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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    03 Dezembro de 2007  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

Uma carinhosa homenagem a quem deixou um "espinho na minha carne"


ANA MARIA SIGAL

 

 

 La muerte no pertenece al mundo,

 es siempre um escandalo y,

 en ese sentido trasciende siempre al

 mundo.

 E. Levinas2

 

 

Em Porto Alegre, no ano de 1998, no IV Colóquio Internacional Jean Laplanche3, Silvia Bleichmar apresenta "Mi recorrido junto a Laplanche", trabalho que, a meu ver, tornou-se um marco de sua produção.

 

Ao mesmo tempo em que nos fala do que aprendeu do mestre, fazendo um percurso pelos conceitos fundamentais da sua obra, se posiciona publicamente, questionando certas teorizações que, para ela, oferecem dificuldades.

 

Marca uma filiação e adquire sua independência: "faz próprio aquilo que herda de seus pais", como nos diz Freud.

 

Na minha história, Silvia e Laplanche formam um elo.

 

Agradeço a Laplanche a possibilidade que me ofereceu de continuar sendo freudiana. Estudando sua obra me foi possível "fazer justiça ao texto"4; a leitura dos textos de Silvia me ajudou a sustentar a coragem de questionar com independência o pensamento dos autores clássicos e foi um exemplo da grande capacidade que tinha de manter a autonomia. Sua recusa a sacralizar o texto lhe possibilitou um pensar próprio e uma criação pessoal.

 

Silvia pôde reconhecer filiações múltiplas e não aderiu dogmaticamente a nenhuma escola. Filósofos, sociólogos, antropólogos, poetas, escritores são também fontes de inspiração. Política e Cultura são como a água que ela bebe.

 

Ambos têm um traço comum: no colóquio de Bonneval, Laplanche questionou seu mestre e analista Lacan, pela leitura que fez de Freud, separou-se da identidade de pensamento e inaugurou um espaço próprio. A este propósito, escreveu: "O inconsciente, mais que estar estruturado como uma linguagem, é a condição mesma da linguagem"5.

 

Silvia também soube questionar seu orientador quando, em Porto Alegre6, declarou: "É aqui onde as minhas idéias divergem das de Laplanche".

 

Visitei Laplanche em 1971, em sua casa de Paris, para solicitar-lhe autorização para a tradução de alguns textos que queríamos publicar em espanhol. Nessa época eu ainda vivia na Argentina. Sempre tive grande admiração pela leitura que Laplanche fazia de Freud e não perdi o contato com ele. Se alguma coisa almejava nos anos 1980, já trabalhando no Curso de Psicanálise desde 1976, era trazer Laplanche, o mestre, o autor do Vocabulário da Psicanálise, a referência psicanalítica que nos era tão familiar, para que falasse no Sedes.

 

Parecia quase um sonho: Laplanche não havia viajado para a América Latina até então. Aceitaria este convite?

 

Em 1990 tive um novo encontro, em sua casa da rue de Varenne, na tentativa de retomar o convite, e a primeira coisa que ele fez foi falar-me de Silvia Bleichmar.

Estendeu-se sobre a excelente tese que ele orientara. Suas idéias, sua inteligência brilhante e aguda, sua capacidade profunda para pensar a psicanálise eram parte dos elogios que se escutavam no discurso de Laplanche.

 

Um intenso desejo de conhecê-la me envolveu e pensei que, assim como tinha o desejo da trazer Laplanche para o Sedes, queria convidá-la para participar de uma coletânea que estava preparando sobre o "Lugar dos pais na psicanálise de crianças".

 

Silvia tinha se exilado no México, enquanto outros analistas argentinos haviam optado pelo Brasil; este foi nosso desencontro. Por sorte, e graças a Laplanche, tivemos um encontro.

 

Recebeu-me em sua casa com um afeto surpreendente. Ao mesmo tempo em que se mostrava doce e terna, era firme e não fazia concessões em seus comentários.

