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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    05 Abril de 2008  
 
 
ESCRITOS

Anjos , maracujina, socorro, chamem o ladrão! (1)


MARIA ELISA PESSOA LABAKI (2)

Enquanto esperávamos pelo boletim de ocorrência, a brusca entrada do delegado, no mais vulgar estilo bang-bang, ejetou meus pacientes progenitores e a mim do sofá quente e puído que nos suportava. Lufada de ar mais espessa, daquelas que nos desenhos animados são capazes de arrancar da imobilidade as coisas pesadas. Sim, neste dia fomos seqüestrados pela polícia, pesos pesados encalhados na delegacia. Empunhando o berro em pose de caubói patético - se não fosse sádico - me indaga o delegado se, por acaso, não seria aquela a arma com a qual os ladrões haviam me rendido na noite anterior.

Enquanto pressionava a ponta do pé indolor sobre o chão, espremendo-a em movimentos semicirculares sobre os tacos tão velhos daquele lugar inóspito, exclamava ele: "São todos como baratas... sabe, daquelas que não adianta matar porque nascem aos montes, vão invadindo qualquer lugar?" Com expressão de repulsa, parecia convencido de que da ausência de um bandido morto nasceriam outros dez, e que, portanto, nenhum motivo havia para detê-los. Como um ator, contracenava com seus invisíveis antagonistas, tendo a mim, vítima, e a meus pais, anjos, sua platéia preferencial.

Na cama, o tempo passava sem dó. Era sábado, 28 de abril, exercício de paciência na madrugada aflita que os insones conhecem tão bem. Vi que o vidro de maracujina estava vazio. Saí de carro, quatro e meia da manhã, até a farmácia mais próxima. Lá mesmo virei na garganta o néctar doce e denso até a metade do vidro. Reajo rapidamente aos líquidos, de modo que, já meio zonza e lenta na condução do automóvel, bastou o sinal vermelho para que o automatismo me fizesse parar. Era um cruzamento perigoso com obras, impedindo-me de ver aqueles carrões potentes que costumam trafegar em alta velocidade na noite embriagada. Eis que do chão brotam três rapazes e, do alto, uma arma apontada para mim me leva a hesitar entre agir ou pensar. Preciso de alguns segundos para realizar a cena na qual eu estou vivamente incluída como agente passiva assaltada. Difícil conclusão essa: seria mesmo comigo? Assim, no momento imediato após o engessamento que me fazia de morta, decidi responder "acreditando" que aquele revólver empunhado próximo ao meu crânio era de mentira. "Sim, plástico, é isso! Estão querendo me assustar, me engambelar, pensam que são gente e vão me roubar se utilizando de procedimento tão infantil... Brincadeira precária, vontade de dar-lhes boas palmadas e mostrar com quantas mãos se realiza um ato genuíno" . Mas, bem, anjos existem e, graças a eles, consegui desfazer a negação lembrando que, em álgebra, menos com menos dá sempre mais. Sim, positivamente, era comigo.

Abri a porta do carro e levantei minhas pernas, aproximando-as de meu dorso, de forma que ficassem visíveis as prosaicas havaianinhas brancas que pendiam, frouxas, dos meus pés. Azar, podia ter sido ainda mais verossímil, se tivesse calçado as quentinhas pantufas de pelúcia que jaziam alinhadas esperando serem gastas. "Estava dormindo, quer dizer, na cama com insônia, e só vim comprar remédio. Não tenho cartão, dinheiro, nada, olhem". Faço um gesto de desabonada total, alguém visivelmente desprevenido em relação a assaltos, sobretudo aqueles do tipo relâmpago cuja vítima é obrigada a sacar dinheiro de caixas eletrônicos. Embora tivesse, sim, um bem, e dos bons: o carro devidamente assegurado. "Pois, levem-no e não se ocupem de mim".

Qual o quê, empurraram-me para o banco de passageiro e entraram os três no carro: "Tia, desculpa, a gente não queria assaltar mulher, pensamos que era homem. O cabelo, né? Mas a senhora deu bobeira, parou no sinal. Não pode parar numa hora dessas, não!" Incompetente e precária ali, só eu. "Vocês ficam com o carro, não faço questão, só quero ir embora". "Não, a senhora fica e ajuda a gente a sair daqui".

