ser debitada à pouca vontade política e intelectual que houve entre os europeus. Como poucos vieram, esse fato seria suficiente para conferir ao segundo encontro essa precipitada qualificação?

 

Talvez a resposta esteja em outra observação feita pela entrevistada. Ela diz que "os que estavam unidos em Paris desuniram-se no Rio, em parte porque, depois do 11 de setembro, o clima político já não era mais o mesmo". O que quer dizer isso? Sim, os acontecimentos de 2001 polarizaram radicalmente as posições políticas mas o conflito gera sempre necessariamente desunião? Não pode ser positivo, conforme relato da própria entrevistada a respeito de sua infância? Não poderíamos pensar que o que aconteceu foi que os que estavam inicialmente unidos em Paris se desuniram em Paris? São muitas as interrogações por causa das muitas coisas que ficaram não-ditas. Alguma coisa aconteceu em Paris que produziu esse efeito notadamente despolitizante. Nós apenas não soubemos e não pudemos interpretar esses acontecimentos devidamente. Como tudo mais, o entendimento só vem a posteriori. A historia nos dirá - e não a egohistoriadora Elisabeth Roudinesco - qual é o papel que cabe ao Encontro Mundial do Rio dentro da historia do movimento psicanalítico.

 

No final da entrevista, Elisabeth Roudinesco nos surpreende uma vez mais dizendo que discutiu a inoportunidade da experiência com os organizadores desse segundo encontro. Nenhum de nós, membros do comitê organizador do segundo encontro mundial dos Estados Gerais da Psicanálise discutiu com Elisabeth Roudinesco. Apesar de o termos feito, antes e depois do nosso Encontro, com René Major, coordenador dos Estados Gerais da Psicanálise de Paris. A historiadora ignora isto?

 

Joel Birman

Miguel Calmon

Chaim Samuel Katz

Eduardo Losicer

Suelena Werneck Pereira

Comitê de organização do Segundo Encontro Mundial dos

Estados Gerais da Psicanálise

 

 

ESTADOS GERAIS DA PSICANÁLISE: ACONTECIMENTO OU MOVIMENTO?

 

Ao responder a pergunta a respeito do movimento dos Estados Gerais da Psicanálise, a historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, em entrevista concedida à revista Percurso Nº. 37, trouxe à tona questões que nos convocam a um posicionamento sobre o tema.

 

Vale notar que a pergunta foi pertinente e oportuna, já que a quase uma década da primeira convocação dos Estados Gerais da Psicanálise em 1997, qualquer psicanalista ligado ao movimento iniciado pelo apelo de René Major - ou, que acompanhou a repercussão pública dos encontros realizados na Europa e na América Latina ao longo desse período -, reconhece a necessidade de avaliar o caminho percorrido e inquirir sobre sua atualidade e seu futuro. Ainda mais, alguém como Elizabeth Roudinesco, que teve um papel importante, especialmente em seu começo.

 

De sua resposta à revista Percurso, pudemos depreender três pontos sobre os quais gostaríamos de nos deter, considerando que levantam questões significativas em relação ao movimento, sua constituição e suas repercussões dentro e fora da polis psicanalítica.

 

1. No que diz respeito ao I Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise em 2000, Paris - do qual foi participante e uma das idealizadoras - Roudinesco exalta seu sucesso e credita a este o lugar de único e verdadeiro acontecimento que, uma vez concluído, não deveria ter tido continuidade.

 

2. Em seguida, refere-se ao II Encontro Mundial dos Estados Gerais realizado em 2003 no Rio de Janeiro - do qual não teve oportunidade de participar - como tendo sido um fracasso. Conclui isto a partir da crítica que faz a uma das conferências proferidas e sua acolhida pelo público presente, que ela reputa unânime.

