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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    09 Junho de 2009  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

Isaías e a música do mundo, escutando a Quinta de Beethoven pela vida afora


MIRIAM CHNAIDERMAN(1)

Era imenso o encantamento de Isaías com a música clássica. Assim como era imenso seu encantamento com as artes, de modo geral. Mas o paradigma da música clássica norteou sua clínica e seu jeito de estar no mundo. Essa música sem palavras, que toca o coração de modo direto, sem meandros. É assim que Isaías propõe que escutemos nossos pacientes: apreendendo seus movimentos afetivos para além de uma fala, na busca da pura expressividade, na apreensão de consciências pré-reflexivas. Isaías sempre se posicionou contra um pensamento metafísico dentro da psicanálise, que proporia um inconsciente conteudístico, armazenando histórias e constituindo uma essência a ser desvelada...

Não é fácil escrever sobre Isaías Melsohn ainda sob o impacto de sua morte. Fui muito próxima a Isaías, para além do grande mestre e reconhecido psicanalista. Minha vida foi permeada por esses personagens da vida cultural brasileira, minha família sempre aconchegou movimentos da vanguarda, sempre foi parte do que acontecia em São Paulo. Meu pai, em seu trabalho com a literatura russa, fez com que nos aproximássemos dos concretistas e de toda uma vanguarda brasileira. Minha mãe, em sua imensa curiosidade, era grande companheira nas minhas indagações na filosofia e, saudavelmente, disputávamos os livros... Ser psicanalista, nela, era uma consequência natural de seu encantamento com o ser humano. Era sólida a formação que tivera com Anatol Rosenfeld, em um interessante grupo que se reunia toda segunda-feira na casa de Guita e Jacó Guinsburg e que durou mais de 20 anos. O grupo começou a se reunir no início dos anos 50. Por esse grupo passaram grandes personagens como Bento Prado, Amazonas Alves Lima, Roberto Schwarz e Sábato Magaldi, entre outros. Mas Rita e Leo Seincman, Isaías e Hinda Melsohn, Guita e Jacó Guinsburg, Regina e Boris Schnaiderman constituíam o núcleo fixo. Sei que estudaram Kant profundamente e que foi Anatol Rosenfeld quem deu a Isaías o livro que depois seria seu guia, o "Filosofia em Nova Chave" de Susan Langer.

Mas, muito antes de Kant, bem quando esse grupo começou a se reunir, eu já convivia com Hinda e Isaías. Meus pais contam que me deixavam com eles logo que vieram morar em São Paulo, eu devia ter dois ou três anos. Meus pais, Hinda e Isaías, Guita e Jacó, Leo e Rita, Sula e José Terepins eram grandes amigos, uma família formada na militância no Partido Comunista, na busca por mundos melhores, na busca da música e da arte. Portanto, a figura de Isaías Melsohn permeou minha vida de forma marcante. Isaías era sempre um apaixonado, em tudo que fazia. Tinha uma voracidade pela vida, em todos os sentidos. Era capaz de atravessar a cidade atrás de um sanduíche de mortadela ou de uma carne qualquer que tinha vontade de experimentar. Sua inquietude era permanente. Sempre queria discutir suas teorias, queria sempre saber o que estavam me ensinando quando comecei a cursar filosofia junto com psicologia.

Isaías era o grande interlocutor de minha mãe, fato que ele reconhece no lindo livro que Bela Sister e Marilsa Taffarel organizaram: Isaías Melsohn, a psicanálise e a vida (Ed. Escuta, 1996). Acompanhou-nos em vários momentos difíceis da nossa vida. Eu, sabendo do carinho que minha mãe tinha por ele, recorri a ele muitas vezes, quando, em plenos anos 70, passamos por momentos de muito sofrimento em função da repressão política que assolou de dentro a minha família.

Lembro muito das casas de Hinda e Isaías: os objetos de arte sempre tão lindos, a generosidade no receber, o pedido para que escutássemos esse ou aquele trecho de algum Beethoven ou Bach.

Isaías foi quem incentivou minha mãe para que ela se tornasse psicanalista. Mas a militância como psicanalista, em Isaías, se dava junto à Sociedade Brasileira de Psicanálise, ou à IPA. Não conversei diretamente com ele sobre isso. Apenas sei de sua luta pela mudança nos estatutos em relação à possibilidade de qualquer analista se inserir em contextos mais amplos de ensino e difusão do pensamento psicanalítico. Sua luta era dentro da Sociedade de Psicanálise. Por mais que tivesse sido hostilizado e discriminado, enquanto psicanalista interessado em filosofia... E muito embora sempre tivesse grupos de supervisão e seminário clínico formado por analistas das mais diversas origens.