 

Enquanto tomávamos café e falávamos de psicanálise, trocávamos idéias sobre a política e a vida, tudo com uma tal familiaridade que me fazia pensar que nos conhecíamos desde sempre. Não faltavam os comentários sobre os filhos, sobre as condições do exílio e a volta a Buenos Aires. Via-a feliz em sua casa nova e cheia de projetos para seu país.

 

A conversa fluía como num delta, como num rio com muitos braços que se dispersam e se encontram com facilidade em pequenos remansos. Foi um momento de muita felicidade, um bom encontro com meu país, com o qual estava tentando reatar laços, depois de um tempo de amarga separação.

 

Em 1991, viajamos a Buenos Aires junto com outros amigos e psicanalistas brasileiros para participar do grande encontro que se realizou na Argentina com Laplanche. Excelente cenário de trabalhos sobre sua obra, no qual Silvia dirigia, com maestria, uma orquestra formada por intelectuais e psicanalistas que exigiram de Laplanche um esforço colossal para dar conta de suas formulações. Foi ali onde consegui retirar de Laplanche a promessa definitiva de vir falar no Sedes. Formamos uma comissão que trabalhou duro, e assim, em 1993, se realizou um evento, para cuja concretização, Silvia foi um grande suporte.

 

Acompanhou-nos durante quatro dias com seu marido Carlos, em uma praia paulista que fascinou a todos. Silvia era incansável. Lembro-me de sua figura irrequieta, passeando pela praia de Camburi, disparando questões. Seu pensamento deslanchava como uma torrente incessante que não procurava resposta, mas, sim, disparava enigmas.

 

Procurava compreender quem seria aquele capaz de decodificar as mensagens que chegam do outro, se não há sujeito desde as origens. Silvia dizia: não encontro vantagem em substituir o conceito freudiano de representação-coisa pelo de significante-designificado... e assim continuava, para minutos depois desfrutar da natureza, com uma risada aberta e franca, que nos convidava a rir junto. Silvia facilitou muito meu sonho: Laplanche quase desiste de sua vinda. Ela me ajudou a empolgá-lo e a superar alguns entraves. Laplanche fez duas apresentações no Centro de Convenções Rebouças, no final de agosto de 1993, encantando-se e descobrindo seu público brasileiro7.

 

Ela também se apaixonou pelo Brasil e por sua gente; deu palestras, formou grupos, lançou seus livros.

 

Hoje em dia, suas idéias marcaram também "como espinho na carne" aqueles que assistiram a seus seminários e que com ela fizeram supervisão. Assim deixou sua inscrição.

 

Silvia se entregava com a força do amor de quem quer fundar, de quem, com generosidade, produz o mesmo efeito profundo que a sexualidade do outro produz na sua cria. Aqui, ela se tornou querida e reconhecida pela riqueza e seriedade de seu trabalho. Aqui ela foi acolhida, com carinho, por um povo generoso, como também nós fomos acolhidos há 30 anos atrás.

 

Silvia é uma pensadora de nossa época, podemos afirmá-lo, pela transcendência de sua obra e pela apropriação que dela fazem inúmeros leitores e psicanalistas; uma obra que abre novos caminhos ao pensamento, que diz algo de novo; uma obra que respeita o texto e o desdobra. Surpreende-nos a facilidade com que nos mostra a possibilidade de ver algo novo naquilo que imaginávamos já conhecido.

 

A diferença entre transtorno e sintoma é hoje uma conceitualização que não se pode mais dispensar.

 

No início do encontro de Porto Alegre, ela nos disse: "Desenvolvo, a partir do recalque originário, um modelo de análise de crianças que tenta estabelecer uma correlação entre o descritivo e o prescritivo: antes da repressão originária, a análise de crianças, como tal, aplicando o método, não é possível. Esta só é possível a partir do inconsciente fundado, inconsciente que não existe desde as origens. Abre-se, desta forma, um campo de redefinição possível para intervenções analíticas que podem ser produzidas nos tempos da fundação psíquica e nos casos nos quais houve um fracasso na constituição tópica".

 

É a partir desta formulação do campo da psicanálise de crianças que Silvia se separa tanto do a-historicismo estruturalista quanto do geneticismo evolucionista.