 

3. Finalmente, evidencia-se a ausência de qualquer referência aos Encontros Latino-americanos. Qual seja, quatro Encontros Latino-americanos dos Estados Gerais, dos quais o primeiro, segundo e quarto realizados em São Paulo, no Instituto Sedes Sapientiae e o terceiro em Buenos Aires. Todos com uma repercussão importante, tanto em relação ao número de participantes e de trabalhos apresentados, como na qualidade destes e nos debates e intercâmbios que ali aconteceram.

 

Os comentários a seguir tratarão dos três pontos destacados acima.

 

Quanto ao primeiro, que considera Paris 2000 um êxito, estamos de pleno acordo, porém, com algumas ressalvas. Roudinesco aponta na entrevista o fervor latinoamericano como uma das causas desse sucesso único. Todavia, a mobilização e o alto comparecimento dos psicanalistas latinoamericanos ao encontro - às quais se refere como fervor, são frutos de um longo processo que o precedeu e sobre o qual discorreremos a seguir. Vejamos.

 

O processo deflagrado pela convocação dos Estados Gerais da Psicanálise durante o ano de 1997 pelo próprio René Major, - e ao qual aderiu, entre muitos outros, Elisabeth Roudinesco -, mobilizou intensamente o mundo psicanalítico. Como se esclarece na entrevista, em nota de rodapé, organizaram-se em todas as partes grupos de trabalho e reflexão. Tratava-se de interrogar a psicanálise, tanto no plano da prática teórica e clínica, como nas formas de ensino, transmissão e organização institucional. Bem como de analisar sua relação com outros saberes e campos da cultura, incluindo o plano do social e do político.

 

Nossa acolhida tão favorável à proposta se deveu, sem dúvida, ao frutífero desenvolvimento que vinha experimentando a psicanálise na América Latina, associada à história de lutas teóricas e ideológicas pela democratização das instituições, movimentos de ruptura e experiências inovadoras no campo político-institucional. Além disso, os analistas foram convocados através de uma ampla difusão transversal, a construir espaços novos com uma organização horizontal e supra-institucional na qual almejava-se uma participação fluída e livre de hierarquias e constrangimentos burocráticos e teóricos que dependessem de interesses corporativos, de modo a facilitar uma enunciação em nome próprio. Criaram-se grupos de trabalho com essas características em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, simultaneamente aos que aconteciam em Buenos Aires.

 

Foi nesse clima que se realizou em São Paulo o I Encontro Latino-americano dos Estados Gerais da Psicanálise em 1999 no Instituto Sedes Sapientiae - um ano antes do Mundial de Paris -, que se revelou de fundamental importância tanto para a difusão da convocatória, quanto para a elaboração e discussão dos trabalhos latino-americanos que seriam levados a Paris. Na assembléia de encerramento destinada a avaliação do encontro e ao ajuste final dos preparativos aprovou-se por aclamação a proposta dirigida ao Comitê Internacional - e posteriormente acatada pelo mesmo -, de instituir o português como uma das línguas oficiais do encontro mundial em Paris.

 

Coincidimos, portanto, com Roudinesco, na atribuição de importância e significação ao encontro de Paris. Ao final deste primeiro encontro mundial firmou-se a disposição para responder a novas convocatórias no futuro, caso tivessem grupos de analistas que se dispusessem a fazê-lo, deixando em aberto o lugar para a sua realização. A dissolução do comitê organizador, ao final do encontro, sinalizou a oposição a qualquer tendência à concentração, permanência e cristalização no poder.

 

Assim, a nosso entender, desde a convocatória dos Estados Gerais da Psicanálise e através de uma seqüência de acontecimentos, a criação dentro da polis psicanalítica de um espaço de forte potência instituinte deflagrou um movimento capaz de conduzir a novos acontecimentos sem desembocar em nenhuma espécie de institucionalização. Essa foi sua utopia fundante.

 

Ao longo dos sucessivos encontros, foram retomadas as temáticas iniciais, acolhidas outras novas e explorados modos de organização e dispositivos de funcionamento diversos. Questões levantadas nos debates exigiam tempo para trabalho de elaboração e, portanto, anunciavam um processo. Pensamos que através desta continuidade marcada por momentos de confluência e elaboração coletiva, nos produzimos como sujeitos políticos, protagonistas de experiências criativas e criadoras de sentido histórico, que enriquecem nossa prática e fazem avançar a psicanálise.

