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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    06 Outubro de 2008  
 
 
ESCRITOS

Nazareth Pacheco, a transgressão e a feminilidade


RENATA PULITI[1]

 

Este texto foi o comentário que fiz em mesa-redonda com Miriam Chnaiderman, Elaine Armenio e Paula P.S.N. Francisqueti, coordenada por Maria Elisa Pessoa Labaki, sobre o filme-documentário de Nazareth Pacheco dirigido por Miriam Chnaiderman. Ele foi exibido no encerramento da II Jornada Temática do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, "Interlocuções sobre o feminino: na clínica, na teoria, na cultura", em maio de 2007.

 

Gostaria de relembrar e novamente ressaltar a forma como a jornada se encerrou: com um filme que nos oferece imagens e a narrativa de uma obra, pela própria artista, que nos inspiram importantes reflexões sobre o feminino e a feminilidade.

 

Falar do feminino e da feminilidade em psicanálise significa, desde Freud e segundo o desenvolvimento de alguns autores[2], tocar no inominável, nas fronteiras da representação, nos ruídos da pulsão e seus murmúrios no corpo, murmúrios do originário e da pulsão de morte. A feminilidade rompe a organização fálica e a idéia de um originário masculino. Como desordem e imperfeição, ela estaria na origem da subjetividade.

 

A obra de Nazareth Pacheco nos remete ao território do corpo. Ali, o corpo real não está presente como na body-art ou na arte carnal de Orlan[3]. Mas é também um campo de batalha[4]. Nazareth Pacheco desliza de seu corpo real para outras cenas do corpo, com outros elementos. Não há sangue. Não há óperas cirúrgicas, como em Orlan[5]. Os elementos são rearranjados e ali, a ópera é sublime[6].

"Nada mais real do que este corpo que imagino, nada menos real do que este corpo que toco", diz Octavio Paz citado por Miriam em seu texto sobre Nazareth[7], que afirma, por sua vez, que a ausência do corpo (de Nazareth) presentifica nossos corpos.

 

Na cena contemporânea emerge um corpo que não mais representa e que orquestra um jogo multifacetado. Manipula materialidades e conexões. Nesse jogo de sentidos, o corpo interroga o sexo, a morte, a vida, o ser, replicando um campo ilimitado de experimentações[8].

 

Foucault, em Prefácio à Transgressão[9], diz que na experiência contemporânea a sexualidade encontrou uma vertente que teria esperado por muito tempo na sombra. Não liberamos a sexualidade mas a levamos, exatamente, ao limite. A sexualidade reconstitui, em um mundo onde não há mais objetos, nem seres, nem espaços a profanar, a única partilha ainda possível, porque autoriza uma profanação sem objeto, uma profanação vazia e fechada em si, cujos instrumentos se dirigem apenas a eles mesmos. Uma profanação em um mundo que não reconhece mais sentido positivo no sagrado seria, para Foucault, uma transgressão. A transgressão prescreve a única maneira de recompor o sagrado em sua forma vazia. A linguagem da sexualidade lançou-nos até uma noite em que Deus está ausente e em que todos os nossos gestos se dirigem a essa ausência em uma profanação que ao mesmo tempo a designa e se esgota nela. Nada é negativo na transgressão. Ela afirma o ser limitado e afirma o ilimitado no qual se lança.

 

Nazareth Pacheco nos defronta com o transgressivo e a linguagem ao infinito[10] da sexualidade, do erotismo, da pulsão e do feminino.

 

Suas mãos não param. Não descansam. Nazareth nos apresenta um permanente tecer da feminilidade ao redor do enigmático do corpo, da dor, da vida e da diferença. Tece ativamente, cria com o par ativo-passivo, masculino-feminino. Tece sua obra ao redor de objetos masculinos, como a lâmina de barbear. Seqüestra-os do mundo masculino e os reinscreve com traços femininos, como certas mulheres fazem com seus pelos, feminilizando seus corpos com objetos masculinos. Inscreve no espaço um corpo em suspensão, arriscando-se a ser rasgado ou perfurado ou a rasgar e perfurar, ou ainda intacto em seus adereços cortantes. Um corpo suspenso no ato e no tempo, no feminino e no masculino, ativo e passivo, ingredientes que fundam o jogo do desejo e do erotismo.

 

Mas ela também suspende o desejo, a sedução, o prazer. Ali o desejo pode tornar-se impenetrável, a sedução impossível e o prazer irrealizável. Do que se trata tudo isso?

 

Suas mãos recuperadas de anomalias agem em sua obra, perfurando e construindo, estrangulando e brigando. Mãos ativas e masculinas, paradoxos do feminino.

