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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    04 Fevereiro de 2008  
 
 
O MUNDO, HOJE

Medicalização da infância e da adolescência (Dossiê)


 

EQUIPE DO BOLETIM ONLINE

 

Nas últimas décadas assistimos a um "boom" de novas patologias da infância e da adolescência. São transtornos, distúrbios, síndromes que ganham siglas, nome e sobrenome e, logicamente, uma folha de receituário com a indicação de uma droga que promete "tratar" o comportamento não adequado que o paciente apresenta. TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) e ODD (Desordem de Oposição Desafiante) são algumas dessas novas patologias.

Como se definem as doenças? Pode-se dizer que condutas diferentes, "más" condutas, são enfermidades? De que trata o termo "disfunções do comportamento"? Estamos falando daquelas manifestações que costumamos classificar como sintomas - expressão de conflitos e de sofrimentos psíquicos? Como pensar a medicalização que, muitas vezes, impede e obstrui a única via de expressão que o sujeito consegue trilhar? O que se logra com esse tipo de intervenção?

Essas e outras questões que surgem quando nos deparamos com notícias sobre o tema são discutidas em alguns textos que o Boletim publica a seguir.

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Há muitos interesses em jogo por trás da medicalização excessiva de seres humanos. Como nos diz Gelman a respeito da política norte-americana, em seu artigo "A doma dos jovens bravios", a indústria farmacêutica muito agradece. Juan Gelman, poeta argentino, é considerado um dos principais escritores contemporâneos em língua espanhola, tendo recebido o Prêmio Cervantes em 2007. Foi ferrenho opositor da ditadura argentina, durante a qual perdeu o filho e a nora, grávida, cuja filha só foi localizada  muitos anos depois. Depois de um longo período de exílio na Europa, Gelman vive atualmente na Cidade do México.

 

 

A DOMA DOS JOVENS BRAVIOS

 

                                                                                                              JUAN GELMAN

Tradução de Natalia Gola

  

Há, nos Estados Unidos, uma verdadeira parafernália para consegui-la e o remédio é simples: consiste em criminalizar e, mais, em patologizar os jovens norte-americanos rebeldes, desconformes com o autoritarismo e que o criticam. São considerados transtornados mentais e carne de tranqüilizantes, anfetaminas e outras substâncias psicotrópicas.

 

A Associação Norte-Americana de Psiquiatria batizou o presumido parecer em 1980: leva o nome de Desordem de Oposição Desafiante (ODD, sigla em inglês) e não se aplica aos delinqüentes juvenis.  Aplica-se àqueles que não se envolvem em atividades ilegais, mas mostram "um comportamento negativo, hostil e desafiante". Os sintomas incluem "desafiar ou negar-se ativamente a cumprir as demandas e normas dos adultos" e a "discutir freqüentemente com eles". São definições oficiais da Associação (alternet.org, 28-1-08).

O especialista em saúde mental Bruce E. Levine indica que seus colegas norte-americanos não levam em consideração que um meio opressivo costuma originar esse tipo de revolta juvenil e a "curam" com drogas. As grandes empresas farmacêuticas muito agradecem. Como assinalou Fernando Savater, a tendência a considerar "enfermo" quem se comporta de maneira "excêntrica, censurável ou perigosa... é uma tradição bem documentada desde os inícios de nossa época moderna e racionalista" (Clarín, 31-10-04). Existe nos Estados Unidos desde que John Adams, seu segundo presidente e um dos Pais Fundadores do país, promulgou, em junho de 1798, quatro leis de eterna duração: a) o prazo para optar pela cidadania norte-americana foi ampliado de 5 para 14 anos de residência; b) o presidente pode deportar os estrangeiros "perigosos" segundo sua soberana vontade; c) o presidente pode expulsar ou prender estrangeiros inimigos em tempos de guerra; d) toda conspiração contra o governo, incluindo os distúrbios, é um delito grave.

Outro Pai Fundador, o médico presbiteriano Benjamin Rush, diagnosticou em 1813 que a rebelião contra a autoridade federal centralizada é "um excesso de paixão pela liberdade" e que "constitui uma forma de insanidade". Em 1851, o Dr. Samuel Cartwright descobriu a "drapetomania", mal que, segundo ele, provocava nos escravos o desejo de fugir, e também o que chamou de dysaesthesia aethiopis, enfermidade que impedia que os escravos prestassem a devida atenção às ordens do amo. Não havia escravidão, havia enfermidades. Hoje ocorre o mesmo.

