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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    09 Junho de 2009  
 
 
ARTE

Corpo, memória e morte na obra de Antonio Manuel


ALESSANDRA MONACHESI RIBEIRO(2)

A partir de alguns trabalhos em vídeo do artista Antonio Manuel, realizados na década de 70, e articulando-os com o seu percurso de maneira mais ampla, operarei um deslocamento dos temas da loucura e da violência - conteúdos mais evidentes de tais trabalhos - para aquilo que me parece que o artista busca discutir em sua obra, o que seja: as problemáticas do corpo, da memória e da morte. Com isso, buscarei mostrar que os temas abordados por Antonio Manuel nessas obras em vídeo e, talvez, em outras tantas, apóiam-se na forma escolhida pelo artista, sendo que a mesma pode ser entendida como corpo e memória contra a morte.

‘Loucura & Cultura', um vídeo produzido pelo artista em 1973, parece apresentar um panorama nefasto das possibilidades dos artistas nos anos 70. Na análise de Jean-Claude Bernardet a respeito do vídeo, a qual julgo bastante interessante, a ênfase recai sobre os artistas perdidos, acuados pelo público e por um regime opressivo, imobilizados em uma espécie de ‘fim do sonho', sem saída e sem alternativa que não o apelo a uma liberdade de prótese, liberdade da Marselhesa em um tempo em que ela não liberta mais nada, servindo apenas ao poder vigente e em nome dele seduzindo. Trata-se, portanto, do retrato de uma comunidade de pessoas desorientadas, que anseiam por falar e nada dizem, talvez porque não as deixem, talvez por terem secado suas palavras e não ter restado mais o que dizer. É um retrato pesado, deprimente, sem esperanças a respeito daqueles tempos.

E, no entanto, a primeira frase do vídeo é algo como: ‘Atenção, eu quero falar, eu quero falar!'. Um apelo à fala e a ser ouvido, uma esperança de, talvez, produzir uma fala que encontre interlocução e, com isso, lugar de pertinência. Busca do que chamei, noutra ocasião, de um lugar de existência, esperança sempre contraposta à impotência, tão bem marcada no trabalho de Antonio Manuel. Talvez seja justamente ali, onde o falar é impossível, que o artista crie sua narrativa.

Como falar do horror, do terror, do que não tem palavras, dessa falta de perspectiva, da paralisia? Parece que é isso o que Antonio Manuel tem tentado fazer desde o início de suas produções artísticas, quando começou com os desenhos sobre jornal e os flans(3): dar a palavra ao que fica jogado, descartado pelos canais de comunicação oficiais pelos quais as palavras circulam. Buscar no lixo das palavras - um jornal, por exemplo, os registros esquecidos de um debate, ou até as fotografias descartadas de vítimas da violência, como veremos no vídeo ‘Semi-Ótica', de 1972 - uma condição de circulação outra de palavras e, com isso, uma condição de memória.

Quando se lê o que escrevem críticos e curadores a respeito de sua obra e trajetória artística, um consenso parece haver em relação a quanto as produções de Antonio Manuel são profundamente antenadas, sensíveis e reativas aos tempos em que são feitas e às circunstâncias circundantes que as provocam. Uma obra-resposta, obra-reação ao mundo em que vivemos, aos tempos, aos dilemas de cada época. ‘Loucura & Cultura' não parece ser diferente. Também um retrato de nosso país nos tempos de ditadura militar e, mais ainda, retrato de uma classe artística com seus limites e impasses, retrato de uma impossibilidade e, também, de uma violência.

A essa loucura objetificada como doença, as falas do vídeo de Antonio Manuel parecem fazer apelo: a loucura tornada subjetiva, sinal objetivo do homem e de sua subjetividade, que aparece como potencial criativo ou expressivo, bem como absurdo, nonsense, masturbação mental de uma classe intelectual e artística. A ambos os aspectos, de loucura como criação e como masturbação mental, as frases fragmentadas do vídeo fazem referência. E essa loucura subjetivante, inscrita no corpo - tanto na crítica à masturbação quanto na criatividade do artista que implica, necessariamente, o seu gesto - convoca, então, a corporeidade para o centro da cena de ‘Loucura & Cultura'. A mesma corporeidade implicada em ‘Semi-Ótica'. Corporeidade que, a meu ver, se relaciona essencialmente com a possibilidade de memória.

