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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    05 Abril de 2008  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

Entre saudades e lembranças - homenagem a Armando Bauleo


SILVIA LEONOR ALONSO (1)

Foi com muita tristeza que recebemos a notícia do falecimento de Armando Bauleo, na manhã do dia 19 de abril, em Buenos Aires. Tristeza que, para mim, veio acompanhada de um turbilhão de lembranças de tempos idos e projetos compartilhados.

Não se pode lembrar de Armando sem lembrar também das décadas de sessenta e setenta na Argentina, bem como da bifurcação de caminhos que acontecera no campo psicanalítico naquela época. A movimentação política e os processos sociais da década de sessenta produziram efeitos no campo psicanalítico. Na Europa, as manifestações anti-autoritárias dos jovens em maio de 68 marcaram consciências.

Na América Latina, e fundamentalmente na Argentina, a polarização política, o surgimento de grupos revolucionários e as manifestações de massas bateram na porta das instituições psicanalíticas. Na APA (Associação Psicanalítica Argentina), acendeu-se uma discussão que rapidamente foi reprimida pela instituição. Mas no final de 69, na ocasião do 26º Congresso Psicanalítico Internacional, um grupo de jovens analistas europeus, autodenominado Plataforma, convocou um congresso paralelo, em discordância com o oficial, para discutir temas como a formação, a relação dos analistas com a instituição e o lugar social dos analistas. Nesse mesmo ano, um grupo de onze analistas argentinos fundou o Grupo Plataforma argentino, como filial do internacional, e realizou uma profunda discussão ao longo de 1970, ao mesmo tempo em que cresceu com a adesão de candidatos e didatas. Em 71, os membros do grupo renunciaram à sua pertinência institucional. Armando era um destes analistas. Admirável coragem que o fez defensor dos princípios de uma ética, sem se deter frente aos interesses econômicos e de prestígio. Assim como participou do Grupo Plataforma desde sua fundação, propôs ele mesmo sua dissolução, quando percebeu que havia cumprido a sua função e começava a repetir, no seu próprio funcionamento, alguns dos mecanismos de poder presentes na instituição "oficial". Foi, portanto, um dos agentes ativos do movimento de mudança que viveu a Psicanálise na Argentina e que inaugurou uma Psicanálise comprometida com o social e com participação muito ativa na saúde mental, tanto através do Centro de Docência e Investigação, como dos serviços, centros de atendimento e formação montados nas instituições públicas.

Conheci Armando em 69 e, se mestres são aqueles capazes de torcer os caminhos profissionais de alguém, abrindo novas trilhas para caminhar, posso reconhecê-lo nesse lugar. A partir de 71 fiz parte de um grupo de dezoito analistas que, com a coordenação de Armando, formaram o Serviço de Psicohigiene e Psiquiatria Social da Maternidade Pública "Santa Rosa", em Florida, Buenos Aires. Anos de efervescência, de dedicação quase absoluta, a Psicanálise havia se convertido em uma verdadeira "causa militante" para nós: muito trabalho e estudo, projetos novos surgindo o tempo inteiro, tempos com o ar refrescante de mudanças. Armando, com a sua coragem e alegria de viver, nos motivava a desbravar territórios. Como realizar uma formação consistente de analistas, fora do marco da instituição "oficial", e fora dos critérios formatados pela mesma? Como pensar uma Psicanálise que, além do trabalho nos consultórios, pudesse oferecer respostas às demandas que as instituições lhe colocavam?

Os grupos ajudavam. E Armando foi um dos discípulos mais destacados de Pichón-Rivière: trabalhou na Escola de Psicologia Social, não muito depois de sua fundação em 58 e permaneceu nela até 72. Disso ele entendia: a agilidade associativa e técnica com a qual conduzia um trabalho de grupo era admirável. Os grupos operativos - que mais tarde tanto se esvaziaram - eram, nesse momento, e nas mãos de quem sabia conduzi-los, potentes instrumentos psicanalíticos para desvelar os fantasmas inconscientes. E lá estava Armando, com a leveza e a paciência de quem sabe o que está fazendo, "caçando emergentes" e "pescando conflitos" subjacentes às dificuldades da equipe, às vezes pela noite adentro.