 

Uma de suas obras tem como título "O corpo como destino". Obra este corpo e interroga seus destinos. Multiplica garrotes cirúrgicos, réplicas do momento do pânico que, na obra, se desdobra em linguagem, em imagem... em traço. Encena situações-limite vividas em seu corpo, nas origens de todos nós.

 

Constrói "vitrines-arquivos", pequenas caixas dentro das quais apresenta receitas médicas, fotos, vidros de remédio, máscaras de gaze. Faz arquivos de si. Na arte contemporânea a evocação das memórias pessoais é vista como construção de um lugar de resistência e de demarcações de individualidade. O tempo contemporâneo perfura o espaço e substitui a objetivação cronológica por uma circularidade plena de efervescência e instabilidade[11]. Um tempo feminino?

 

Nazareth Pacheco evoca a agressividade de um corpo que foi muito agredido e invadido. Nossos corpos são invadidos e a partir de seu corpo-história, de seus arquivos de si, faz ecoar o que está em todos nós. Nesta constatação, figura o corpo invadido da mulher e faz obra dos espéculos vaginais, dos DIUS, dos saca-miomas. Opera radicalmente o unheimlich, como diz Miriam Chnaiderman. O originário, o arcaico, o não representacional.

 

Nazareth Pacheco não se deixa morrer ou assassinar por um corpo marcado por seus defeitos, pelas cirurgias precoces ou pela dor. Ela manipula lâminas sem se ferir, não se deixa arrebatar pelo isolamento solitário, coletiviza sua "bela" dor. E nos exibe as amarras de um erotismo dilacerante entre o possível e o impossível.

 

A feminilidade e seus enigmas ganharam espaço público e reconhecimento na arte contemporânea, na arte de Nazareth Pacheco. Uma feminilidade transgressiva que prescreve a única maneira de recompor o sagrado em sua forma vazia, afirmando o ilimitado no qual se lança.

 

Nazareth Pacheco com seus objetos cortantes e perfuradores, maciços, cirúrgicos e torturantes dilacera a idéia do corpo perfeito, do desejo realizável, do prazer indolor, da imagem unificada, bela e fálica.

Somos colocados frente à obra e derivamos em nossa solidão. Somos olhados pelo objeto artístico sem podermos lançar mão de um sentido protetor[12]. Ópera sublime.



[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[2] Ver Joel Birman em Gramáticas do Erotismo. A feminilidade e as suas formas de subjetivação em psicanálise.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

[3] Orlan, artista plástica francesa, redigiu o "Manifesto da arte carnal" e se submeteu a inúmeras cirurgias plásticas para transformar sua imagem. Seu trabalho foi fonte de inúmeras reflexões no artigo "O corpo: campo de batalha contemporâneo", publicado no livro Figuras Clínicas do Feminino no mal-estar contemporâneo, São Paulo: Escuta, 2002.

[4] "Seu corpo é um campo de batalha", frase cunhada por Bárbara Kruger, artista plástica, nos anos 70, que inspirou o título do artigo citado no item anterior.

[5] Ver artigo citado no item 2.

[6] Remeto ao artigo de Sandra Autuori "Lacan e a arte - Catando migalhas", apresentado no IV Encontro Latino Americano dos Estados Gerais da Psicanálise, em 2005, onde ela trabalha alguns desenvolvimentos de Lacan sobre a arte, especialmente no item Mais além do belo: o Sublime, onde nos mostra que na arte não há a contemplação agradável e sim a experiência de uma dilaceração.

[7] PACHECO, Nazareth. São Paulo: Caio Reisewitz e Rômulo Fialdini. São Paulo: D&Z, 2003. Livro lançado durante a instalação da artista na galeria Brito Cimino.

[8] Ver os artigos de Kátia Canton, docente, curadora e coordenadora da divisão de educação do MAC, sobre a arte contemporânea.

[9] M. Foucault, "Prefácio à transgressão" em Ditos e Escritos vol. III, Ed. Forense Universitária, R.J.

[10] Faço aqui referência a outro artigo de M. Foucault, "Linguagem ao infinito" da coleção citada acima, vol. III, onde, lembrando Homero, afirma ser possível que "os deuses tenham enviado os infortúnios aos mortais para que eles pudessem contá-los, e que nesta possibilidade a palavra encontre seu infinito manancial; é bem possível que a aproximação da morte, seu gesto soberano, sua proeminência na memória dos homens cavem no ser e no presente o vazio a partir do qual e em direção ao qual se fala" (pg. 46).

[11] Ver item 7.

[12] Ver o item 5.




 
 
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