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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    06 Outubro de 2008  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

Tarde músico-literária


ALGUNS ESCRITOS

 

Estes foram alguns dos escritos apresentados na Tarde Músico-Literária,  evento de encerramento das comemorações dos 30 anos do Instituto Sedes Sapientiae, ocorrido no dia 23 de agosto de 2008.   

 

 

ESPELHO CABRALINO

JOÃO RODRIGO OLIVEIRA E SILVA[1]

 

Pode um papel impresso

de tinta industrial

saber minhas tripas e gestos,

portar minha dor visceral?

 

Podem pontos, tipos, letras,

sombras no cadáver vegetal,

ferir o meu pobre equilíbrio,

aguar meu canal lacrimal?

 

Podem palavras nascidas

de um esforço cerebral

plantar em minha alma passiva

memórias do canavial?

 

- canavial que nunca vi,

mas que habito, assim, igual;

memórias que minhas, sem sê-las,

de terra, usina, verde e sol;

 

memórias da máquina-usina,

etílica e existencial,

que moendo, extrai, sem pena,

do doce o essencial -

 

Se isso pode, pode um nome,

rasteiro e horizontal,

brotar dessa tal paisagem

que é a do canavial.

 

Nome de pai e de filho,

de retirante e de local,

Severino é o justo nome

que engana por usual.

 

Pois que guarda um segredo,

sobre o poema e o mortal,

que o poema é pra se ver,

que vejo a mim ao ler Cabral.

 

 

ENVELHECER

RUBIA DELORENZO[2]

 

 

Quero fazer como ela: M. D.

Construir um lugar para escoar o fantasma da morte.

         As palavras, seu ritmo e sua desordem, hoje, me assustam.

         Tanto podem seguir o fluxo sanguíneo e explodir na escrita: isso é bom. Escapar da escrita vigiada. Enganar o algoz que pensa que, portando as chaves, me fará calar...

         Como podem profanar o pensamento, surgir torcendo os sentidos, desarticuladas. Quando é assim, tenho medo.

         Medo de que as palavras se tornem coisas: ciscos, pedras, restos esparsos sem vida. Pedaços de linguagem, vestígios longínquos do que se quis dizer.

         Desejaria tornar líquidas as palavras para que se esparramassem melífluas, banhando o que encontrassem à sua volta. Sobretudo esses bolsões vazios, antigos açudes, agora evaporados.

         E na mesma direção, mas em tom grave e de domínio, desejaria obrigar a língua a ultrapassar-se, estendê-la até tocar o seu limite, torná-la tensa como um elemento elástico.

         Hospedar nesses longos braços estirados, a angústia; alcançar o desespero e sossegá-lo.

         Atormentam-me as palavras intrusas

Não as que intervêm no lugar de outras, mostrando o desejo vivo querendo se intrometer. Mas esses cacos que desmancham as palavras tão queridas, que usamos por serem belas; esses cacos infiltrados que desfiguram, transformando o conhecido em pura extravagância. Essas partículas bizarras, por certo incômodas, que interrompem o ritmo da história que se conta, roubam nossa ilusão: a de que a morte chega de forma sabida e certa, idade, acidente, doença.

É que no desassossego das pequenas pausas, dos vácuos desabitados, desses tropeços ínfimos, por instantes, vivemos a experiência do nada. De nada ser nesse mundo, neste intervalo vazio ou ocupado por uma deturpação. Por um segundo, estou diante do nada: nada de palavra, nada de sentido, nada de mim. Prova cruel, suspensão alarmante, faz verter o pavor de me descontornar.

Isso que escrevo, sobre o que escrevo, pode muito bem ser o começo do fim do sujeito que sou. Mas pode ser também meu exílio, minha terra prometida, lugar de abrigo, um refúgio de luz.

Hoje, sou uma das que podem morrer. Antes, não. Morriam os outros: a mãe, a irmã, outros ainda. Quando transpiro e o coração dispara, já não sei mais se é corpo ou dor. Quando me dói a cabeça e fico fora do ar, já não sei mais o lugar desta dor: se é da alma, se é da carne... Duvido, incerta.

Estou lançada no exíguo espaço da existência.

O tempo é finito, agora sei.

 

 

 

 

 

PASSAGENS 

MARIA LAURINDA RIBEIRO DE SOUZA[3]

 

Por enquanto só o barulho

Ensurdecedor do silêncio

Por enquanto só o temor

De que o solo continue árido

Por enquanto só a dor

Da terra devastada

 

 

AUSÊNCIAS

 

Olhar sem ternura

É faca sem gume

Tesoura sem ponta

Sapato sem salto

Luva sem dedos

Dia sem brilho

Texto sem letras

Colo vazio

 

 

PASSAGENS

 

Nunca mais se soube da menina

                    Que, tardes a fio

Estendia os cotovelos sobre a mesa

                     E olhava o mundo

                     Com um jeito triste

 

 

 

VIDAS INDÓCEIS

LIA FERNANDES[4]

 

