PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    04 Fevereiro de 2008  
 
 
CINEMA

A vida: como ela é?


GISELA HADDAD

Dois filmes recentemente em cartaz, A vida dos outros e 4 meses, 2 dias e 3 horas, têm em comum o fato de abrirem as cortinas dos anos em que países como a Alemanha Oriental e a Romênia estiveram sob o regime socialista, mas sem privilegiar a crítica ao panorama político. Os bastidores da vida oprimida destes indivíduos, cuja liberdade cerceada favoreceu a hipocrisia social e certas perversidades que todas as ditaduras geram, será apenas o pano de fundo dos dramas humanos encenados.

No primeiro (melhor filme estrangeiro do Oscar 2007) uma vigilância da STASI, a polícia secreta da então República Democrática Alemã, passa a "escutar" a vida de um escritor e diretor de teatro buscando evidências de idéias contrárias ao regime. O que se vê, no decorrer das cenas, é o mergulho subjetivo do agente destacado para espionar, considerado um dos mais eficientes desta polícia, que o obriga a questionar os princípios ideológicos aos quais se submete e a coerência destes.

E o que ele "escuta" que o perturba tanto?

A vida íntima e cotidiana de um homem e uma mulher que compartilham princípios humanistas, presente nos cuidados, trocas e negociações exigidas em uma relação amorosa, no convívio com os amigos ou com os obstáculos que a vida sem liberdade impõe a eles. São seus dilemas morais e íntimos, as dúvidas sobre suas decisões, o respeito pelas diferenças (o que já seria um contraponto interessante diante da invasão de privacidade alheia que ele protagoniza) e a tolerância aos limites que a vida privada deste homem e desta mulher impõe, obrigando-os a fazer escolhas nem sempre desejadas.

É como se fosse possível acompanhar o agente da STASI na construção de novos sentidos para a vida humana, o que o faz escolher transgredir as regras a que havia se submetido por tantos anos, em favor de um ato de solidariedade ao casal.

4 meses, 2 dias e 3 horas é o tempo de gravidez de uma das protagonistas deste filme romeno (Palma de Ouro em Cannes 2007) e sua decisão de abortar. Na época em que o filme se passa, o governo romeno, na pessoa do ditador Nicolai Ceaucescu, havia proibido o aborto e se este fosse feito após o quarto mês de gravidez seria considerado homicídio. Além disso, mulheres abaixo de 45 anos estavam proibidas de usar método anticoncepcional, e aquelas com mais de 25 anos que não tivessem filhos eram obrigadas a pagar multas. Estas medidas visavam aumentar a taxa de natalidade e, conseqüentemente, o número de trabalhadores.

O filme passa ao largo das controvérsias no plano moral que o tema do aborto suscita. Os espectadores acompanham Gabita, a estudante grávida e a corajosa Otilia, sua companheira de quarto, em uma seqüência de "a vida como ela é". A atmosfera difusa daqueles anos sombrios se impõe como fundo de um real que precisa ser enfrentado: fazer o que pode e dá para ser feito, seguindo um desejo de ser livre para escolher. Apesar da truculência da realidade apresentada, seja pelo traumático do ato de abortar, ou pelo obsceno abuso de poder, nos poucos momentos em que os personagens falam de si e de sua relação com a realidade em que vivem e com os outros, é a vida humana que se apresenta com toda a sua complexidade, incerteza e precariedade. Não se pode vivê-la na gratuidade: ela exige esforço e responsabilidade na tarefa de lhe dar sentido.

Gisela Haddad (gishaddad@yahoo.com) é membro do Departamento de Psicanálise.

 




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/