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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    09 Junho de 2009  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

1964-2009 - 45 anos do silêncio à palavra – o valor necessário da memória


MARIA LAURINDA RIBEIRO DE SOUZA(1)


Em texto já clássico, escrito numa época em que se temia o possível rompimento do acordo de Guerra Fria entre as duas grandes potências - Estados Unidos da América e União Soviética -, e a conseqüente ativação do imenso arsenal atômico estocado por motivos de segurança, Hanna Segal alertava para a necessidade de que se fizesse um resgate da memória sobre a destruição provocada pela primeira bomba atômica. Em seu texto, ela descrevia os riscos decorrentes da negação, da apatia, da projeção e do pensamento mágico frente a situações de violência e destruição. Ao final, fazia uma convocação específica aos psicanalistas: "Nós, psicanalistas, que acreditamos no poder das palavras, nos efeitos terapêuticos da verbalização da verdade, não podemos ficar silenciosos". O silêncio é o verdadeiro crime(2) é o título desse sugestivo trabalho.

As revelações, ao final do século passado, do que ocorreu durante a chamada "Revolução Cultural" chinesa, com a feroz manipulação das informações, as confissões forjadas e forçadas de conspiração contra o sistema oficial, e a repressão violenta às dissidências suspeitas ou efetivas, surpreenderam muitos militantes da esquerda que acreditavam ter encontrado no Livro Vermelho de Mao uma forma possível de convivência social mais igualitária. Na América Latina, as ditaduras, que solaparam os movimentos sociais que se organizavam para viabilizar transformações políticas necessárias, foram, também, extremamente violentas.

Talvez os adjetivos sejam aqui um eufemismo, já que é próprio de todo sistema ditatorial ser extremamente violento. Violento no ataque aos corpos, à vida criativa que se projeta para o futuro, no aniquilamento das conquistas educacionais que se constroem ao longo de muitas gerações. O impedimento da palavra, a proibição de encontros de grupos de trabalho ou de militância, o exílio dos intelectuais, o fechamento das instituições democráticas, a censura sobre os meios de comunicação e de manifestação artística, a disseminação do medo de se ver acusado a qualquer momento, produzem efeitos que se estendem tragicamente por muito tempo. Se considerarmos, por exemplo, que os primeiros imigrantes - portugueses, italianos, japoneses, espanhóis -, que chegaram ao nosso país, no início do século passado, para "fazer a América", vieram como mão-de-obra produtiva e sem estudos qualificados, e que foram necessárias várias gerações para que se "fizesse um doutor", o exílio desses intelectuais aboliu no país, com apenas um gesto, a conquista duramente forjada ao longo daquele século.

A recente guerra do Iraque e a proposta do presidente Bush, de combate ao "eixo do mal", tornou-nos evidente o grau de destruição possível quando o fanatismo impede a validação de outros discursos e o reconhecimento da verdade, reproduzindo as figuras paradoxais da soberania e da vida nua, que Agamben tão bem descreveu. Todo regime ditatorial, ao abolir o lugar simbólico da palavra e da memória, expande o terreno árido e cruel da vida nua - a vida indigna de ser vivida; a vida daqueles que podem ser mortos sem que isso seja considerado como crime. E, mesmo nos regimes ditos democráticos, essas figuras tendem a aparecer demandando de todo ser vivente um alerta constante, para que os espaços da resistência e do resgate das possibilidades de uma vida digna ganhem prevalência no campo político. Neste sentido, merece destaque todo movimento que nos convoque ao rompimento do silêncio e do esquecimento da crueldade.

Em janeiro de 2009, consolidou-se em São Paulo, na Estação Pinacoteca, a implantação do Memorial da Resistência, espaço dedicado à preservação da memória da resistência e da repressão por meio da musealização de parte do antigo edifício-sede do Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo - DEOPS. "A partir das memórias daqueles que resistiram, foi possível desvelar uma nova vocação para esse espaço e prepará-lo para que as novas gerações encontrem, nele, não só as informações sobre as atrocidades da repressão, mas, sobretudo, as inspirações para a valorização da solidariedade, dos princípios democráticos e do respeito à diferença" (folheto de divulgação do Memorial).