 

Depois do I Mundial em Paris 2000, acontecem em 2001 o II Latino-americano em São Paulo, em 2002 o III Latino-americano em Buenos Aires, em 2003 o II Mundial no Rio de Janeiro e em 2005 o IV Latino-americano em São Paulo.

 

Na entrevista à Percurso, ao referir-se à presença de divisões que afetam a continuidade e o sucesso dos Estados Gerais, Roudinesco não considera a possibilidade de que as divisões entre analistas passem por outras questões tais como a desmobilização dos analistas europeus, ou o seu recolhimento para o interior de suas instituições, nas quais, à época, predominava uma situação inusitada. Estamos nos referindo à divisão de posições dos seus associados em cada uma delas em relação à regulamentação da profissão do psicanalista. Divisão esta que não corresponderia, dessa vez, a enfrentamentos doutrinários e interinstitucionais. Preocupados e divididos na defesa da psicanálise no seu exercício profissional desinvestiram, ao que parece, a dimensão supra-institucional de pensamento critico, de análise da cultura e de teoria da sociedade e da história, o que pode ter nefastas conseqüências exatamente nessa questão.

 

O segundo ponto que levantamos para nossa discussão refere-se às apreciações feitas por Roudinesco ao II Encontro Mundial dos Estados Gerais realizado em 2003 no Rio de Janeiro. Pensamos que esse encontro cumpriu com êxito os itens de sua convocatória ao constituir um espaço onde psicanalistas de diversos lugares e filiações pudessem debater a clínica, as produções teóricas e as relações da psicanálise com as práticas sociais, políticas e éticas do mundo contemporâneo. Reduzi-lo ao efeito conflitante de uma das conferências significa desconsiderar o valor de todo o encontro que, a nosso ver, possibilitou discussões e debates intensos no âmbito da política e da psicanálise, fundamentais para a nossa atualidade. Vale salientar, o êxito do exercício da função-leitor sustentado no dispositivo dos coletivos de leitura criados para subsidiar essa função teve efeitos positivos nos avanços obtidos através da dinâmica de suas plenárias.

 

O terceiro ponto diz respeito à realização dos Encontros Latinoamericanos que Roudinesco parece não levar em consideração, pois, não os menciona em sua entrevista. Pensamos que o movimento deflagrado pelos Estados Gerais da Psicanálise foi importante para os psicanalistas latino-americanos ao propiciar interligações internas e transversais, habitualmente dificultadas pelos confinamentos institucionais ou de filiação teórica, possibilitando uma ampla circulação da produção individual ou grupal e produzindo efeitos de conhecimento e reconhecimento. Muito do fervor latinoamericano em Paris relacionava-se às oportunidades que se abriram para um reconhecimento e uma interlocução longamente postergada, que se iniciou com a resposta à denúncia de Helena Bessermann Viana, resposta esta que foi radicalmente diferente e oposta à atitude de abafamento assumida pela IPA.

 

A partir de sua convocatória inicial e ao longo de todos esses anos os Encontros Latino-americanos dos Estados Gerais da Psicanálise mantiveram acesa a proposta e sustentaram a continuidade do movimento abrindo-se irrestritamente à diversidade de expressões da prática psicanalítica. Agindo como caixa de ressonância de questões emergentes nos campos clínico, institucional, social e político, tornaram-se espaço de interligação de analistas de diferentes correntes, grupos e línguas; de diferentes âmbitos de atuação pública e privada; de diferentes lugares e, também, de diferentes gerações. Catalisaram processos de transmissão e de filiação, reconstruíram histórias interrompidas pela repressão política ou pelo exílio, funcionando como espaço de interlocução e respaldo recíproco para as lutas dos psicanalistas contra a prevalência dos modelos biologistas e cognitivistas, comprovando, mais uma vez, a validade da clínica psicanalítica.

