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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    03 Dezembro de 2007  
 
 
LITERATURA

Considerações sobre a complexidade feminina em Clarice Lispector


LUCÍA BARBERO FUKS

 

Com o intuito de analisar o modo como a complexidade feminina emerge em algumas personagens de Clarice Lispector, e logo depreender algo sobre a complexidade da própria autora, gostaria de estabelecer um paralelo entre duas de suas obras: Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de 1969, e A hora da estrela, de 1976 (publicada em 1977). Reconhecendo nas duas o estilo inconfundível da autora, de um rigor e uma profundidade patentes, vale a pena pensar algumas das diferenças que existem entre as protagonistas, Lori e Macabéa.

 

De partida pode-se ver que Lori permitiu a Clarice uma grande liberdade de introspecção autobiográfica, o que fica evidente nas belas descrições de vivências em diversas cidades da Europa, no vazio que se deixa tingir pelas cores de cada uma delas. Loreley parte em busca de sua essência, quer ser o que entende como ela mesma, além de querer sentir mais intensamente e procurar o amor. "A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um ser humano" (Lispector, 1982, p. 31). "Lori era - o quê? - mas ela era" (Idem, p.39). Trata-se de uma mulher muito rica em possibilidades, mas que está momentaneamente empobrecida e omissa. "Ela era inalcançável. E mais: não só inalcançável por ele, mas por ela própria e pelo mundo. Ela vivia de um estreitamento no peito: a vida" (Idem, p. 40).

 

Macabéa, pelo contrário, é uma personagem marcada pela simplicidade, pela escassez, pela pobreza. É o que leitor apressado e prenhe de preconceitos poderia julgar como uma mulher carente de conteúdos. Considerando-se a exuberância da complexidade da autora, deve ter sido um sofrimento, como ela diz, conseguir trazer à tona essa figura tão singela, ao menos à primeira vista. "É que em uma rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina" (Lispector, 1998, p.12)... "... e preciso falar dessa nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela" (Idem, p.17).

 

O que Clarice viu nessa moça tão alheia a seu mundo é algo que jamais se poderá afirmar com precisão, mas penso que reconheceu o estrangeiro que habita em nós e que Julia Kristeva (1994) diz ser a face oculta de nossa identidade; o espaço que anima a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia.

 

"O estrangeiro começa quando surge a consciência da minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades" (Kristeva, 1994, p.9).

 

Em ambos os livros, Clarice busca retratar um despertar da mulher, mas em A hora da estrela a personagem não tem condições de chegar a esse despertar, a essa revelação que a constitua em sua identidade. Lori, no extremo oposto, de tanto ficar presa nas armadilhas de seu pensamento, não consegue dormir. Padece de algo que quase se pode entender como um excesso de profundidade. Mas ao menos pode esperar, porque tem condições de sentir e de descobrir por si própria quando está pronta para amar e ficar completa, aceitando o outro. Aí, como tantas outras vezes, a autora transmite a sensação de uma força interna que se impõe.

 

Mas a algo mais vale atentar nessa seqüência de publicações: ao longo dos anos transcorridos entre um livro e outro, à medida que Clarice ia ficando mais rica em sua compreensão de mundo e na análise de caracteres, é que foi ganhando o interesse e a capacidade de transcrever o vazio interior de Macabéa. Criar Macabéa foi uma síntese bem-sucedida: foi a expressão da existência de alguém totalmente diferente dela, e que só existe no âmbito de uma sabedoria "natural", algo que a autora já buscava desde antes.

 

Nesse sentido, podemos voltar rapidamente ao que antes aludi como o engano que pode provocar uma leitura precipitada: a idéia de que Macabéa é a personificação da ignorância, da carência de conteúdos. Como o próprio livro narra: "Esse não saber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo" (Lispector, 1998, p.28-29).

 

Macabéa  desperta piedade - entre outras razões por percorrer o caminho doloroso do "saber que se gosta de alguém que ninguém gosta". É também por isso que Clarice usa o artifício de inventar um intermediário entre ela e a personagem, um narrador que inclusive se indaga a respeito de sua própria eleição para contar aquela história: "... teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas" (Lispector, 1998, p.14).

 

Com Lori, o sentimento que vem à tona não é a piedade. Pelo contrário, o leitor acompanha a personagem em seu desafio de chegar à completude e ao prazer, o que está intensamente descrito nos últimos capítulos. Diante de uma busca tão altaneira, em que se estabelece cumplicidade e empatia, fica óbvio porque não há lugar para a piedade. Lori não é uma excluída: está em franco embate contra o mundo. "... um dia será o mundo com sua impersonalidade soberba versus a minha extrema individualidade de pessoa mas seremos um só." (Lispector, 1982, p.77).

 

Como em O estrangeiro, de Albert Camus (1942), em A hora da Estrela parece que o momento mais importante da vida é a morte. É com a morte que o ser alcança sua individualidade e seu estrelato, além de se tratar do que de mais exclusivo lhe pode ocorrer. No livro de Clarice, é eloqüente essa valorização: "Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes" (Lispector, 1998, p.29). Na adaptação desse livro para o cinema, esse apogeu da hora da morte é transmitido por meio de uma corrida feliz de Macabéa, que porta no rosto uma expressão de alegria que até então desconhecíamos.

 

Assim como o narrador-protagonista do livro de Camus, Macabéa aparece como uma estrangeira para si mesma, pois jamais alcança as palavras que quer dizer. Procura-as escutando o rádio, mas por alguma razão elas sempre continuam fora, alheias a ela. As palavras não lhe podiam acrescentar muito porque não lhe serviam para encontrar novas significações internas, em que pudessem ter ressonância. Assim, jamais se tornavam realmente dela.

 

Considerando a importância que Clarice dá nesse livro à morte, e sendo que a própria autora estava próxima da sua e o sabia, essa atenção ao inaudito, ao indizível, ganha um sentido especial. Pode-se dizer que, de modo geral, Clarice processava suas dúvidas e angústias através da escrita; desta vez, quando a morte assoma, a personagem escolhida está alienada de seus próprios sentimentos, não encontra palavras para expressá-los e, por conseguinte, parece viver e não sentir, e logo morrer sem sentir. Clarice pode ter precisado matar sua personagem assim, para que assim não fosse a sua própria morte.

 

 

Referências:

CAMUS, A. (1942) L'étranger. Paris: Gallimard, 1957.

KRISTEVA, J. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

----------------.  A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

 




 
 
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