Foi nesse espaço, com o auditório lotado, que se deu, no dia 25 de abril deste ano, o lançamento da 2a. edição revista do Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985). No prefácio da primeira edição, em 1994, D. Paulo Evaristo Arns assim o apresentava: "Tocar nos corpos para machucá-los e matar. Tal foi a infeliz, pecaminosa e brutal função de funcionários do Estado em nossa pátria brasileira após o golpe militar de 1964. Tocar nos corpos para destruí-los psicologicamente e humanamente. Tal foi a tarefa ignominiosa de alguns profissionais da Medicina e de grupos militares e paramilitares durante 16 anos em nosso país. Tarefa que acabamos exportando ao Chile, Uruguai e Argentina. Ensinamos outros a destruir e a matar. Lentamente e sem piedade. Sem ética nem humanismo. Macular pessoas e identidades. Perseguir líderes políticos e estudantis. Homens e mulheres, em sua maioria jovens. É destas dores que trata este livro. É desta triste história que nos falam estas páginas marcadas de sangue e dor".

No prefácio a esta nova edição, Fábio Konder Comparato prossegue: "Lendo qualquer de suas páginas, temos vontade de baixar a cabeça e chorar... Quanto aos que se foram, importa dizer que todos eles morreram no bom combate, pois deram suas vidas pela reumanização da nossa sociedade. O seu sacrifício extremo contribuiu, decisivamente, para pôr a nu o caráter ignominioso do regime militar. Nesse sentido, não devem ser inscritos no rol dos vencidos, mas dos vencedores. Já para todos nós que sobrevivemos e, sobretudo, para os jovens de hoje, a lição a tirar do drama dos combatentes, cuja memória se procura conservar neste Dossiê, é que a atividade política representa a suprema dimensão da vida ética".

No dia 25 de abril, antes dos autógrafos, falas de memória. Na mesa estavam Janaína de Almeida Teles, Fabio Comparato e Marcio Seligmann Silva. Na platéia, ex-presos políticos, parentes de mortos e desaparecidos, cidadãos comprometidos com a verdade da história vivida, jovens implicados com a dimensão ética da vida, crianças que herdaram essa história... Entre as várias palavras, depoimentos e moções, reproduzo abaixo o texto lido por Fernanda Coelho. Ele é um testemunho do que foi vivido nesses anos de chumbo.

"Gostaria de relembrar alguns fatos:

De um dia para outro tudo passa a ser ilegal. Os mais simples gestos, pensamentos, idéias, atitudes, opiniões, passam a ser considerados subversivos. Toda atitude passa a ser suspeita. É o início do golpe civil-militar de 1964.

Desde os primeiros dias, a Ditadura, pelo país inteiro - campo e cidade - seqüestrou, prendeu, eliminou, sumiu por meses com aqueles considerados subversivos (Exemplo, no Rio de Janeiro, aqueles que ficaram presos em navios, por mais de 30 dias, e, posteriormente foram demitidos por abandono de emprego).

Começaram os Inquéritos Policiais Militares (IPMs) sobre absolutamente tudo. Pessoas são enquadradas na Lei de Segurança Nacional (L.S.N.) e processadas pelo Código Penal Militar nas várias Auditorias Militares existentes em todo o país (o juiz era civil e o conselho, composto de militares).

No Rio de Janeiro, por exemplo, tínhamos sete auditorias: 3 do Exército, 2 da Aeronáutica, 2 da Marinha. Nessa época, o Superior Tribunal Militar (STM) ainda estava no Rio de Janeiro e todos os processos depois iam para lá para julgamento em 2a. instância.

Nesses processos nas Auditorias Militares, os presos políticos só falavam uma única vez e foi a ocasião que eles encontraram para denunciar os seqüestros, as torturas - em todas as suas formas - os instrumentos que eles usavam em cada tortura. E foi aí, também, que relataram os nomes e as patentes dos que torturavam, quando eles ainda não usavam o esparadrapo cobrindo o nome do uniforme. E denunciavam, ainda, a presença de médicos e outros profissionais acompanhando tudo.

Depois, já na década de 70, começa também a surgir a figura do desaparecido político: temos Virgilio Gomes da Silva, preso em 69 - desaparecido e, no início ainda de 70, é denunciada na Auditoria Militar a prisão de Mário Alves, no Rio, e negada pelas autoridades, apesar dos testemunhos de presos políticos que se encontravam presos no mesmo local.

Nessa década, ainda, a repressão entrega alguns corpos de mortos em caixão lacrado às famílias - não se podia abrir e com a presença de agentes no enterro - de alguns presos políticos que eles diziam ter morrido desta ou daquela maneira (as chamadas "versões oficiais").

No início da década de 70 são conhecidos os casos de Mario Alves (em 70), Fernando Santa Cruz e David Capistrano, em 74, com seus familiares Dilma Alves, Rosalina e Marcelo Santa Cruz e Maria Augusta Capistrano na busca incessante de seus paradeiros, apoiados por outros familiares de presos políticos, advogados, jornalistas e amigos mais próximos.

