PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    09 Junho de 2009  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

Isaías Melsohn um poeta da fala discursiva


BELA SISTER(1)

"Todas as almas nobres têm como ponto comum a compaixão".
(Friedrich Schiller)

"A compaixão é que nos torna verdadeiramente humanos e impede que nos transformemos em pedra, como os monstros de impiedade das lendas".
(Anatole France)

Um apaixonado pela vida. Assim era Isaías Melsohn. A paixão guiava sua maneira de apreciar a pintura e a arte sacra brasileiras, a música erudita e a tapeçaria oriental, a boa comida e a cachaça. Viajar era outra de suas paixões: percorreu países pelo mundo afora procurando conhecer tudo o que podia ser visto em cada lugar, sempre com Hinda, sua companheira de vida.

Com afã mergulhou no estudo e na compreensão da dimensão do humano, e com ousadia questionou conceitos fundamentais da teoria psicanalítica, tornando-se fundador - segundo Fabio Herrmann - da tradição de um pensamento psicanalítico brasileiro(2).

De formação positivista, defensor do caráter científico da psicanálise nos idos de 1954, Isaías veio a processar verdadeira reviravolta, derivando a fundamentação do trabalho analítico para o poder mágico e significativo da palavra.

As principais linhas de pensamento que absorveram Isaías Melsohn foram a crítica que a filosofia e a psicologia modernas fazem à noção de percepção, a fenomenologia de Husserl, as contribuições de Ernst Cassirer e Susanne Langer, a lingüística de Jakobson. A partir delas, repensou os conceitos de percepção e representação inconsciente na psicanálise, abraçando a distinção entre a função expressiva e representativa da consciência, e valorando os aspectos não- discursivos da linguagem.

Seguindo Cassirer, Isaías considerava que a consciência se constitui num verdadeiro órgão de produção de mundos objetivos diversos - mito, sonho, neurose, ciência, senso comum... - conforme às diversas formas simbólicas: discursivas e não-discursivas.

Para ele, o símbolo não-discursivo, carregado de sentido e não de significação - pura presença e não representação - é o veículo de expressão do universo emocional.

Isaías não pretendeu criar uma nova teoria ou abordar questões psicanalíticas mais específicas. Seu interesse central foi sempre "pensar os grandes problemas psicológicos suscitados pela psicanálise e que fazem parte dos temas da psicologia geral", assim como pensar a relação direta entre suas formulações no domínio da teoria e o seu trabalho clínico com os pacientes e com os analistas nas supervisões(3).

Abrir a sensibilidade para a apreensão humana foi sua preocupação principal, ao transmitir suas idéias em seminários e supervisões. "A apreensão do outro é primeiro um estremecimento, que depois toma o caminho da palavra"(4). Mas não existem fórmulas para alcançar o valor expressivo das palavras e o sentido dos movimentos afetivos do paciente na sessão. Isaías indicou apenas uma regra: o analista deve anular sua estrutura individual para poder se abrir e tolerar o absolutamente diferente. Viver o estremecimento, abrir-se para o caos, mergulhar no informe, para depois examiná-lo e rearticulá-lo, buscando novos sentidos a partir de sua experiência e de seu conhecimento teórico. O que não é nada fácil! Mas assim como é possível treinar nossos ouvidos para a escuta da música ou treinar nosso olhar para a apreensão estética, o analista pode aprender a se voltar para o clima afetivo e intencional da fala do paciente, para o valor expressivo presente em todo tipo de discurso. Voltar-se para o dizer do paciente, para o poder imagético de suas palavras, sua melodia, pausas e reticências, repetições e oposições, apreensíveis através da atenção aos eixos horizontal e vertical do discurso e suas conexões com outros momentos da vida do paciente.

Foi com Irmã Pick, psicanalista inglesa, que aprendeu a dar atenção à transmissão mútua de mensagens afetivas entre analista e analisando. Isaías considerava de fundamental importância levar em consideração os efeitos e repercussões da fala do analista no paciente e o cuidado que o analista deve ter para que sua intervenção não iniba a espontaneidade da produção imaginativa do paciente nem estimule sua identificação ou submissão a supostas expectativas do analista.