O governo norte-americano necessita uma juventude submissa, disposta a sacrificar sua vida em qualquer guerra que a Casa Branca invente, e que não participe em lutas "subversivas" como os movimentos pela paz ou em defesa dos direitos humanos. Drogas à parte, o Pentágono tomou medidas para evitar esses "perigos", particularmente nas universidades, berço do rechaço à guerra do Vietnã. A lei de prevenção da radicalização violenta e do terrorismo no país, aprovada pela Câmara de Representantes, está destinada, precisamente, aos campi. A União Norte Americana de Liberdades Civis (ACLU, sigla em inglês) revelou que o Pentágono acumulava, em 2006, 186 expedientes de "protestos anti-militares" - algumas qualificadas como "prováveis ameaças" - de grupos universitários (The Nation, 25-01-08).

As corporações policiais de dois terços das universidades contam - segundo o Departamento de Justiça - com um arsenal que inclui desde balas de borracha e projéteis de pimenta, até rifles e armas semi-automáticas. Apesar de utilizarem mais freqüentemente paralisantes elétricos, esses parentes da picana elétrica[1], para reprimir manifestações. A "guerra anti-terrorista" impulsionou o incremento da vigilância nos campi mediante incontáveis circuitos fechados de televisão, duplicados desde o 11 de setembro. A indústria eletrônica e outras muito agradecem. O Departamento de Educação e o FBI confeccionaram uma base de dados que registra os 14 milhões de estudantes que solicitaram, a cada ano, bolsas de estudo no período 2001-2006.  A razão?  Identificar a "gente de interesse" por sua possível vinculação com alguma "atividade terrorista".

Os estudantes estrangeiros gozam de uma vigilância especial: o Departamento de Segurança Interna (DHS, sigla em inglês) tem registrado o nome de mais de 4,7 milhões deles, apesar de que apenas um em cada vinte não documentados ingressa na universidade. Alguns carecem de meios e outros têm boas razões para não fazê-lo: não poucos foram deportados antes de concluir a graduação. Mas nem todos os estudantes são candidatos a demônio para o DHS: concede bolsas a alunos e professores para "promover uma cultura de segurança interna na comunidade acadêmica" e fundou seis centros de excelência na matéria (www.dhs.gov). Trata-se de criar "um capital intelectual" contra o terrorismo. Parece, entretanto, que o DHS se aplica a controlar estritamente todo capital intelectual.

Fonte: http://argentina.indymedia.org/news/2008/02/581492.php

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O IV Encontro Latino-Americano dos Estados Gerais da Psicanálise foi sediado no Instituto Sedes Sapientiae entre os dias 4 e 6 de novembro de 2005. Na ocasião foram apresentadas, por membros do Departamento de Psicanálise, duas comunicações diretamente relacionadas ao tema: Desafios da Clínica Contemporânea: Novas Formas de Manicomialização, por Maria Ângela Santa Cruz (http://www.estadosgerais.org/encontro/IV/PT/trabalhos/Maria_Angela_Santa_Cruz.pdf) e A prioridade do outro versus medicalização, por Ana Maria Sigal (http://www.estadosgerais.org/encontro/IV/PT/trabalhos/Ana_Maria_Sigal.pdf). A plenária final de encerramento deliberou pela aprovação do seguinte manifesto, encaminhado para a mídia, Ministérios da Saúde, da Educação, da Cultura e da Assistência Social e para instituições e grupos afins.

 

MANIFESTO PELA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DOS TRANSTORNOS MENTAIS

 

Nós, psicanalistas reunidos no IV Encontro Latino-Americano dos Estados Gerais da Psicanálise, decidimos tornar pública nossa posição diante do movimento crescente e avassalador de medicalização de nossos povos. Por medicalização entendemos o duplo movimento de:

1. Patologizar, isto é, reduzir à categoria de doença inúmeras manifestações subjetivas e sociais que, dessa forma, são submetidas ao domínio de especialistas da área da saúde. Tal operação política - legitimada socialmente, através do uso do argumento de autoridade de uma suposta ciência neutra - destitui os sujeitos de seu saber e aliena-os em relação a seus próprios corpos, mentes e existências.