Senão, vejamos. ‘Semi-Ótica' não é uma semiótica. Antonio Manuel não fez uma semiótica da violência no seu contexto brasileiro, ditatorial, repressivo. Não um estudo da linguagem dessa violência - do que poderia se tratar, no limite, também ‘Loucura & Cultura' - mas de um quase (semi) gerado por ela. Quase semiótica, quase linguagem, quase ótica, quase a condição de ver, ou a condição de quase ver. Semi-ótica, mais do que a criação ou elucidação de uma estrutura de linguagem, parece ser a crítica/reação sensível e precisa ao quase e ao que é dado a ver.

Uma música brega de sucesso na década de 1970 faz fundo a uma apresentação rococó do vídeo, seguida pela imagem de uma casa em que se vê pintada a bandeira nacional. A janela da casa se abre, criando um buraco, um escuro que desfaz o losango e o círculo da bandeira. Nessa janela aparecerá uma série de fotografias intercaladas por textos curtos. São homens, vivos ou mortos, vítimas ou integrantes do Esquadrão da Morte que, para quem não se lembra, foi o nome atribuído a grupos de policiais que matavam bandidos comuns - e não apenas eles - nas décadas de 60 e 70 e que, segundo as notícias que circulam, continua a existir até os dias de hoje, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo. Antes das suas fotos, retiradas dos lixos e descartes dos jornais, uma breve descrição de cada personagem, com nome, idade e cor: quase-verde, quase-amarelo, quase-azul, quase-branco, quase-negro. Semi-ótica. O som, antes a tal música brega de sucesso, é agora uma série incômoda de ruídos obtidos com a manipulação da materialidade das fitas-cassetes que, interferidas em sua concretude, tornam-se um ruído agudo e penetrante como bala ou faca.

O que quase se vê é a quase cor dos quase cidadãos de segunda categoria apresentados na obra. Na história que contam, nosso Brasil abriga quase seres humanos, quase vivos, quase mortos, que se colorem de tons pálidos pela alusão de Antonio Manuel à bandeira brasileira e às suas cores. Com o Esquadrão da Morte, o artista não apenas traz à baila e reage a um tema pungente do período em que a obra foi feita mas, ainda, e exatamente como na alusão à loucura, toma como objeto algo que implica diretamente o corpo naquilo que produz. E isso tanto do ponto de vista do tema quanto da forma como realiza o vídeo: a materialidade do texto, a materialidade da palavra, a materialidade do corpo morto, da violência que deságua no corpo morto, das cores. E, novamente, a intervenção na materialidade da obra, da película, das colagens fotográficas, dos cortes, do som manipulado, do preto e branco que, através da palavra escrita, dá cor ao vídeo, uma semi-cor.

Como já mencionei, em ‘Semi-Ótica' o corpo é convocado pela obra do artista, como é convocado em ‘Loucura & Cultura'. Corpo morto, corpo imóvel, corpo impotente mas, também, o corpo da forma da obra, de seus materiais, de seus modos de feitio, de suas intervenções concretas em que o suporte não serve como apoio para a expressão de um conteúdo mas, antes, como algo totalmente implicado com o que expressa e condição mesma dessa expressão. A materialidade dos vídeos de Antonio Manuel e o modo como ele intervém na concretude de imagens, sons, palavras e letras mostra como esse corpo - corpo do artista, corpo da obra - é a condição sine qua non para a construção de fragmentos de memória e de histórias. Corpo convocado por forma e conteúdo. Corpo condição de memória.