"Olha, eu não tenho nada pra dar pra vocês. Saí de casa sem nada, só com as chaves e o dinheiro contado pro remédio". "A senhora é casada, tia?" "Sou, mas meu marido está viajando". "Onde tá seu marido?" "Em Moscou". "Moscou? O que ele tá fazendo lá?". "Tá trabalhando". "No quê ele trabalha?". "Trabalha com teatro, tá participando de um festival". "Eu também faço teatro!". "Ah, é? Onde?". "Eh, tia, tá querendo saber demais...".

"E aí, tia, não quer passar esse carro pro nosso nome?". "Passar pro nome de vocês? Mas não precisa, o carro já é de vocês. Só me deixem ir embora". "Fica calma tia, fica calma porque a gente não mata ninguém à toa". "Não mata ninguém à toa?! Que que é à toa pra vocês?". "Ó, a senhora não reagiu, tá colaborando e vai prometer que só vai fazer o B.O. daqui a dois dias. Aí já deu tempo de desmanchar tudo no carro". "Claro, eu prometo". "É, mas um monte de gente promete e depois vai lá e faz o B.O. na hora. A senhora tem que prometer, se não a gente vai na sua casa e pega a senhora lá. A senhora tem filhos?"

Em um conhecido cruzamento paulistano, iniciam uma discussão em relação à vantagem de assaltar, naquele momento, o carro branco parado ao nosso lado. Pânico. Já me vi sob fogo cruzado, entre carros se batendo. Num exercício tático de subestimação do perigo, disse-lhes que talvez não fosse o mais indicado assaltar um veículo com dois homens dentro. Ou, pelo menos, que me deixassem sair primeiro. "A gente é muito jovem pra morrer. Tomem cuidado! Não assaltem esse carro que tem duas pessoas, peguem um com uma só, é mais fácil... Morro de medo de bala perdida". Com duas armas apontadas para mim, meu medo, no entanto, era de balas perdidas. Penso que só poderia mesmo me manter calma na medida em que conseguisse borrar das palavras a violência e o terror, transformando toda ação mortífera intencional em mera fatalidade. Não, eles não podiam ser assim tão maus. Não comigo...

"Sabe, tia, é que a senhora tem tudo, mas a gente lá passa necessidade e aí tem que trocar, né?". Nesse momento me lembro do celular no porta-luva e, feliz, entrego-o a um deles. "Peguem, é de vocês".

Escuridão e quebradas por um bairro que eu não reconheço. Ruas que se estreitam, sob cuja pressão vou me condensando até sobrar um só fio delgado de percepções e sensações sólidas. Desvanecer na visível insignificância é tendência contra a qual meu corpo, que treme, resiste, venal. Estou na roda, pronta para servir. Três e uma. O que tem de ser será. Mas serão as mulheres prontas a perder as que menos se deixam abater? É isto, festa e abate, pontos de vista alheios e irmãos. Sim, escancararei meu flanco aberto como ferida... Ah! Bandeira! Que saudades da minha terra...

"A gente vai deixar a senhora descer logo, logo. Aí, quando a senhora chegar em casa, a senhora toma um banho, dá um tempo, relaxa e não faz o B.O. Pode descer, moça". Olho à minha volta, abro a porta, mas, antes de sair, digo que no porta-luva tem fita cassete da Fernanda Abreu, do Ed Mota, do Jorge Ben... Só a rapaziada mesmo da minha vida, da minha aurora querida que agora a madrugada me trazia de volta. Corro rápido e sem rumo viva pela rua. Alcanço uma praça e um taxista. Entro no carro e peço São Paulo. Num átimo estou na minha calçada em frente ao portão do meu prédio, da minha casa. O taxímetro marca vinte e um reais. Em casa, vi que eu tinha duas notas de dez reais somando vinte, e uma de cinqüenta. Ah! Ele escolhe se fica com os vinte e cobra um real a menos a corrida, ou consegue troco. "Não, dona, corrida intermunicipal tem que dobrar, né, o taxímetro". Desamparo. Nem tudo está a salvo. Nem tudo em casa é Passárgada.

Entro no chuveiro e permito que a água transborde do topo da minha cabeça. Meu marido sempre diz para fazer assim quando quiser relaxar. Permanecer no banho ereta por um tempo deixando o fluxo de água delinear nossos relevos mais familiares, o nariz, o cume dos lábios, o bico dos seios, até se rarefazerem no chão duro do ladrilho escorregadio. Depois, já seca, sento-me à mesa de jantar, penso, penso, dou um tempo, dois tempos, tempo de satisfazê-los. Será que posso fazer algo agora? Estarei relaxada o suficiente?