Nossa vida não cabe num Opala (2008), o primeiro longa do diretor Reinaldo Pinheiro, é um filme extremamente impactante, duro, sofisticado e ousado na linguagem, mas, sobretudo, carregado de complexidades pouco visíveis. O cineasta empresta suas lentes às dores e à revolta em estado bruto de uma família de classe média baixa assolada pelo vaticínio de um destino cruento e cruel. Se foge às estéticas (ou cosméticas) sedutoras da violência, da miséria e da obscenidade gratuitas (ao mesmo tempo em que contém todos estes elementos), podemos dizer que o filme de Reinaldo partilha de uma espécie de estética do transbordamento. Trata da dor daquilo que não cabe no mundo sem ficar dele excluído. Almeja dar voz a algo provocante, corrosivo, que incomoda, pede para entrar, vocifera, força, chora mas não alcança. É a vida e a dor transpassada e dilacerante dos irmãos Castilho - cruelmente condenados não à simples marginalidade, mas ao despojamento torturante, contínuo e convulsivo de toda possibilidade do sonhar - que o filme busca encenar.

 

Os irmãos Monk (Leonardo Medeiros), Lupa (Milhem Cortaz), Magali (Maria Manuela) e Slide (Gabriel Pinheiro) começam para nós sua saga na morte do pai - Osvaldão (brilhantemente interpretado por Paulo César Peréio) - que deixa aos seus quatro filhos uma herança de veneno, dívida e ódio tanto impagáveis quanto inapagáveis. Sórdido ladrão de carros e também da mãe destes filhos, misteriosamente desaparecida, é ao horror de seguir vivendo com esta chaga em brasa que este pai convoca seus filhos num desafio perigoso. A ele cada um responderá à sua maneira, dois no crime, os outros não, compondo o caleidoscópio destas vidas sentenciadas e indóceis ao seu destino, seja pela frustração amargurada de não ter podido transformá-lo (Monk), seja pela revolta explosiva, escarnecedora e sórdida de Lupa, seja pela resistência dolorosamente insistente de Magali ou pela susceptibilidade denunciante de Slide. Só que... no encalço destes irmãos estará Gomes (Jonas Bloch), gangster do desmanche e rival de morte de Osvaldão que, depois de sorver-lhes o pai, os persegue como cobra solapando-lhes todas as saídas e os empurrando, passo a passo, para o pântano terrível do abate.

 

Mas tudo no filme cheira à mais absoluta contradição. Espeluncas fedidas, degeneradas, linguagem do mais baixo calão, deboche e sordidez convivem com o exaspero genuíno destes irmãos (e mesmo do pai) do qual, também cada qual de seu jeito, todos sofrem em sua terrível condição de reféns "da ira de Deus" (conforme a maravilhosa letra da música-tema do filme).

 

Num roteiro muito original, o filme é atravessado por duas aparições: a do pai morto que volta para uma espécie de acerto de contas com cada filho e de uma misteriosa mulher (Maria Luisa Mendonça) que, seduzindo cada um dos irmãos, entoa uma espécie de mantra lancinante da partida de um parceiro que a largou na mais absoluta solidão. Cena atemporal, repetida e metafórica de todo o fundo da vida dos irmãos - e de nosso tempo - em que alguém, num grito de dor e de coragem, pede a um outro que não o abandone, que fique e lhe faça, por fim, companhia no amor.

 

Mas é no amor que se derrapa e ele não emplaca, não cabe, mesmo, no Opala. Neste trágico filme, há de tudo. Desejo de abraçar irmão (belíssima cena de Monk e Slide) de salvar irmão, de salvar-se no irmão, de lamentá-lo, protegê-lo, humilhá-lo. De eliminá-lo. Há irmão contra irmão. Como tubarões famintos e enlouquecidos pelo sangue uns dos outros, no ringue da mais genuína rivalidade de nossos tempos, todos os personagens - e também nós - percorremos um duro caminho no filme de Reinaldo.

 

Porém, a esperança e a maior delicadeza deste belo filme recai sobre o que nos inspira o impasse e a tragédia vividas pelo caçula - o fim da linhagem dos Castilho, sua dobra. De nome comovente - Slide - é ele que "meio vacilão, inseguro e escorregadio" abre para nós a possibilidade de pensar num novo mundo. Como fracassa nos furtos, na "pegada" do boxe e na sedução ferina com as mulheres, Slide pede que se corte, em seu vacilo - embora infelizmente sem o saber - a continuidade do vaticínio de estrago, morte e ausência legados pelo pai. E é no rastro de sua intermitência luminosa, impotente e sacrificial que se acena o verdadeiro atravessamento pedido a nós pelo filme. Ali onde a coragem de ficar com a ferida, a fragilidade e o perigo das mulheres se revelam enfrentamentos infinitamente mais difíceis do que qualquer confronto com a lei ou com a força. Saberemos ouvi-lo?

 

 


[1] João Rodrigo é psicólogo, aluno do curso de Psicanálise e professor do Departamento Reichiano do Sedes.

[2] Rubia Delorenzo é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[3] Maria Laurinda é membro e professora do Departamento de Psicanálise e autora de Violência (Casa do Psicólogo, 2005).

[4]  Lia Fernandes é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise da Criança e autora de O olhar do engano: autismo e Outro Primordial (Escuta, 2000).

 




 
 
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