2. Transformadas em doença, tais expressões passam a ser imediatamente medicáveis, processo da maior relevância social principalmente quando tais "doenças" se referem ao âmbito do psíquico ou do comportamento, como preferem certos setores sociais.

Entendemos esse movimento como uma estratégia poderosa de controle social, orquestrada no bojo de um capitalismo globalizante que configura um certo tipo de práticas e discursos psiquiátricos, psicológicos e médicos, ditos "científicos", instrumentados pela poderosa indústria farmacêutica. A hegemonia crescente desse tipo de práticas e discursos e sua ampla divulgação pela mídia são fenômenos preocupantes, pois tais práticas vêm funcionando como dispositivos políticos de achatamento das diferenças, de despolitização, privatização e psicologização de conflitos, de pasteurização das emoções humanas, de anestesia do pensamento e do desejo, produzindo homens e mulheres apáticos e resignados com suas condições de existência, crianças, adolescentes e jovens amordaçados quimicamente em sua potência de denúncia e de reinvenção do campo social.

Queremos deixar claro que nossa posição não é contra a medicação quando esta é feita criteriosamente, em situações de extremo sofrimento psíquico, mas sim contra seu uso generalizado, substituindo outras ações de saúde, educação ou da ação de programas sociais, reduzindo desta forma a complexidade do humano a uma questão bio-química.

Assim é que os inúmeros fatos que vem se avolumando assustadoramente e dos quais somos testemunhas em nosso trabalho cotidiano contam: de escolas públicas ou privadas em que um crescente número de professores faz uso de antidepressivos ou de algum tipo de medicação psiquiátrica, assim como um altíssimo número de alunos - em sua maioria diagnosticados com déficit de atenção e hiperatividade - são medicados com Ritalina ou outros; de um alto índice de medicação de crianças, adolescentes e adultos com drogas psicotrópicas, seja na rede pública ou privada de saúde, resposta final dada a diversas ordens de problemas familiares, educacionais, sociais; de uma também crescente patologização e conseqüente medicação de jovens em conflito com a lei que, além de confinados dentro de muros de instituições totalitárias, também passam a ter sua potência de transformação confiscada.

A gravidade de tais fatos exige de nós, profissionais da saúde, um posicionamento público no sentido da oposição a essa onda de medicalização social.

Para fazer frente a isso, propomos:

1. Que a questão da patologização e medicação generalizadas da população, especialmente das crianças e adolescentes, entre para a agenda de discussão das políticas públicas em geral e, mais particularmente daquelas voltadas para a saúde, educação e assistência social, principalmente aquelas dirigidas à infância e à adolescência;

2. A efetiva aplicação da diretriz de desinstitucionalização - uma das bandeiras do movimento da reforma psiquiátrica brasileira - em toda sua amplitude: desinstitucionalizar, ou seja, produzir outras respostas sociais que contemplem efetivamente os direitos de cidadania não apenas para os chamados "doentes mentais", como também para toda a população diagnosticada psiquiatricamente como portadora de algum tipo de transtorno mental. Aliados ao movimento da reforma psiquiátrica e à luta anti-manicomial, propomos a ampliação dos fóruns de debates seja para incluir as questões aqui explicitadas, seja para incluir outros atores sociais, inclusive a comunidade psicanalítica aqui subscrita;

3. O fortalecimento e a ampliação dos dispositivos de participação social, popular e comunitária na elaboração, gestão, implementação e avaliação das políticas públicas, tal como proposto em programas como o Humaniza - SUS do Ministério da Saúde do Brasil. Quando não houver tais dispositivos, a proposta é que sejam criados nos diferentes níveis municipais, estaduais e federais;

4. A criação e/ou o fortalecimento de Fóruns permanentes intersetoriais de articulação de políticas de saúde, educação, assistência social, trabalho, lazer nos diferentes níveis municipais, estaduais e federais, com a participação efetiva da população e de agentes sociais que possam ter contribuições relevantes para o debate;

5. O debate amplo, que inclua comunidades juvenis, para a elaboração, implementação, gestão e avaliação permanente das políticas sociais dirigidas à adolescência e juventude.