 

Em seu texto "Paradoxos da Sexualidade Masculina", ela nos oferece a possibilidade de fazer uma nova leitura sobre os conhecidos caminhos da sexuação. Durante anos se repetiu que a mulher percorre um caminho mais árduo que do que o homem para alcançar sua feminilidade. Silvia sugere que reflitamos sobre quão mais difícil é o caminho que o homem deve percorrer, já que deve mudar do objeto primitivo de identificação, a mãe, para o pai, tendo que passar pela incorporação do pênis para tornar-se homem. Esta leitura nos oferece um novo olhar, com conseqüências teóricas e clínicas insuspeitadas.

 

Se é que temos uma homenagem para lhe render, esta não deveria ser realizada por meio de uma síntese de suas idéias; pelo contrário, devemos procurar despertar a curiosidade, colocar enigmas e incitar a que ela seja lida. Convido-os, assim, a que destrinchem seus pensamentos. Garanto que o embate com seus textos só enriquecerá o arcabouço teórico de cada um de seus leitores.

 

Apresentei as idéias de Silvia em meus seminários sobre "A Formação do Sujeito Psíquico", desde o ano 1993, quando foi publicado seu primeiro livro em espanhol.

 

Apresentei também a Silvia-militante, por meio de seu texto "Dolor Pais". Transmiti os trabalhos feitos por ela com os sobreviventes da explosão da AMIA, em Buenos Aires, instituição judaica que foi vítima de um atentado sangrento, no qual morreram mais de 80 pessoas. Silvia organizou os trabalhos com os sobreviventes e os familiares, lidando com as experiências traumáticas e a dor dos que sofreram este massacre.

 

A última vez em que estive em Buenos Aires, em julho deste ano, lhe telefonei. Disse-lhe que desejava mandar-lhe um abraço. Desta vez senti que não havia espaço para o café. Senti que não podia entrar nesse momento em sua intimidade, que reservava, como a um tesouro, para despedir-se daqueles a quem amava e com quem compartilhava seu cotidiano. Despedimo-nos pelo telefone, com muito carinho. Silvia disse-me que estava com pena de não ter tempo para oferecer tudo o que ainda estava pensando. Sabíamos que não voltaríamos a nos ver.

 



1 Esta é uma expressão de Silvia Bleichmar que, ao se referir às origens do sujeito, diz que o que se implanta desde o outro tem a força de "um espinho na carne". Só depois é que este espinho se torna significante enigmático, mas isto já diz respeito à questão do sujeito.

2 Emmanuel Levinas. Dios, La muerte y el tiempo. Madrid, Ediciones Catedra, 1993, p.134.

3 Os Colóquios anteriores foram em 1992, no Canadá; em 1994, na Inglaterra, e, em 1996, na Espanha.

4 Expressão de Laplanche que se refere a fazer uma leitura de Freud sem distorcer seu pensamento. Não fazer com que Freud diga o que nós queremos dizer.

5 Laplanche e Leclaire, "El inconsciente: un estudio psicanalitico", colóquio de Bonneval (1959).

6 As referências ao texto de Porto Alegre são de uma cópia que Silvia me deu antes da leitura de seu trabalho e das notas que tomei durante sua exposição. Não sei se foi publicado, porque não houve anais deste encontro.

7 No primeiro encontro, Laplanche falou sobre "A interpretação e a teoria tradutiva do recalque". No segundo, sobre "A revolução copernicana e o problema do outro".

Organizamos também um encontro, que foi filmado, com Haroldo de Campos, para que a questão da tradução fosse discutida. Laplanche, tradutor de Freud para o francês, e Haroldo de Campos, tradutor de inúmeras obras literárias. Dois titãs que se encontram e se desencontram em diversos aspectos sobre a tradução.

Os professores tiveram a oportunidade de desfrutar de um encontro mais longo, no qual a formação foi discutida. Seus comentários sobre nossa instituição e seu encontro com Madre Cristina foram momentos marcantes de nossa história.

 




 
 
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