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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    05 Abril de 2008  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

As “numerosidades sociais” de luto


POR PEDRO LIPCOVICH
TRADUÇÃO: NATALIA GOLA

Ulloa foi um lutador pelos direitos humanos, reconhecido por suas concepções teóricas e por sua prática como psicanalista. Foi um dos fundadores da carreira de Psicologia na UBA. Renunciou à sua cadeira em 1966 e em 1976 exilou-se no Brasil.

Muitas "numerosidades sociais" estão em luto porque sexta-feira passada, aos 84 anos, faleceu o psicanalista Fernando Ulloa. "Numerosidade social", assim ele denominava as diferentes coletividades humanas em que havia desenvolvido técnicas "para gerar pensamento crítico", segundo suas próprias palavras.

Assim trabalhou para encarar conflitos em hospitais públicos, em instituições educativas, em grupos de profissionais - o mais célebre destes foi o conjunto musical Les Luthiers -, em bairros e comunidades. Recebeu, preservou e acrescentou a herança de seu mestre Enrique Pichon-Rivière, e seu trabalho com as "numerosidades" o levou a um compromisso social e político que manifestou ao longo de toda sua vida, incluindo o exílio durante a ditadura militar e, com a democracia, seus aportes conceituais e práticos à luta pelos direitos humanos. Destacou para a teoria noções como a de ternura e a de crueldade e obteve o reconhecimento unânime das diferentes correntes da psicanálise argentina. No início dos anos 60 foi um dos fundadores da carreira de Psicologia na UBA.

Na carreira de Psicologia, que nessa época dependia da Faculdade de Filosofia e Letras, teve a seu cargo a cadeira de Clínica de Adultos. Assim como muitos professores, renunciou em 1966, depois da Noche de los Bastones Largos (1) , mas voltou a lecionar no início dos anos 70. Longe de conceber a psicopatologia numa perspectiva individual, introduziu as "assembléias clínicas", onde centenas de alunos deliberavam durante várias horas: "Eles mesmos eram objeto da clínica; observavam-se como comunidade", recordou no ano passado a este jornal. Ele preparou gerações de psicólogos na atitude e vontade de trabalhar em instituições públicas.

Ulloa nasceu em Pigüé, província de Buenos Aires, em 1 de março de 1924. Estudou Medicina na UBA e, interessado pela psiquiatria e pela psicanálise, foi discípulo de Enrique Pichon-Rivière, com quem aprendeu o valor de prestar atenção nas "numerosidades". Ingressou na Associação Psicanalítica Argentina onde chegou a ser "didata", logo depois de apresentar um trabalho que, pela primeira vez na história dessa instituição, não se referiu a um caso individual, mas sim a análises de instituições. Anos depois, em 1971, separou-se dessa instituição como fundador do grupo Documento.

O psicanalista e analista institucional Osvaldo Saidón - um dos autores do livro "Pensando Ulloa" - recordava, ontem, que "já nos anos 60, Fernando Ulloa desenvolveu os ‘grupos de reflexão', nos quais se colocava em jogo a capacidade de um grupo em pensar-se a si mesmo, como um germe de autogestão. Foi o verdadeiro criador da análise institucional na Argentina, com características diferentes das que havia tido em outros países como a França: para Ulloa, o psicólogo institucional não é um ‘organizador', tampouco um chefe, mas sim um clínico, atento, sobretudo, ao sofrimento dos que integram a instituição".

O golpe militar de 1976 o obrigou a exilar-se no Brasil, onde permaneceu até 1981. Neste país, residiu principalmente na Bahia, mas também trabalhou e formou profissionais no Rio de Janeiro e em outras cidades. Voltou à Argentina em 1981 e se comprometeu profundamente com a luta pelos direitos humanos. Nos estudos sobre os efeitos da repressão sobre a subjetividade, foi levado a desenvolver o conceito de crueldade: "Eu comecei a trabalhar a questão da crueldade a partir de uma perícia para as Abuelas de Plaza de Mayo, em um caso judicial. A pergunta que nós, peritos, formulávamos era: que conseqüências sofre um bebê cuja mãe foi torturada com choques elétricos quando ele estava em seu ventre, mantida com vida até o parto e logo depois assassinada? Essa pergunta marcava o paradigma de todas as crueldades", contou muito tempo depois a este jornal. A contrapartida da crueldade é, para Ulloa, a ternura, "o primeiro elemento para que se constitua o sujeito social que compreende o abrigo, o alimento e os bons tratos".

Liliana Lamovsky - psicanalista e membro da Escola Freudiana de Buenos Aires -, que trabalhou com Ulloa em análise institucional, destacou que "todas as correntes da psicanálise o reconheceram porque, em todos os âmbitos, ele admitia o saber inconsciente e, sempre, sabia escutar: ‘Eu, talvez, não seja o analista mais procurado, mas sou o mais encontrado', dizia ele".

Nos últimos anos de vida, Ulloa trabalhou intensamente com suas "numerosidades", assessorando equipes de saúde em bairros carentes de Neuquén e nos arredores de Buenos Aires. Isto o levou a teorizar sobre a "cultura da mortificação", que se estende "quando a queixa não é elevada a protesto e as infrações substituem as transgressões". O psicanalista Sergio Rodríguez, que foi seu discípulo e paciente, recorda que "Ulloa ironizava a fórmula de Heidegger ‘ser para a morte', dizendo que ele preferia ‘ser até a morte'".

Fernando Ulloa trabalhou até poucos dias antes de sua morte, conseqüência de uma breve enfermidade. Esteve acompanhado por sua esposa, Maria Celia, "Chichu" - com quem havia se casado em 1956 -, e por seu filho Pedro.

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(1) O governo militar do general Ongania decretou a intervenção da Universidade de Buenos Aires (UBA) e em 29/07/66 a polícia invadiu a faculdade de Ciências Exatas, golpeando estudantes, professores e autoridades com cassetetes (bastones largos) (Nota da tradutora).




 
 
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