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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    02 Setembro de 2007  
 
 
CINEMA

Sobre a transitoriedade em Bergman


MARIA MANUELA ASSUNÇÃO MORENO

 

Sinto-me impelida a escrever esta homenagem como uma dívida afetiva com um dos meus diretores de cinema de arte prediletos, falecido este mês. Apesar de sua morte, Ingmar Bergman se perpetua através de um grande trabalho de simbolização realizado tanto no campo do teatro como do cinema - deixou-nos uma filmografia composta por mais de 40 obras.

 

Bergman (1918-2007), como escreve Mannoni1, produziu filmes sobre o horror, filmes que retratavam a dor de forma sublime. Conseguiu transformar em imagens e palavras temas intrínsecos à existência humana como a morte, o tempo, o desejo, a religiosidade, a vergonha e a humilhação. Todos temas relacionados a sua criação em um lar religioso, com um pai autoritário. Ele mesmo chegou a afirmar que toda a sua obra nascia de sua infância.

 

Segundo Mannoni, um episódio vivenciado aos cinco anos de idade adquiriu valor de trauma. Bergman, ao brincar na casa de sua avó, trancou-se acidentalmente em um armário. Enquanto sua avó procurava a chave para libertá-lo, Bergman rasgou com os dentes a roupa de sua mãe. A partir deste episódio manifesto de ódio ao objeto que deveria protegê-lo e assegurá-lo, é possível imaginar a angústia de desamparo vivida no momento.

 

Mannoni ainda nos remete às experiências precoces de morte vividas por Bergman, enquanto acompanhava seu pai aos enterros de corpos desmembrados, advindos do hospital em que este trabalhava. Segundo a autora: "Essas reminiscências, Ingmar Bergman levou-as para o palco, com isso superando uma vivência próxima da morte, numa retomada que metamorfoseou o trauma inicial".

 

Diferentemente do destino apontado por Freud em seu texto Sobre a Transitoriedade (1915), de revolta e de recuo frente à transitoriedade da vida, indicando o desejo de imortalidade e imutabilidade, Bergman transforma repetidamente sua experiência de horror frente à morte em beleza, em arte.

 

Mannoni utiliza a noção de saúde de Winnicott como possibilidade de criação através da qual a dor pode ser transformada. Winnicott destacou um terceiro espaço, entre a realidade externa e a psíquica, lugar do brincar e condição de verdade do sujeito. Mannoni afirma que a transformação "exige que o sujeito não fique prisioneiro de seus devaneios ou de um trauma sofrido e que, no plano imaginário, tenha um público a quem se dirigir, sem permanecer cativo de sua relação com o outro, isto é, consigo mesmo, preso na rede de sua fantasia" (op. cit. p. 10).

 

Bergman utilizou-se deste espaço de criação. Em Morangos Silvestres, filme vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 1958, trabalha a questão da transitoriedade, explorando através de uma singular linguagem cinematográfica as dimensões da realidade, do sonho, do devaneio e da memória. No ocaso da vida, o médico Isak Borg - interpretado por Victor Sjöström, um mestre do cinema mudo sueco -, na noite que antecipa o recebimento de um título de honra pelos seus 50 anos de trabalho, se depara em sonho com a realidade da morte. Decide, então, realizar a viagem de carro para visitar lugares do passado e sua mãe, ainda viva.

 

Nesta viagem, Borg faz-se acompanhar por sua nora, Marianne, em crise com seu filho, Evald. É no encontro com os outros - com sua nora, com jovens a quem dá carona, com um casal ‘em pé de guerra' - e com suas memórias, que a sua forma de se relacionar vai sendo ressignificada. Depara-se, principalmente, com a solidão e com a dor nas relações humanas. Sua nora aponta seu egoísmo, bem como observa a distância que existe na relação de Borg com sua mãe.

 

Em um segundo sonho, a prima amada, que acaba se casando com seu irmão, afirma-lhe que ele deveria saber por que dói, já que é médico. Ela lhe mostra um espelho e pede para ele se olhar. Logo após este fragmento, Bergman foca a cena de uma mãe acolhendo seu bebê nos braços e dizendo-lhe que nada o machucará, que ela o protegerá.

 

Em um último sonho, depara-se com a sua impotência e é acusado de culpa. Observa a traição de sua mulher, bem como sua reação de indiferença. Percebe-se morto, apesar de vivo. Seu dever como médico é pedir perdão.

 

Nesta viagem de simbolização e de reparação, Borg se defronta consigo mesmo, com sua necessidade de realizar um isolamento afetivo através do saber. Como médico sabe o que dói, mas recusou cirurgicamente suas próprias dores. Em face à morte, constata que já havia realizado uma morte em vida.

 

Sua recusa afetiva foi transmitida a Evald, que não pode assumir a paternidade de seu filho que está sendo gestado.

 

Bergman retrata com delicadeza o mecanismo psíquico de defesa em relação ao trauma e à dor, a função traumatolítica dos sonhos - como observou Ferenczi -,  bem como a transmissão transgeracional do que não pode ser simbolizado.

 

Em relação ao trauma, Ferenczi revela: "Tudo se passa verdadeiramente como se, sob pressão de um perigo iminente, um fragmento de nós mesmos se clivasse sob a forma de instância auto-perceptiva, querendo vir em nossa própria ajuda, e isto desde a primeira, ou primeiríssima infância. Pois todos sabemos que as crianças que sofreram muito, moral e fisicamente, adquirem traços fisionômicos de idade e da sabedoria"2. No entanto, esta sabedoria - tão reconhecida no filme - é fruto de uma clivagem egóica que realiza um isolamento afetivo, como forma de proteger a criança desamparada.

 

Assim como o sonho, a obra de arte apresenta a possibilidade de resolução traumática através da simbolização da experiência inicial de desamparo. Bergman não recua diante da dor e oferece ao público, em Morangos Silvestres, um trabalho de luto digno de um mestre!

 



1 Mannoni, M. (1993). Trauma e Criação. In Amor, Ódio, Separação. Ed. Jorge Zahar.

2 Ferenczi, S. (1931). Análise de Crianças com Adultos. In: Escritos psicanalíticos (1909-1933). p. 341.

 




 
 
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