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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    08 Abril de 2009  
 
 
O MUNDO, HOJE

Breves considerações sobre a “patologização” da infância


DANIELA DANESI (1)


Em 22 de Janeiro de 2009 li uma reportagem no jornal Folha de São Paulo sobre a criação de um instituto que terá como principal objetivo a avaliação de técnicas (dentre as quais terapia cognitivo-comportamental e ioga) a serem aplicadas em crianças brasileiras como forma de prevenir doenças mentais na vida adulta.

Ainda segundo a matéria, a idéia do novo instituto é a de, principalmente, mapear por meio de estudo epidemiológico os transtornos infanto-juvenis em mil municípios brasileiros.

Fazem parte deste novo instituto 11 universidades que, em um trabalho de pesquisa conjunto, pretendem desenvolver ações "para detectar e tratar na infância transtornos psiquiátricos que só são diagnosticados na vida adulta". Este objetivo baseia-se em estudos internacionais que apontam que a maioria dos transtornos mentais começa na infância. Relembra ainda que, de acordo com um levantamento da SBP, há 5 milhões de crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos que têm sintomas de transtorno psiquiátrico.

O artigo encerra-se com o depoimento de um professor de psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, apontando que existem hoje no Brasil em torno de 1,5 milhões de crianças e adolescentes entre 6 e 18 anos com déficit de atenção, mas apenas 68 mil estão medicadas, e conclui: "em termos de Saúde Pública, temos no Brasil um subdiagnóstico e não um superdiagnóstico".

Este artigo trouxe-me uma série de inquietações, como por exemplo: quem financia as pesquisas em que estes dados tão aterradores são encontrados? De onde vem o dinheiro para o sustento de um instituto que trabalha com a importante idéia de prevenção e, no entanto, dirige seus esforços para o escopo da cura de transtornos mentais, por serem cada vez mais precocemente encontrados ao longo do desenvolvimento de um ser humano?
Compartilho da idéia de se concentrarem esforços, quando se trata de saúde mental, no campo da prevenção e, portanto, no cuidado com a primeira infância.

E é justamente sobre este ponto fundamental que surge toda uma série de divergências, a respeito do qual a psicanálise leva-nos a traçar outras considerações, denunciando o que estas propostas podem ter de mais pernicioso: a domesticação e a alienação do ser humano.

Será que esta proposta de cura, ou melhor, a tentativa de anulação de todo e qualquer tipo de sofrimento não traz em si a falsa idéia de que é possível atravessar a infância como um tempo feliz, livre de toda angústia, conflito e dor (experiências estas inerentes à constituição psíquica de todo ser humano)?

Com isto não quero desconsiderar o fato de que também encontramos em algumas crianças sintomas que não são relativos ao processo de constituição psíquica mas, ao contrário, são impeditivos do mesmo e promovem muito sofrimento, merecendo um campo de cuidados e tratamento.

A partir destas considerações, o que podemos então pensar em termos de prevenção?

Em primeiro lugar, a própria palavra prevenção nos fala de ações que devem ocorrer antes da instauração de uma patologia. Portanto a prevenção não pode se fazer por meio de uma reeducação, treinamento de comportamentos ou medicalização e sim através do cuidado e investimento na criação de redes de sustentação dos vínculos, pois é na relação com o outro que o ser humano se constitui.

Será que a Medicina e a Educação não precisariam concentrar mais esforços no cuidado com estes vínculos, no resgate da subjetividade, na possibilidade de pensar o ser humano como constituído a partir de uma história? Será que o grande foco não deveria recair no cuidado com os enlaces sociais, que possibilitam a criação de uma rede simbólica que promova a contenção e elaboração das experiências psíquicas?

Pensar em prevenção, então, nos obriga a desviar o foco do campo da patologia para investir o campo do social.

Neste mesmo dia também li uma pequena nota do escritor português José Saramago sobre a emoção que lhe causou a eleição de Barack Obama para a presidência dos Estados Unidos. Transcrevo aqui suas palavras (2): "Donde saiu este homem? (...)Quando pergunto donde saiu Barack Obama estou a manifestar a minha perplexidade por este tempo que vivemos, cínico, desesperançado, (...) ter gerado uma pessoa (...) que levanta a voz para falar de valores, de responsabilidade pessoal e colectiva (...)." E prossegue: "No seu discurso deu-nos razões para que não nos deixemos enganar. O mundo pode ser melhor do que isto a que parecemos ter sido condenados. No fundo, o que Obama nos veio dizer é que outro mundo é possível".

Pode parecer um salto grande demais entre um artigo e outro, porém, no jogo da associação livre, Saramago forneceu-me a resposta do que considero a melhor aposta ao pensarmos em prevenção: o resgate da esperança, o investimento nos laços sociais, a aposta no futuro, na ética, no cuidado com o outro.

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(1) Daniela Danesi é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do curso Clínica Psicanalítica:Conflito e Sintoma.
(2) In "Donde?", 20 de janeiro de 2009. Fonte: O caderno de Saramago. http://caderno.josesaramago.org/




 
 
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