Aqui no Brasil, em fins de 1969 e início de 70, tivemos trocados pelo embaixador americano, 15 presos políticos que foram para o México; pelo consul japonês, 5 ou 7 presos políticos; alemão, 40 presos políticos que foram para a Argélia; suíço, 70 presos políticos que foram para o Chile.

Todos esses presos políticos foram banidos do país e, ao chegarem nesses países, denunciaram a situação no Brasil, suas torturas, etc. Em Portugal, por exemplo, saiu na época um livrinho, espécie de Dossiê, com uma série de denúncias.

No decorrer dos anos da Ditadura, surgiram várias iniciativas locais para aglutinar esses fatos e, a partir de 1975, o Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) e o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) - criado inicialmente em fevereiro de 1978, no Rio de Janeiro - vão surgindo em todos os Estados (capital e interior) com comissões para tratar das questões dos presos políticos, dos exilados, dos mortos e desaparecidos, dos atingidos.

Em novembro de 1978, realiza-se, em São Paulo, o Primeiro Congresso Nacional pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, e esse Congresso possibilitou o encontro de militantes de todo o país, de familiares de todo o país, de ex-presos políticos de todo o país, de diversos setores da sociedade, e foi uma profunda troca de informações sobre tudo o que tinha ocorrido em cada canto do país; os locais clandestinos da repressão que eram utilizados para prisão, tortura e morte de muitos presos políticos - mortos e/ou desaparecidos -, alguns considerados pelas autoridades como fugitivos - mas presos e mortos sob tortura. E lá, nesse Primeiro Congresso, surgem publicamente os primeiros nomes e os primeiros números de militantes eliminados, mas que são desaparecidos no Araguaia.

Estas foram fontes que ajudaram a elaborar os relatórios parciais naquele momento. Foram também elaborados dossiês, em São Paulo, depois editados em 1984 pela Assembléia do Rio Grande do Sul, com o apoio do CBA-RS e editados - mais ampliados e aprofundados - pelo governo de Pernambuco, em 1995, e pelo governo de São Paulo, em 1996 - todos em conjunto com a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos.

Em junho de 1979, no Rio de Janeiro, realizou-se o Encontro Nacional das Entidades de Anistia e o CBA/RJ apresentou e distribuiu para os presentes uma publicação (em impresso) contendo:

- a relação atualizada dos presos políticos no Brasil;
- documento dos presos políticos da Frei Caneca/RJ;
- relatório parcial dos mortos pelo regime militar de 64;
- relatório dos presos políticos desaparecidos;
- relatório parcial dos combatentes mortos e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia;
- relação de pessoas mortas e desaparecidas no exterior.
Ainda trazia outras informações e uma Nota destacando que "todos os relatórios são parciais"

Todos esses fatos e iniciativas ocorreram e se desenvolveram antes do decreto da Anistia, ainda sob a Ditadura, e posteriormente, foram sendo elaborados dossiês mais aprofundados, que, certamente, vão nos levar cada vez mais ao conhecimento da verdade histórica.

Parabéns pelo aprofundamento do trabalho!".

A fala foi longa e se incluiu num momento onde muitos queriam, também, tornar públicas algumas palavras até então silenciadas... Faltou tempo para isso... Revelou-nos, também, que há ainda muito para ser conhecido e um espírito de participação e esperança para ser resgatado.

É significativa a frase com que Comparato termina seu prefácio ao novo Dossiê; com ela encerro este texto:

"Na famosa oração fúnebre que pronunciou em homenagem aos mortos durante o primeiro ano da Guerra do Peloponeso, Péricles lembrou que os atenienses eram, naquela época, o único povo a considerar que os desinteressados da vida política não mereciam a qualificação de indivíduos bem comportados, mas de cidadãos inúteis. No presente, é preciso ir mais além. Os que viram as costas à participação na vida pública representam um perigo manifesto para a coletividade, pois é sobre essa apatia política que se fundam os regimes celerados, como esse sob o qual pereceram homens e mulheres cuja memória é aqui homenageada".

Como psicanalistas, sabemos que a apatia é uma forma mórbida do silêncio!
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(1) Maria Laurinda é psicanalista, membro e professora do Departamento de Psicanálise e autora de Violência (Casa do Psicólogo, 2005).

(2) Segal, H. "O silêncio é o verdadeiro crime"(1985), em Psicanálise, Literatura e Guerra: artigos 1972-1995. Rio de Janeiro: Imago, 1998. P. 153-166.




 
 
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