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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    02 Setembro de 2007  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

A oralidade em cena: dança e psicanálise


ALINE CAMARGO GURFINKEL

 

Dança e psicanálise? Como pode se dar esta conjugação? Era a pergunta que se fazia quando da divulgação do espetáculo de dança, teatro e multimídia Oralidade entre nós, realizado nos dias 4 e 5 de julho no teatro Fábrica São Paulo, pela Magesto Cia. de Dança de Jacareí, com o patrocínio da FUNARTE. Na apresentação do dia 4, organizamos um debate através de uma parceria do grupo de dança com o Departamento de Psicanálise. Conforme foi veiculado então, o espetáculo baseia-se em meu artigo Sexualidade feminina e oralidade: comer e ser comida, publicado na Revista Percurso n.º 26, de 2001, com o qual o grupo de dança tomou contato através de pesquisa na internet durante a montagem do espetáculo. O artigo aborda a questão da alimentação no contexto da cultura; ele foi produzido durante minha participação no grupo de pesquisa O feminino no imaginário cultural contemporâneo, foi apresentado em um dos encontros do Inquietações da Clínica Cotidiana e posteriormente publicado na Revista Percurso.

 

A idéia de realizar um debate após o espetáculo surgiu por vários motivos. Em primeiro lugar, havia o desejo de compartilhar com os colegas o desdobramento de um trabalho que fora realizado no Departamento; mas buscava-se, também, divulgar o delicado trabalho deste grupo que, junto com a psicanalista Renata Quina - consultora do grupo -, recriou na linguagem da dança / teatro os temas abordados no texto, além de propiciar uma interlocução dos debatedores com os bailarinos e o público em geral.

 

No artigo em questão, analiso um conto de Italo Calvino no qual um casal de protagonistas realiza uma "viagem gastronômica" ao México, marcada pela sensualidade / sensorialidade. O trabalho aborda a dimensão feminina ligada à oralidade, os fantasmas do cheio e do vazio, assim como a face antropofágica da relação entre os dois personagens. Proponho, a partir de artigo de Lemoine-Luccioni, que a relação que se tem com a comida, nas refeições familiares, revela tudo sobre os sujeitos, pois comemos "por alguém ou contra alguém". Isso de certa forma está representado, na montagem, pelo conflito entre os personagens.

 

O espetáculo apresenta, de maneira criativa e dinâmica, questões e tensões inerentes à vida humana. Nele, o cenário - cujo elemento central é uma mesa-cama-balança, que às vezes também parece um barco em que todos estamos -, guarda uma grande organicidade com o tema e o artigo de base, sendo bastante feliz em seu efeito estético. Certos elementos utilizados - tais como o fogão, o macarrão cru e o macarrão cozido em cena - nos transportam para uma dimensão que ora parece real, ora parece onírica. A cozinha representa o íntimo e o mais primitivo da relação com a mãe e, nesse sentido, nos remete à nossa origem mais corpórea. Se a arte culinária convoca os sentidos (a visão, o paladar, o olfato e o tato), estes são bem explorados na apresentação, com a originalidade da inclusão dos aromas dos alimentos durante a mesma.

 

Quanto ao conteúdo, pode-se reconhecer nas cenas a relação dual entre as mulheres e a competição tão própria das relações familiares, assim como a rivalidade mãe-filha, tão importante para a conquista da feminilidade. A temática edipiana da exclusão e do lugar do terceiro faz-se presente reiteradamente no interjogo dos personagens. No espetáculo, isso aparece de uma bela maneira plástica, quando as mulheres tentam tomar o mesmo lugar no fogão ou disputam o lugar privilegiado junto ao personagem masculino. Este se apresenta ora com seu poder estabelecido, ora subvertido pelas mulheres.

 

Um outro elemento essencial muito bem figurado no espetáculo é a questão da pulsionalidade. Observa-se, de modo evidente, a dimensão agressiva relacionada à alimentação - sua face antropofágica -, mas também sua dimensão erótica. Segundo Luccioni, o erotismo só existe se for respeitada a lei da parcialidade segundo a qual cada zona erógena nunca será satisfeita a não ser pelo seu transbordamento, que extravasa por sobre outras pulsões. Haveria, assim, certa perversão inerente à própria sexualidade, já que a essência do funcionamento pulsional leva necessariamente ao deslocamento e a uma transgressão. Os sintomas dos transtornos alimentares, ao contrário disto, tomam uma forma circular: um congelamento no qual aparece uma orgia sem prazer, puro gozo. Vi algo desta figura na personagem que comia no chão - meio pessoa, meio animal.

 

O debate, que sucedeu à apresentação do dia 4, teve como eixo a interface entre dança e psicanálise, e foi coordenado por Cláudia Paula Santos (articuladora de eventos do Departamento). Contamos com a participação das colegas Renata Udler Cromberg (membro do Departamento e ex-professora de dança clássica), Lúcia Helena R. Navarro (membro aspirante do Departamento, professora de dança expressiva de crianças e ex-bailarina, com formação em dança moderna e ballet clássico) e Márcia Bozon de Campos (aluna do curso Psicanálise - Teoria e Clínica do Departamento, ex-bailarina e ex-coreógrafa), além de Renata Quina, psicanalista consultora do grupo de dança.

 

Renata Cromberg nos brindou com comentários muito interessantes sobre a função da culinária na vida das mulheres e sobre a dimensão agressiva que tanto a oralidade quanto a culinária comportam, aspectos tão bem retratados no espetáculo. Ela ressaltou também a força expressiva da mesa-cama-balança, que de seu ponto de vista funcionava como um "quinto bailarino", cujos movimentos estavam completamente integrados aos dos outros bailarinos. Márcia Bozon discutiu os aspectos técnicos do espetáculo relativos à coreografia e aos movimentos dos bailarinos, apontando algumas limitações quanto à expressividade almejada, ao mesmo tempo em que os relacionou a alguns temas psicanalíticos. Lúcia Navarro propôs uma vivência corporal: ela convidou os presentes a um exercício de auto-percepção corporal, ao mesmo tempo em que lia recortes do artigo, entremeados de comentários sugestivos. Renata Quina, psicanalista e consultora do grupo Magesto, relatou, por fim, as experiências do processo de montagem da peça, destacando o trabalho grupal e seu processo de criação.

 

Creio que o evento alcançou seus objetivos. Tivemos uma "casa cheia" - um teatro lotado com aproximadamente 140 pessoas - mas não apenas isto: foi possível abrir um espaço de discussão sobre esta interface pouco explorada, e pôde-se tomar contato com o desafio e as dificuldades que este encontro de linguagens tão diversas comporta. Encerro meus comentários agradecendo ao Conselho de Direção do Departamento pelo apoio recebido, assim como aos colegas do Departamento que compareceram e que tão prontamente responderam ao convite, dispondo-se a compartilhar comigo desta experiência um tanto inusitada.

 




 
 
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