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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    07 Dezembro de 2008  
 
 
ESCRITOS

O que vemos e o que nos olha na arte contemporânea: olhar o sonho e o trabalho do sonho (1)


SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO (2)

A Arthur Hyppólito de Moura (3), passador de psicanálise


Os tons terrosos te convidam a olhar de perto. A grande tela à sua frente diz areia, poeira, sujeira, textura, terra. Sulcos, manchas, marcas, a impressão de um assoalho.

Você se afasta um pouco e avista parte de uma sala, o recorte de uma sala; em perspectiva, uma porta aberta dá para uma porta aberta que dá para uma porta aberta...

As portas não levam a lugar algum, e você está sozinho, imerso na tela. Siderado.

A monitora se aproxima e assopra no seu ouvido: "Impressão de assoalho". Ela disse impressão de
assoalho? Está brincando... Sabe o que você acha que viu? Você viu. Você teve a impressão de um assoalho? É a impressão de um assoalho. Você sorri. A identidade entre o efeito que a obra produz em seu leitor - impressão - e sua materialidade - impressão -, pelo efeito do deslocamento, do ‘eu ter impressão' para ‘isso ser impressão', da sensação ao registro, da sideração à luz, produz um prazer próprio à fruição de um chiste.

Imagem difusa, palavra polissêmica e deslizamento de sentido nos aproximam da experiência onírica: foi pela porta do chiste que adentrei a obra como sonho.

Se aqui o paradigma do sonho interessa, é que a obra de arte contemporânea, em sua organização cênica, é igualmente associal (4): nada há nela a comunicar a ninguém, e ela, de fato, evita ser compreendida, para assim despertar a linguagem.

A obra-sonho é efeito do movimento do artista e das artimanhas do tempo: Daniel Senise estendeu, sobre o chão de tábuas de madeira, a face de uma tela pintada a fresco, para depois de um tempo erguê-la, num decalque da memória do piso de seu atelier: a tinta da tela condensou os restos daquele e de outros dias, poeira do mundo e partículas soltas de obras anteriormente feitas.

O recorte da sala que você vê foi feito de recortes desta tela decalcada, aos quais Senise deu perspectiva... em torno do re-corte, novo deslizamento de sentidos, da imagem percebida às suas condições de produção.

Você se interessa pelo que a monitora tem a dizer, e fica sabendo que o atelier de Senise funciona onde antes havia uma antiga fábrica de pianos - piano factory (5) é o nome da obra. Você seria capaz de escutar a música da tela.

Você se encanta com a delicadeza da monitora que lhe deu tempo para poder alcançar certa proximidade com a obra e, a partir daí, poder contar com a interferência dela. A consideração da monitora nos lembra que o tato é um princípio estético cujo valor não escapou a um Freud interessado em discutir a ética da psicanálise em suas interfaces (6).

Então me lembro das tábuas corridas de minha infância, e me vejo irremediavelmente convocada pelo trabalho do artista que amalgama passagens, labirintos, espelhos, aberturas, sonhos, vãos. De volta pra casa, vou correndo buscar aquela foto antiga, em que meu piso de madeira terminava na luz do ar livre.

Didier-Weill propõe pensar a arte como uma das experiências através das quais a sociedade restitui ao adulto a possibilidade de reatar com o espanto, espanto que o abandonara desde que deixou de ser a criança que se espantava diante de tudo (7).

Uma porta, outra porta, outra porta. Ao fim da produção deste texto se cumpriu uma nova impressão, jato de tinta sobre o papel em que registrei essas minhas palavras. Que impressões se produzirão em nossos leitores (8) por este trabalho do sonho?

Na arte, o sonho é obra aberta, convocando sujeitos ao acesso e utilização de seu "umbigo cultural", ao qual René Käes (9) assimila a invenção, feita por índios norte-americanos, dos filtros de sonhos - uma cobertura em forma de teia que, colocada sobre a tenda, afasta os pesadelos e deixa passar os sonhos, numa comunicação essencial, tensa de equilíbrio entre vida e morte.

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(1) Intervenção na mesa-redonda dos grupos de Arte e Psicanálise (SP) e Estética e Psicanálise (RJ) do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, em 19 de junho de 2008.

(2) Psicanalista. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, da equipe clínica de Projetos Terapêuticos e da equipe editorial deste Boletim Online.

(3) Dores do Indaiá, 1942 - São Paulo, 2008.

(4) Sobre a contraposição entre chiste e sonho, pelo caráter associal deste, cf. Freud, Os chistes e sua relação com o inconsciente, 1905.

(5) Senise, The Piano Factory III, 2002.

(6) Cf. Freud, Psicanálise silvestre, 1910.

(7) A outra experiência seria o esporte. Cf. Didier-Weill, A. Os três tempos da lei. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 18.

(8) "ouvintes", no original.

(9) Cf. Käes, A polifonia do sonho. Aparecida, São Paulo: Idéias & Letras, 2004. P. 281.




 
 
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