Acho que Isaías Melsohn teve que pensar a questão da pertinência institucional a partir do momento em que minha mãe teve sua entrada na Sociedade Brasileira de Psicanálise barrada. Era um momento em que Isaías era questionado em seu interesse por Cassirer, pela fenomenologia, como se psicanálise e filosofia se colocassem em territórios absolutamente distintos. A noção de inconsciente não podia ser questionada e muita gente dizia que Isaías era filósofo e não psicanalista. Hoje sabemos que tudo isso mudou e que Isaías conseguiu um espaço de reconhecimento dentro da Sociedade.

Isaías Melsohn batalhou muito para que minha mãe pudesse fazer a formação dentro da Sociedade. Não conseguiu. Então, deu todo respaldo para que ela pudesse fazer uma formação independente. Aí está a origem de todo um rico movimento que vai redundar na formação do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

Quando minha mãe não foi aceita para formação na Sociedade Brasileira de Psicanálise, depois de um momento de forte depressão, ela formou um grupo para ler Freud. Betty Milan e Fábio Herrmann passaram a se encontrar em minha casa para ler Freud. Depois o grupo se ampliou, eu passei a participar, a Marilsa Taffarel, a Marilene Carone, Sandra Moreira, Bela Sister, entre outros. Foi quando, entre os pilares de nossa formação, freqüentamos um seminário clínico semanal com Isaías Melsohn. Grupo que até hoje marca a minha escuta clínica. Esse mesmo núcleo depois formaria o Curso de Orientação Psicanalítica quando o Instituto Sedes Sapientiae passou a funcionar, em 1976. Esse nome, "Curso de Orientação Psicanalítica" teve tudo a ver com uma certa orientação que veio de Isaías Melsohn. Isaías pensava que, no Sedes, haveria a oportunidade de utilizar o conhecimento psicanalítico para formar terapeutas e não psicanalistas. Psicanalistas deveriam ser formados pela Sociedade de Psicanálise. Isaías tinha como modelo a Clínica Tavistock, que usava a psicanálise para terapias familiares, grupais, etc.

Assim descreve Isaías Melsohn sua crise com a Sociedade em função do Sedes:

"O auge da crise acontece em 1976, com a formação do Curso de Orientação Psicanalítica que Regina Schnaiderman, Roberto Azevedo, Fabio Herrmann e eu organizamos no Instituto Sedes Sapientiae. Minha proposta era que o curso incluísse as aplicações de psicologia dinâmica e psicanalítica no campo da psicoterapia individual, familiar, de grupo e de casal, visando atender objetivos sociais mais amplos, como acontece na Clínica Tavistock de Londres". (in Isaías Melsohn, a psicanálise e a vida, p. 148).

Naquele momento foram convidados para integrar o curso vários analistas da Sociedade de Psicanálise de São Paulo. E todos foram pressionados para sair, tendo como ameaça o não prosseguimento de suas carreiras dentro da Sociedade. Isaías, Fábio e Roberto Azevedo permaneceram. Mas Isaías pensava que a questão da formação de psicanalistas deveria ser uma bandeira de luta dentro da Sociedade, e não fora. E foi de dentro da Sociedade que lutou para que os psicanalistas pudessem ter outras inserções na nossa sociedade.

Isaías logo se retirou do curso do Sedes, não acompanhou todas as nossas transformações. Mas foi também um lutador para que o Curso de Psicanálise pudesse existir. Apenas achava que faltavam espaços para uma formação mais ampla, menos restrita ao ensino mais clássico da psicanálise.

Hoje sabemos da importância nacional que nosso curso teve, enquanto primeiro núcleo de formação de psicanalistas fora da IPA. A vinda dos psicanalistas argentinos, com sua história de luta, foi parte importante do processo que nos levou a assumir a formação como sendo de psicanalistas. Sabemos o quanto fomos precursores e o quanto fomos marcados por tudo isso.

Isaías Melsohn deve ter ido embora muito bravo, pois sempre queria mais... Mas foi encontrar tantos grandes interlocutores, que, agora, o céu deve estar bem barulhento, com uma enorme discussão acalorada sobre a Teoria dos Campos, de Fábio Herrmann, minha mãe com o último volume lançado da obra de Lacan e Isaías buscando mostrar que tudo isso são novos nomes para tudo o que Cassirer pensou em sua obra "As formas simbólicas". Marilene Carone vai estar rindo e pensando na nova tradução que estão fazendo da obra de Freud.... Emilio Rodrigué, com seu copo de uísque embaixo dos coqueiros de Itapoã, vai estar abençoando todos. Tudo isso com a Quinta de Beethoven ao fundo. No rosto do Isaías, aquele sorriso maroto de que tanto vamos lembrar, aquela cara de moleque correndo atrás de alguma coisa bem gostosa....

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(1) Miriam Chnaiderman é psicanalista, membro e professora do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e autora de Ensaios de Psicanálise e Semiótica. Além disso, é cineasta e dirigiu documentários premiados, como Dizem que sou louco e Gilete Azul.




 
 
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