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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    06 Outubro de 2008  
 
 
ESCRITOS

Nazareth e o Corpo


ALESSANDRA MONACHESI RIBEIRO[1]

 

Quando faz seus trabalhos com miçangas, cristais, contas, giletes, agulhas, Nazareth Pacheco se corta. Recentemente, decidiu dar algum destino para esse sangue que sai de suas mãos e foi então que ele virou obra: fotografias de gotas de sangue, o vermelho vivo contra uma textura suave e branca de papel ou tecido que lhe serve de base. Ou então vidros pequenos, de farmacêutico, encontrados em antiquários, cheios de sangue, expostos em uma redoma de acrílico como jóias em vitrine de joalheria. Vidros fotografados, além das gotas, do fio por onde passa o sangue e, até mesmo, de uma seringa suja do mesmo, que nos relembra, em relação à série inteira, que a sedução e a repulsa não ficaram ausentes dos trabalhos de Nazareth, ainda essa vez.

 

Mas, para chegar ao sangue de sua exposição mais recente, a artista desliza dos objetos aprisionados autobiográficos para os objetos femininos, ou melhor, objetos usados no corpo da mulher. Espéculos, saca-miomas, DIUs: uma parafernália relativa à incidência da ação médica sobre o corpo - e não apenas o corpo da artista, mas qualquer corpo de mulher - faz emergir, das entranhas desse corpo para os espaços de exposição, objetos de tratamento alinhados e questionados em sua condição de tortura. Objetos comuns, cotidianos, de uso privado e íntimo, que jazem na escuridão dos mais recônditos buracos do corpo feminino aparecem, subitamente, iluminados e seriados na sua mais inócua e inocente aparência de objetos de composição. Mas, em sua repetição harmoniosa, há sempre algo que destoa e retorna aquilo que parecia pacificado ao seu aspecto de maior horror: um único espéculo de metal em meio a uma parede inteira de espéculos de acrílico, centenas de DIUs  jogados em uma bacia de alumínio, como a grande quantidade de espermatozóides a que os mesmos confrontam com resistência e morte, um saca-miomas entre saca-rolhas, suscitando a ação feita no interior do corpo da mulher, uma extração. Extração, extirpação, invasão e morte: Nazareth Pacheco parece tentar arrancar dos objetos comuns sua aparente inocência e sua condição apaziguadora. No mesmo movimento em que cria repetições e séries tranqüilizantes, perturba aquele que contempla sua obra com um cutucão, um porém, uma dissonância que cria brecha para que a dor e a repulsa voltem a se instaurar.

 

Daí para os objetos sedutores, basta um passo: colares e vestidos com suas contas e pontas, aprisionados em vitrines, inacessíveis ao toque, convidativos, proibitivos, doloridos e irresistíveis. Sua assepsia herdada dos tratamentos e objetos cirúrgicos já não lembra em nada a borracha marcada pela luta com o corpo, trazendo para o campo de uma perfeição quase perversa a tensão que a artista cria entre sedução e repulsa. O objeto sedutor/objeto-fetiche parece conjurar precisamente essa marca do corpo, do humano, dos traços de mulher postos nas obras anteriores que, agora, são limpas e límpidas como se pretendem as ações médicas. Um feminino retirado de suas excrescências como o fetiche retira os sinais da castração. Lâminas, agulhas, anzóis, giletes, cristais, miçangas e a mão da artista envolvida pelo fazer. Uma costura, uma renda, um bordado: a beleza ofusca de tanto brilho que quase engana dos perigos de cortes e furos. Os cortes e furos no corpo da artista - que viraram obra - ameaçam o corpo do espectador, refém do fascínio e da dor antecipada.

 

Repulsa e atração: tal é a polaridade com que a artista parece brincar e nos seduzir para seus objetos tão lindos, tão limpos, tão perfeitos e, ao mesmo tempo, tão inacessíveis. Não me toque, eles parecem dizer. Mas, se quiser arriscar... Que perigos jazem na superfície ou na intimidade desses objetos com os quais Nazareth nos presenteia e nos desafia?

 

O acrílico transparente brilha e é, para ela, a marca do desejo. Desejo que tem a ver com brilhos, ofuscamentos, atração daquilo que se revela no que se esconde. O brilho revela o objeto e esconde seu perigo, minimiza-o, ao mesmo tempo em que o coloca ainda mais em evidência. Trata-se de um jogo de presença e ausência? Ou de presença e presença?

 

A cadeira de acrílico transparente brilha e quase disfarça seu desconforto com tal ofuscamento. Mas uma das marcas dos objetos de Nazareth Pacheco é justamente que o olhar - único sentido que ainda pode circular com alguma segurança por suas obras - antecipa algum perigo: uma cadeira com saliências em seu assento, ainda que permita o sentar, não nos provê qualquer conforto. Melhor mantermo-nos afastados ou nos arriscarmos em seu contato?

 

Vestidos e colares são adornos femininos e é ao corpo e ao desejo feminino que eles apelam. Impossível deparar-se com uma vitrine tão sedutora e não sentir a tentação de aproximar-se, tocar, experimentar. Mas, frente às lâminas, ai! Quem dera ter coragem! O corpo se dói por antecedência enquanto o olhar fica prisioneiro daquilo que cobiça e que não pode ter, ainda que não possa mais deixá-lo. Os ‘objetos sedutores' de Nazareth parecem prender seu espectador do lado de fora, refugiando-se em redomas inacessíveis, mas, também, do lado de dentro, uma vez que o olhar fica cativo de seus brilhos, de seus perigos, da sedução e da repulsa. Tendo-os visto, é difícil se afastar.

 

Nas obras de Nazareth Pacheco, essa ambigüidade do que se dá a ver e não é visto também parece presente, de maneira a permitir-me afirmar seus objetos como fetiches. O brilho dos cristais que ofusca os olhos desvia - e aí está seu poder de sedução - do também brilho - metálico e frio - daquilo que fere e mutila. Os objetos cortantes não passam, contudo, despercebidos em meio à trama atraente tecida pelas mãos da artista. São notados - e daí seu poder de aprisionamento.  O que se dava a ver foi visto, o olhar acolhido pelas luzes da obra, em busca de repouso, assentou-se sobre facas, pontas, lâminas e se cortou. E, por ser olhar, não pode mais fugir do que o enganou - que, ao se revelar, não mais o liberta na medida em que não o pacifica.

 

O que se descortina no olhar aprisionado pela obra de Nazareth Pacheco? A meu ver, que a assepsia é necessária à sedução e que a dor é a condição de transformar pacificação em tormenta, desfazendo o engodo do encantamento limpo ao sujá-lo de sangue e de ferida, recolocando o corpo - agora pulsante - no âmbito da obra.

 



[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, doutoranda em teoria psicanalítica pela UFRJ, mestre em psicologia clínica pela PUC/SP.

 




 
 
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