PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    03 Dezembro de 2007  
 
 
ESCRITOS

Crônica de avião


ANA LÚCIA PANACHÃO

A voz que ressoa no alto-falante convida os passageiros a se dirigirem à sala de embarque. O aeroporto é pequeno. Aquele, o único vôo saindo ao entardecer de uma cidade em algum lugar do Brasil. O destino: São Paulo.

As pessoas vão se acomodando nas poltronas, ocupando os espaços. Alguns, em grupos, conversam; outros, solitários, folheiam revistas; as poucas crianças correm pela sala enquanto todos aguardam o próximo aviso que marcará definitivamente a entrada no avião.

Forma-se então uma fila, não somos muitos. Idosos e adultos acompanhados de crianças primeiro, é praxe. O clima é de ligeiro suspense, momento intermediário entre ainda estar com os pés no chão e alçar vôo para o destino que se deseja.

Repentinamente o céu se transforma: escurece, esbraveja trovões e relâmpagos. A ventania se confunde com um leve burburinho. Mesma voz, novo aviso: "devido às más condições do tempo, o vôo será adiado".

Certa agitação, a fila se dispersa, alguns expressam decepção, outros olham o relógio, uns tantos voltam para o café, uns poucos suspiram, instaura-se um silêncio na sala de embarque, permaneço sentada, aguardando. A duas poltronas de mim, uma jovem mulher queixa-se, como se falasse sozinha. Não leva muito tempo para dirigir-me a palavra; encontra, enfim, um interlocutor.

Está visivelmente ansiosa, pergunta-me se estive lá a trabalho, vou respondendo laconicamente, até que ela profere a pergunta fatal: o que é que você faz?

Nestas ocasiões sempre fico em dúvida entre responder qualquer coisa e nomear o que faço. Já sei por outras experiências que dizer de meu ofício parece franquear às pessoas certa liberdade, espécie de passaporte para uma fala transbordante, muitas vezes constrangedora.

Bem, aí estamos: o vôo atrasado, ela com medo, eu, na posição de objeto contra-fóbico ao qual ela estará agarrada até o final da viagem.

A situação lembrou-me uma brincadeira infantil que fiz muitas vezes com minhas amigas e começa com um acordo, onde se definem os papéis: "tá bom que a gente era...", ou "faz de conta que a gente...".

Assim me senti novamente frente ao apelo daquela pessoa:
- Qual o número de sua poltrona?
- Os lugares são livres - respondo.
- Ah, que bom! Podemos sentar juntas? Assim eu vou falando com você e não fico com tanto medo.
"Tá bom que a gente era amiga?!"
Deixo-me entrar no circuito.
Já dentro do avião escolhemos os lugares, ao que ela exclama:
- O avião é pequeno, mas espaçoso!

Admiramo-nos disso até o momento em que nos damos conta de que estamos sentadas em frente à saída de emergência.

A comissária de bordo aproxima-se e solenemente nos dá instruções sobre como proceder em caso de emergência. Minha companheira arregala os olhos e eu, incrédula, tenho dificuldade em levar a sério a comissária:

Segure a porta com esta mão, com a outra abra esse compartimento e puxe a alavanca; a porta pesa 11 kg e cairá sobre a senhora, empurre-a para fora e depois a derrube para a direita.

Isso só serviu para aumentar ainda mais o pânico em minha amiga circunstancial. Ela reza, benze-se, entre perguntas que vai me fazendo evidentemente para dominar sua angústia.

O avião decola, fará uma escala numa cidade a quarenta minutos dali. Enquanto o avião está subindo juntamente com meu estômago, minha "amiga" se concentra, fecha os olhos, parece dirigir-se a outro interlocutor. Quando a nave ganha altitude, ela, já mais segura, passa a falar de sua vida.

Concentra-se em sua história, a doença de seu pai (a quem tinha ido visitar), seu casamento aos vinte e poucos anos com um homem bonito que começou a traí-la após o nascimento de sua filha (hoje com quatorze anos), a mudança para São Paulo, a separação, os anos de terapia, o novo relacionamento sobre o qual está em dúvida (ele irá encontrá-la no aeroporto) etc.etc.etc.

Entre raras pausas, emito interjeições, vez por outra faço uma pergunta, respondo outras com poucas palavras.

Já em solo firme, retocamos nossos batons e recolhemos nossas bagagens. Ela despede-se de mim com dois beijos (é evidente que recuperou sua autonomia). Que bom!

O aeroporto está lotado, é um fim de semana subseqüente ao carnaval, muitas pessoas circulando com seus carrinhos de bagagens.

Em meio a essa confusão, esbarramos por coincidência nossos carrinhos. Ela me olha fixamente, desculpando-se e, por curioso que seja, já não me reconhece.

Maio de 2000.

 




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/