Convidamos outros grupos, instituições, associações e movimentos sociais a se juntarem a nós neste manifesto e nestas proposições.

Fonte: http://www.estadosgerais.org/encontro/IV/PT/manifesto.php

 

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Em dezembro de 2007, vários profissionais e entidades brasileiras assinaram uma nota de repúdio aos estudos sobre a base biológica em menores infratores que estão sendo feitos pela PUC-RS e pela UFRGS. A nota, intitulada "Estudos sobre a ‘base biológica para a violência em menores infratores': novas máscaras para velhas práticas de extermínio e exclusão", foi divulgada pelo CIESPI - centro de estudos e de referência dedicado ao desenvolvimento de pesquisas e projetos sociais voltados a crianças, adolescentes, jovens e suas famílias e comunidades, cuja meta é subsidiar políticas e práticas para esta população, contribuindo para o seu desenvolvimento integral e para a promoção e defesa dos seus direitos.

 

 

ESTUDOS SOBRE A "BASE BIOLÓGICA PARA A VIOLÊNCIA EM MENORES INFRATORES": NOVAS  MÁSCARAS PARA VELHAS PRÁTICAS DE EXTERMÍNIO E EXCLUSÃO

Nota divulgada pelo CIESPI - Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância

É com tristeza e preocupação que recebemos a notícia de que Universidades de grande visibilidade na vida acadêmica brasileira estão destinando recursos e investimentos para velhas práticas de exclusão e de extermínio. A notícia de que a PUC-RS e a UFRGS vão realizar estudos e mapeamentos de ressonância magnética no cérebro de 50 adolescentes infratores para analisar aspectos neurológicos que seriam causadores de suas práticas de infração nos remete às mais arcaicas e retrógradas práticas eugenistas do início do século XX.

Privilegiar aspectos biológicos para a compreensão do ato infracional do adolescente em detrimento de análises que levem em conta os jogos de poder-saber que se constituem na complexa realidade brasileira e que provocam tais fenômenos, é ratificar, sob o agasalho da ciência, que os adolescentes são o princípio, o meio e o fim do problema, identificando-os seja como "inimigo interno" seja como "perigo biológico", desconhecendo toda a luta pelos direitos das crianças e dos adolescentes, que culminou na aprovação da legislação em vigor - o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Pensar o fenômeno da violência no Brasil de hoje é construir um pensamento complexo, que leve em consideração as Redes que são cada vez mais fragmentadas, o medo do futuro cada vez mais concreto e a ausência de instituições que de fato construam alianças com as populações mais excluídas. É falar da corrupção que produz morte e isolamento e da precariedade das políticas públicas, sejam elas as políticas sociais básicas como educação e saúde, sejam elas as medidas sócio-educativas ou de proteção especial.

Enquanto a Universidade se colocar como um ente externo que apenas fragmenta, analisa e estuda este real, sem entender e analisar suas reais implicações na produção desta realidade, a porta continuará aberta para a disseminação de práticas excludentes, de realidades genocidas, de estudos que mantêm as coisas como estão.

Violência não é apenas o cometimento do ato infracional do adolescente, mas também todas aquelas ações que disseminam perspectivas e práticas que reforçam a exclusão, o medo, a morte.

Triste universidade esta que ainda se mobiliza para este tipo de estudo, esquecendo-se que a Proteção Integral que embasa o ECA compreende a criança e o adolescente não apenas como "sujeito de direitos" mas também como "pessoa em desenvolvimento" - o que por si já é suficiente para não engessar o adolescente em uma identidade qualquer, seja ela de "violento" ou "incorrigível".

A universidade brasileira pode desejar um outro futuro: o de estar à altura de nossas crianças e adolescentes.

 

Seguem-se 142 assinaturas de professores universitários de diversos estados da federação, de comissões de direitos humanos de Conselhos de Psicologia e de diversas instituições e movimentos sociais ligados à saúde, educação e cultura.


Fonte: http://www.crprj.org.br/2007121302.asp

 



[1] Aparelho de descarga elétrica que toma seu nome de um aparelho utilizado para conduzir bois, de uso generalizado como instrumento de tortura durante a ditadura militar (N. de T).

 




 
 
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