O acolhimento emocional do analista ao sofrimento do paciente, a suas aspirações e angústias, à sua dor ou à sua alegria, é de fundamental importância para a compreensão do que acontece na sessão, e sua elaboração deve ser veiculada de maneira igualmente receptiva. Isso é que vai possibilitar ao paciente a vivência de novas formas simbólicas da sua vida afetiva - uma transformação no seu modo de se relacionar afetivamente com o mundo e na sua maneira de pensar sobre o seu próprio sentimento. Daí pode advir uma ampliação da consciência de si.

Conheci Isaías Melsohn nos anos de 1970, na casa de Regina e Boris Schnaiderman - pais de Miriam, minha amiga-irmã -, e mais tarde participei de seminários clínicos em seu consultório. Fui tocada por sua afinada escuta clínica, por sua singular personalidade e expressiva oratória. Figura ímpar: polêmico e polemista. Piadista, detalhista, curioso, acolhedor.

Anos mais tarde, entre 1992 e 1995, Marilsa Taffarel e eu recolhemos, através de inúmeras conversas, parte de sua rica biografia, assim como aspectos principais de seu pensamento teórico e clínico. O resultado foi o livro Isaías Melsohn: A psicanálise e a vida, publicado pela Editora Escuta em 1996. Por que o fizemos? Porque até então apenas alguns poucos artigos seus haviam sido publicados - sua transmissão se dava predominantemente de forma oral, em seminários, cursos, conferências, supervisões. Neles como que tocava sempre nas mesmas teclas, apontava sempre para as mesmas questões. Mas nunca da mesma maneira. A cada vez, sua fala adquiria feições diferentes, modos expressivos diversos que desvelavam intenções e articulações diferentes na sua maneira de pensar. Como transformar em escrita um discurso tão impregnado de valores expressivos, como era o de Isaías ao expor suas idéias? Como transmitir em palavras a riqueza e a complexidade da vida emocional humana? Este era seu principal empecilho, além de objeto de seu rigor extremado. Somente mais tarde publicou um livro de sua autoria.

Nascido na Polônia, de origem judaica, ainda pequeno, com cinco anos, chegou ao Brasil com sua família, que procurava melhores condições de sobrevivência.

Menino levado, rebelde, irriquieto, foi mau aluno até entrar na Escola Americana Mackenzie, que lhe abriu o contato afetivo com os estudos. Concluiu o ensino médio no disputado Ginásio do Estado, uma das melhores escolas na época, e realizou seus estudos superiores na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Sensível às questões políticas e sociais do país, em 1943, iniciou sua militância política no Partido Comunista do Brasil, quando este ainda era um partido clandestino. Décadas depois, foi solidário com aqueles que militavam na resistência à ditadura militar.

Formado em Medicina, passou a trabalhar no Hospital Psiquiátrico do Juqueri, onde tomou parte nos movimentos que denunciavam abusos administrativos e as péssimas condições de vida dos pacientes ali internados. Neste hospital conheceu seu mestre em psiquiatria e psicopatologia, Aníbal Silveira, um dos maiores nomes da Psiquiatria brasileira, e com ele chegou a lecionar, anos mais tarde, no Departamento de Psicologia da USP. Foi com Spartaco Vizzotto e Mario Robortella, colegas de trabalho no Juqueri, que fundou em 1956 a Clínica de Repouso Parque Julieta, uma clínica psiquiátrica aberta, inovadora para a época.

Em 1945, ainda no último ano da Faculdade de Medicina, foi admitido como candidato na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Fez sua análise com a dra. Adelheid Koch e supervisão com Theon Spanudis. Sua formação se deu ao mesmo tempo em que a psicanálise se institucionalizava no Brasil. Iniciou sua clínica como psicanalista em 1948 e por muitos anos exerceu atividade docente no Instituto de Psicanálise da SBPSP. Em 1960 tornou-se psicanalista didata.