 

Foi em continuidade e em conformidade com esse espírito que convocamos o IV Encontro Latino-americano que aconteceu em São Paulo em novembro de 2005, com grande afluência de psicanalistas de todo o Brasil e da Argentina. Manteve-se a metodologia de discussão adotada em encontros anteriores com a apresentação dos trabalhos pelos próprios autores em pequenos grupos de discussão. Acrescentou-se às plenárias de abertura e de dissolução, outras nas quais foram debatidos os temas políticos cruciais da atualidade latino-americana, tais como "Politizar a desilusão". Como resultado das plenárias, destacamos a elaboração de proposta de pronunciamento público sobre a crescente medicalização da saúde, dos problemas da infância e adolescência.

Algumas interrogações a respeito do fracasso do Mundial de Bruxelas, que não obteve um número mínimo e necessário de inscrições - e que já consideramos anteriormente - também poderiam ser respondidas, ao menos no que diz respeito à participação dos psicanalistas latino-americanos, se dirigirmos a atenção à plenária do IV Latino-americano destinada à apresentação da temática e da programação deste Mundial por seu coordenador geral, Claude Van Reeth. Ali foram manifestadas divergências quanto à acentuada centralização e verticalidade da organização e do dispositivo de seu funcionamento, que nos pareciam retrocessos em relação às modalidades elaboradas e adotadas em Paris e no Rio de Janeiro. Além disso, a ausência de uma interlocução prévia com os grupos de analistas dos diversos paises ligados ao movimento causou um impacto negativo.

 

Vale salientar que a realização do IV Encontro Latino-americano possibilitou a continuidade do site dos Estados Gerais da Psicanálise (www.estadosgerais.org), que permite aceder não só a todos os textos apresentados como a todo o material de convocatórias de todos os encontros mundiais e latino-americanos.

 

Os Encontros Latino-americanos também contribuíram para a defesa da psicanálise frente às tentativas de arbitrar ardis legais por meio dos quais grupos confessionais tentam legitimar, sob o rótulo de psicanálise, concepções e propostas de ação sobre o anímico que nada tem a ver com ela, promovendo métodos e objetivos contraditórios aos dela.

 

Para concluir, divergimos em relação à concepção de Roudinesco sobre os Estados Gerais da Psicanálise. Seu argumento de que este seria um acontecimento que não deveria repetir-se nos parece redundante, já que os acontecimentos são sempre únicos e não há como reproduzi-los. Para nós, trata-se, como esperamos ter demonstrado nesta resposta, de um movimento, e portanto que mantém uma continuidade. Desde 1997 todos os que responderam e participaram dos encontros realizados foram aqueles que lhes deram razão e conteúdo e para os quais o movimento faz sentido.

 

O que constitui uma marca do movimento dos Estados Gerais da Psicanálise - através das diversas conjunturas e que se atualiza a cada encontro - são os dispositivos que possibilitam tanto uma apropriação coletiva da experiência quanto a sustentação de uma dimensão singular de cada pronunciamento em nome próprio, o que implica cada um dos psicanalistas presentes. Assim, tanto sua proposta quanto sua realização tornou-se responsabilidade de todos e os encontros são tributários desta responsabilidade. É de se supor que enquanto houver quem assuma, isto é, enquanto houver quem convoque, enquanto houver quem responda, poderá haver Estados Gerais da Psicanálise.

 

Fátima Milnitzky

Gisela Haddad

Mario Pablo Fuks

Paulina Rocha

Sidnei Goldberg

Comitê de Coordenação do

IV Encontro Latino-americano dos Estados Gerais da Psicanálise



* Gisela Haddad é membro da equipe de coordenação dos Estados Gerais da Psicanálise - São Paulo e da seção Debates da Revista Percurso.

[1] A referida entrevista pode ser encontrada na seção Entrevistas e Debates do site de Percurso: http://www2.uol.com.br/percurso/

 




 
 
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