Conforme pedi, o rádio-táxi me leva para a casa de meus pais. Corro, seis horas da manhã, para dentro da cama deles. Fico lá quietinha e quentinha e conto que fui assaltada, mas que importava mesmo estar viva. "É que era de plástico a arma, tenho certeza". Que insistência a minha. Talvez porque entre o aconchego do ninho e o convívio com os ladrões houvesse uma diferença tão abismal de natureza da experiência que, somada à mudança velozmente alcançada de um estado ao outro, me fosse logicamente impossível reconhecer verídicas ambas as situações. Não, nem tudo é de verdade. Não houve assalto algum, mas, sim, uma grandíssima farsa. Ou, então, eu é que não estava lá na cama da minha mãe naquela hora, com os passarinhos do Pacaembu piando. O que significava que eu devia estar morta. Seria o céu aquilo e mamãe e papai, anjos?

Preocupava-me a idéia de o prédio onde eu morava estar vulnerável, já que o controle remoto dos portões da garagem tinha ficado no carro, em posse dos ladrões. Retorno, então, a casa para recolher dos moradores seus aparelhos e modificar o tal segredo que faz abrir. Ao chegar, contudo, encontro o quarteirão em rebuliço. Estivera lá a polícia atrás da proprietária do carro que fora encontrado sem a moça dentro. "Onde ela foi parar? Será que morreu?" - indagavam, excitados, os vizinhos. Na secretária eletrônica escuto a mensagem de um sargento cordial convocando-me para comparecer à delegacia de polícia do distrito onde o carro havia sido localizado. Cidade vizinha, mas distante o bastante para passar o trajeto me prevenindo em relação ao inferno que eu supunha me aguardar.

Chego lá e os policiais-heróis me põem a par do triste fim que se sucedeu aos três meninos depois de terem feito um segundo assalto. Encurralados, uma perseguição com troca de tiros levou um deles à morte e os outros ao flagrante. "Vai precisar reconhecer os bandidos", me disse o delegado, ainda requebrando sobre os pés que gostam de esmagar os fora-da-lei. Na delegacia, dia todo vai passando. Duas, três, nove horas de espera para o B.O. que tive de realizar. Em meio a pacotes de biscoito de polvilho distribuídos às pencas para os policiais famintos, a conversa rolava solta com a psicóloga que descobriram em mim. Difícil ofício, baixo salário, risco de vida, entre outras queixas de teor mais pessoal. Curiosamente, pareciam ingênuos estes homens que matavam. Mas, não só. Seus corpos transpiravam um resto puro da violência desprendida, excesso não metabolizável. E isso os fazia sinistros. Senti medo deles e de tudo ali. Não me foi possível fazer o tal reconhecimento, mas a equipe insistiu. Era preciso meter meu olho entre as grades da cela e acusar.

A espera foi longa, pois o automóvel (meu?), que precisou ser guinchado, demorou para ser removido de lá. Lusco-fusco, brisa fresca, fim da história. Ou, quase! Nas minhas costas, três tapinhas me despertam e fazem meu rosto virar para em seguida escutar do delegado um estranho convite: "Venha comigo conhecer a delegacia". Conhecer a delegacia? Como poderia eu encontrar interesse e força para tal comércio se há horas a feiúra daquele espaço me punha inquieta e desejosa tão somente de ir embora? Porém, apesar da resistência, atendi, dócil e sem defesas, à demanda do chefe. Caminhando ao seu lado, fomos nos dirigindo ao sagüão rumo a uma moça sentada em mais um banco duro, sujo e descascado daquela instituição. Em seus braços, uma criança encolhida. Aproximamo-nos e, apontando seu dedo indicador para mim, disse ele para a menina: "Conta para ela o que fizeram com você". Posso perceber que algumas lágrimas se desmancham dos olhinhos dela, agora discretamente entreabertos. Frustrado, tenta novamente: "Conta, conta, conta que coisa feia fizeram com você". Neste momento, enquanto a menininha chorava, eu e a mulher que dava o colo a ela observávamos, aterrorizadas, o seu Delegado gozar. Triste, falei para ela: "Não conta nada pra ninguém. Fica só no colo da mamãe".

Colo da mamãe, cama da mamãe. Estupro e proteção. A polícia e o ladrão. Atávica ambigüidade, trágica, tão francamente humana.

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(1) Publicado originalmente em Pulsional - Revista de Psicanálise, Ano XV, no. 157, p. 57-61, maio de 2002.

(2) Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do curso de Psicossomática do mesmo Instituto. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP e autora do livro Morte, Casa do Psicólogo, 2001.

 




 
 
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