Inquietações de ordem existencial e epistemológica, questões relativas à teoria do conhecimento, à vida mental, aos fundamentos da psicologia psicanalítica levaram-no a freqüentar, no início dos anos 1950, os seminários de filosofia coordenados por Anatol Rosenfeld, que se estenderam por mais de vinte anos. Vários de seus amigos pessoais como Regina e Boris Schnaiderman, Guita e Jacó Guinsburg, Rita e Leo Seincman, além de Hinda, fizeram parte do núcleo permanente desse grupo. Dentre eles muitos vieram a se destacar na vida cultural paulistana. Esses seminários serviram para Isaías manter uma disciplina nos estudos e foi pela mão de Anatol que lhe chegou o livro Filosofia em nova chave, de Susanne Langer, onde "descobriu" Ernst Cassirer, cuja leitura marcou uma virada na sua reflexão crítica sobre a psicanálise.

Em 1971, viajou para Londres, como membro visitante da Sociedade Britânica de Psicanálise, e ali fez um período de análise com Hanna Segal e participou de seminários e supervisões com diversos analistas da escola kleiniana.

O contorno de suas concepções já se delineava há algum tempo.

"Crítica do conceito de inconsciente em psicanálise", trabalho apresentado em reunião científica da SPBSP em 1973, foi o primeiro texto em que expôs suas idéias em relação à teoria psicanalítica.

Em 1976, esteve junto com Regina Schnaiderman, Roberto Azevedo e Fabio Herrmann na fundação do "Curso de psicoterapia de orientação psicanalítica" do Instituto Sedes Sapientiae, primeiro curso de formação independente da instituição oficial de psicanálise - a SBPSP, ligada à IPA. Foi pressionado, assim como todos psicanalistas da SBPSP que ali davam aula, a abandonar o curso, considerado "paralelo", o que supostamente contrariava a restrição ao ensino fora da Sociedade. A maioria saiu quase que de imediato do curso. Fabio Herrmann e Roberto Azevedo continuaram. Ameaçado de expulsão, Isaías permaneceu por pouco tempo mais, e depois passou a colaborar quando convidado para dar aulas ou supervisão. Concentrou sua luta por mudanças nos estatutos da SBPSP, processo que levou muitos anos e incluiu contatos com analistas dirigentes da IPA. De acordo com seus princípios, sempre batalhou por uma orientação mais aberta e democrática na Sociedade.

Seguiu com sua atividade clínica e docente, ministrando seminários e dando supervisões. Apresentou trabalhos em congressos nacionais e internacionais.

Recebeu em 1991 o título de "Notório Saber", outorgado pela Congregação do Instituto de Psicologia da USP, e finalmente, em 2001, publicou seu livro Psicanálise em nova chave pela editora Perspectiva, expondo ao debate as suas contribuições. Em resenha deste livro, publicada no jornal Folha de São Paulo, o filósofo Bento Prado Jr. assinala a "terceira via" percorrida por Isaías, entre a concepção kleiniana do imaginário e a conceituação lacaniana do simbólico.

Isaías faleceu aos 88 anos, devido a uma parada cardíaca. Até então, mantinha-se ativo, à sua maneira. Sensibilizou e instigou gerações de analistas, dentro e fora da SBPSP, ao longo de toda a sua vida.

É com um misto de tristeza e ventura que esboço essas linhas sobre Isaías, pois não posso deixar de reconhecer o imenso privilégio que tive em conviver com ele, e a enorme gratidão por tudo que com ele aprendi.

.................................................................

(1) Bela M. Sister é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do Grupo de entrevistas da revista Percurso e da equipe da Clínica Psico-social Beit Yaakov. Co-autora de Isaías Melsohn: A psicanálise e a vida (Escuta, 1996).

(2) Bela M. Sister e Marilsa Taffarel, Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida, São Paulo: Editora Escuta, 1996, p.13.

(3) B. M. Sister e M. Taffarel, op. cit., p.171

(4) B. M. Sister e M. Taffarel, op. cit., p.167




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/