Armando sempre foi inquieto, jamais gostou de ficar parado num lugar: virou então um permanente proponente de novos projetos para o grupo e, seguindo o seu entusiasmo contagiante, entramos em muitos deles. Ele havia conhecido Franco Basaglia, e na volta nos disse: "Temos que fazer uma troca com os italianos, será muito proveitosa para todos". Assim foi que nos pusemos a escrever relatórios do nosso trabalho, que intercambiamos com textos deles sobre o trabalho na Itália. Esta troca acabou numa publicação, um pequeno livro, Los síntomas de la salud (2) . Armando era o organizador, alguns capítulos eram de nossa autoria, outros, deles.

David Cooper (3) estava vindo para Argentina; Marie Langer havia chamado Armando, e começamos a nos encontrar, por longas horas, no apartamento em que Cooper estava instalado, para escutá-lo falar sobre antipsiquiatria. Foram vários meses; depois ele foi ficando mal, passamos de aprendizes a "acompanhantes terapêuticos". Finalmente foi internado. Nós nos sentimos traindo a antipsiquiatria.

Um projeto de pesquisa sobre a comunicação mãe-bebê e seus efeitos seria realizado no serviço de pediatria da Maternidade. A instituição tinha concordado e a UBA (Universidade de Buenos Aires) se dispôs a financiar o projeto. A idéia tinha surgido numa conversa de Lídia Coriat com Armando. Escrevemos o projeto juntos, íamos começar a trabalhar quando uma bomba explodiu na casa do reitor com conseqüências trágicas. O projeto implodiu junto. As coisas começaram a ficar difíceis.

Nesses anos de tantos projetos compartilhados, esses trabalhos foram os fios que teceram a relação de amizade. O seu casamento com Marta (amiga querida), só colaborou para o fortalecimento da mesma.

Os tempos foram ficando cada vez mais difíceis. Em 75, Armando disse que teria que ir embora do país. Naquele momento não sabíamos medir, nos perguntávamos se não seria uma "vivência persecutória exagerada". Os anos que se seguiram, e que levaram muitos analistas e outros intelectuais argentinos a ter que sair do país, mostraram que era uma boa percepção da realidade. Armando emigrou junto com Marie Langer para o México, depois foi para Espanha, onde morou por quatro anos em Madri, e finalmente para a Itália, primeiro em Milão e depois em Veneza, onde se radicou e permaneceu até o final.

Armando foi pelo mundo construindo E.C.R.O.s (4), levou os grupos operativos para a Europa, onde são práticas muito presentes nos trabalhos em saúde mental, tanto na Espanha quanto na Itália. Em muitos países da América formou analistas no trabalho com grupos: México, Nicarágua, Havana e Costa Rica têm testemunhas de sua passagem e do seu trabalho. Na Espanha, junto com Kesselman, fundou a revista "Clínica e Análise Grupal". Em Madri, desenvolveu uma experiência criativa: os "corredores terapêuticos", modelo grupal de assistência comunitária. Em Veneza fundou o Instituto de Psicologia Social Analítico. Em Milão, no ano de 1981, fundou o "Centro Internacional de Investigação em Psicologia Social e Instituições".

Reencontrei Armando no Brasil na década de 80. Foram muitas as vezes em que veio fazer intervenções institucionais e trabalhos grupais em várias instituições de São Paulo e Belo Horizonte. No nosso Departamento, realizamos alguns encontros enriquecedores. Era o mesmo Armando de antes, com o seu humor, a sua conversa animada e a sua fala permanentemente cortada pela sua gargalhada barulhenta.

Nos últimos anos, foi forte o seu compromisso com a "Universidade de las Madres de Plaza de Mayo" e sua participação nos Congressos de Saúde Mental e Direitos Humanos.

Sendo consultor e supervisor em Saúde Mental e Drogadependência nas regiões da Emília Romana e do Vêneto, alternava-se entre a permanência na Itália e na Argentina.

Armando deixa saudades de sua coragem, do seu trabalho, de seu riso barulhento, verdadeiro canto à vida, de um momento de criatividade e efervescência da Psicanálise na Argentina.

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(1) Silvia Leonor Alonso é psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do curso de Psicanálise deste Instituto desde 1980.

(2) "Los síntomas de la salud". Org. Armando Bauleo. Editora Cuarto Mundo. Buenos Aires: 1974.

(3) O psiquiatra sul-africano Dr. David G. Cooper (1931-1986) foi um notável teórico e líder do movimento anti-psiquiatria, junto com R. D. Laing.

(4) ECRO: esquema conceitual, referencial e operativo (na teoria de Pichón-Rivière).

 




 
 
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