O arquivo na pele - ou, nesse caso dos trabalhos aqui analisados, na película -, não seria isso que Antonio Manuel buscaria criar com a maneira contundente com que implica o corpo em suas obras? Basta lembrarmo-nos, em sua trajetória, das Urnas quentes (1968), que provocam o corpo e o gesto do espectador para acessar a mensagem inscrita no interior das caixas; de O corpo é a obra (1970), quando é seu corpo nu a obra de arte exibida em exposição do MAM; de Corpobra (1970), materialização dessa primeira performance, dos vários trabalhos dos anos 60 em que o espectador é convocado a puxar cordões, levantar panos, deitar em ‘camas' de mato que apodrecem aos poucos e descobrir, no que se revela, uma implicação ainda mais profunda e crua com os fatos marcantes de violência ocorridos em nosso país ou em nosso continente; de O Galo, em que novamente o corpo do artista convoca o olhar e o pensar sobre as questões pungentes frente às quais nos vemos impossibilitados; dos Frutos do espaço (1980), que criam uma arquitetura e constroem um espaço no lugar em que antes fora uma favela, relembrando ao corpo a relação com essa geometria, com casas e cores e ocupações; do Fantasma (1994), instalação de carvões pendurados e lanternas apontando para uma fotografia de um sujeito que precisa se esconder por ter testemunhado um crime, que cria uma coreografia dos corpos no espaço para transitar pelos carvões até acessar a foto que, revelada, permanece ocultando; e até dos Muros (1998), construídos para exposição no MAC de Niterói, obrigando corpos a circularem de outra maneira por aquele espaço tão deslumbrante, através de buracos nas paredes, tornando o local um sucessão de muros que podem ser atravessados, de onde brotam corpos e cores a todo o momento.

Assim, temos o arquivo inscrito na pele do artista e na pele do espectador, na pele, no corpo, nos movimentos, no modo como as obras são feitas, na sua materialidade que apela à materialidade do gesto de quem se encontra com elas. E a esse contato estreito com tal materialidade não escapam seus vídeos, tais como ‘Loucura & Cultura' e ‘Semi-Ótica', dos quais tenho tratado mais diretamente neste texto. Pois é em sua materialidade e com sua materialidade que o artista cria um discurso, uma conversa, um ponto de resgate e de marca de alguma coisa que ficaria perdida, não fosse sua inclusão enquanto obra.

O conteúdo como memória, a forma como corpo. Tal é a articulação entre corpo e memória realizada pelo trabalho de Antonio Manuel. E essa rede se tece em contraposição à possibilidade da morte pois, nos vídeos do artista sobre os quais me detenho neste texto, é em relação aos dejetos, ao descartado das imagens, dos sons e das palavras - e como resistência a esse descarte -, que a obra é produzida. Um registro que marca contra a ameaça do esquecimento. Trechos de um debate, imagens de artistas, fotos de pessoas assassinadas, sons... Tanto em ‘Loucura & Cultura' quanto em ‘Semi-Ótica', o artista recorta, contorna, modifica e, com isso, constrói marcas.

O arquivo como resistência à morte a partir do próprio corpo é o que faz Antonio Manuel em seus trabalhos, a meu ver. Ele cria uma história/memória em seus desenhos sobre jornal, flans, instalações, vídeos, um arquivo implicado com seu tempo, com aquilo que o cerca e que, não fosse inventado pela mão do artista, ficaria esquecido ou, mais ainda, nem chegaria a existir.

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(1) Este texto é uma síntese do artigo "Antonio Manuel - corpo, memória e morte", de minha autoria, publicado pela Revista ARS, no.11, do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP, no ano de 2008 e passível de ser acessado também pelo site: http://www.cap.eca.usp.br/ars11.html, bem como da comunicação oral "Antonio Manuel - corpo e memória", de minha autoria, feita em mesa-redonda no evento: Através da Imagem - discussões sobre arte e psicanálise, organizado pelo grupo de Estética do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, em parceria com o Parque Lage, no Rio de Janeiro, em novembro e dezembro de 2007.

(2) Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, doutoranda em teoria psicanalítica pela UFRJ, mestre em psicologia clínica pela PUC-SP.

(3) O flan é um cartão plastificado em relevo, utilizado para a impressão de jornais. Durante o período da ditadura, Antonio Manuel elaborou seus próprios flans, produzindo e distribuindo nas bancas jornais com discussões políticas e estéticas.

 




 
 
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