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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    09 Junho de 2009  
 
 
O MUNDO, HOJE

Uma visita estranha e familiar – notas sobre a morte na contemporaneidade


NAYRA GANHITO(2)

Ninguém ignora nosso último destino, mas a experiência da morte sempre nos atinge com escândalo. A morte do próximo é um golpe inesperado, quase inverossímil, recebido como um evento contingente e acidental, senão injusto... A radicalidade da morte nos desperta brutalmente do nosso sonho de eternidade: se alguém morre, isto revela que também sou mortal.

A morte é, portanto, também a perda inegociável do outro. O trabalho de luto, favorecido na dimensão coletiva dos rituais funerários, permite sobrevivermos à dor e ao morto, inscrevendo-o como memória em nosso psiquismo e não enterrado vivo em nossos corpos. Porque a vida é permeada pela perda e pela morte, é preciso aprender a morrer, para seguirmos vivos.

Como Birman sublinhou, embora os signos da certeza da morte nos cheguem continuamente, acalentamos a ilusão de que somos imortais, seguindo projetos presentes e futuros apoiados numa recusa: "sei, mas mesmo assim...". A crença na imortalidade e o saber sobre a mortalidade dividem profundamente nosso espírito e a ultrapassagem dessa divisão entre saber e crença, jamais completa, se dá à nossa revelia.

Assim, a possibilidade da morte se anuncia como uma visita inesperada que causa surpresa e estranheza, mas também a sensação de que é uma velha conhecida. O cinema frequentemente sublinhou o caráter de inquietante estranheza do nosso encontro inevitável com a morte. No clássico "O Sétimo Selo", de Bergman, o cavaleiro medieval desafia a morte num jogo de xadrez; no hollywoodiano "Encontro Marcado", mais recente, o poderoso empresário Anthony Hopkins negocia com ela na figura do sedutor Brad Pitt, mas a derrota final do sujeito na luta contra o destino mostra-se sempre irrevogável.

O pensamento da modernidade atribuiu um lugar estratégico à problemática da morte e, neste contexto, Freud mapeou as angústias e as defesas do homem moderno no seu confronto, sem deixar de assinalar que o valor, a beleza e o sabor da vida provêm do seu caráter efêmero e transitório.

No entanto, a atitude frente à morte não é idêntica em todas as épocas e geografias.

Em sua História da Morte no Ocidente, Philippe Ariès mostrou que o desenvolvimento de uma "consciência individual" foi tornando a morte um acontecimento mais temido do que fora nas sociedades comunitárias pré-modernas, assimilado como destino natural e comum da espécie. Ainda assim, até meados do século XX, certa familiaridade e convívio com a morte persistiriam nos costumes.

Apenas nas últimas décadas daquele século a morte sofreria um inédito e súbito silenciamento. Algo de obsceno e repugnante passa a recobrir os seus sinais, revelando que sobre ela recaiu um interdito que antes pesara sobre o sexo. Envergonhada e inominável, ela seria banida da experiência cotidiana: antigos rituais, costumes, as expressões ligadas ao luto se esvaziam enquanto o culto à lembrança em cemitérios e túmulos - esta "religião leiga moderna" - cede à cremação, ao sumiço rápido e sumário do corpo.

O confinamento das cenas da morte ao espaço asséptico do hospital desloca a posição do sujeito frente à própria morte: ele que fora o primeiro a anunciar sua aproximação, agora é o último a saber e decidir seu momento e sua forma. A cerimônia presidida pelo enfermo que jaz no leito e sua palavra sacralizada pela proximidade da morte desaparecem. Além disso, ela passa a diluir-se no tempo como uma cadeia de eventos sucessivos e seu instante exato, o "último suspiro", torna-se vago: morte cerebral ou parada respiratória?

Ariès atribui estes signos da recusa da morte à crença na longevidade prometida pela ciência e no imperativo de felicidade da época. Com efeito, quanto mais cega a recusa de nossa finitude, maior o horror diante do irrevogável da morte e a dificuldade de elaborar os lutos. Certas figuras clínicas atuais parecem pôr em cena tal recusa ou seu retorno patológico, como as crises de pânico, certas depressões, o medo de dormir, as condutas de risco, etc.

Porém, ao final de seu trabalho, o autor indica os signos de uma surpreendente reversão num processo que parecia irreversível: a morte retorna à cena, hoje, justamente através dos debates entre famílias de doentes e médicos sobre sua deliberação e na forte retomada das práticas fúnebres, nos EUA.

Para Charlton McIlwain, autor de Quando a morte vira pop - morte, mídia e reforma da comunidade, o fenômeno americano precede uma tendência mais geral: "A revolução industrial e o desenvolvimento econômico aconteceram antes aqui e as pessoas tiveram tempo de fazer o ciclo histórico completo - se distanciar do assunto via tecnologias, se desencantar com elas percebendo que nenhuma riqueza compra a imortalidade e voltar a lidar com o tema, agora com menos tabu".

Produções culturais americanas para o público médio, best-sellers e seriados de TV de sucesso mundial passam a tematizar a morte direta e insistentemente, deslocando-a da periferia para o centro das tramas. "Até pouco tempo, o espectador via, sim, alguém morrer ou ser assassinado, mas a cena terminava aí, mesmo em dramas de hospital, nos quais, aliás, era raro alguém morrer"(3). Seriados médicos sem final feliz proliferam, com destaque inédito para a participação dos legistas. Personagens participam da trama do além, como a narradora suicida de Desperate Housewives ou o pai de família de Six Feet Under, cujo legado é uma agência funerária. O cadáver exposto, inclusive em decomposição, evidencia a perecibilidade dos corpos, transgredindo o que fora tabu. Diferente da morte espetacular dos filmes de ação, a morte agora é democrática em sua incidência, banal em suas causas e ocorrência, atingindo igualmente "bons" e "maus".

Além disso, ela perde seus contornos dramáticos, substituídos por um humor irônico que lhe empresta certa leveza. "A indústria do entretenimento descobriu que não só as pessoas podem lidar de modo leve com sentimentos sofisticados como os que envolvem a morte, como querem lidar com eles assim, numa nova realidade em que duas torres podem desabar no centro de uma cidade como Nova York"(4). Antes que um mero escapismo, o interesse pela morte indicaria a desilusão com as promessas tecnológicas e a necessidade de incluir sua verdade.

A leveza e o humor no trato com a morte significariam de fato um modo de inclusão ou trata-se de banalizá-la, uma nova forma de distanciamento?

O humor foi justamente a "saída sublime" apontada por Freud para os impasses da vida, como mediação para o que é da ordem do horror e do sinistro em nossos psiquismos. Não por acaso, na única piada repetida em seus ensaios sobre o tema, o protagonista é um condenado à morte à beira da execução. O humor é auto-irônico, ridicularizando as feridas narcísicas que a vida e a morte nos impõem, sem recusá-las. Denunciando a patética onipotência do eu, admitindo com um sorriso nossa vulnerabilidade, renunciando ao drama neurótico, podemos então aceitar o que há de tragicômico na vida, e até extrair certo prazer do imponderável: rir apesar de tudo, mesmo se a morte nos espreita. Como diz Luís Fernando Veríssimo, "morremos sem entender o sentido da vida, mas pelo menos ninguém vai nos testar depois".

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(1) Versão modificada de texto publicado na coluna Perspectiva da revista Viver Mente & Cérebro, n.176, ano XV, 2007.

(2) Nayra Ganhito é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

(3) McIlwain, op. cit.

(4) Idem.




 
 
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