RUBIA DELORENZO (1)
Ele começa falando da biblioteca de Hitler. Memória recente, de coisas lidas e ouvidas. Curiosidades diurnas. Mas, logo, o denso da noite que arrasta para si os sinais da infância, veio afetá-lo.
Deslizou, então, do sinistro oculto sob o gosto estético para a lembrança luminosa dos livros. Falou dos ilustrados de capa dura, da magia dos desenhos, da imaginação do artista.
Também o capricho nas encadernações não lhe escapou à memória. Descreveu as cores distintas do couro, as tonalidades austeras, o dourado nas inscrições dos títulos, o manuseio de objeto sagrado.
O mundo da narrativa pousou ali entre nós: as figuras das estórias da infância, o sítio do pica-pau... As aventuras, as desmesuras, as ousadias. A excitação que antecipa acontecimentos, páginas roubadas pela pressa de se saber o fim, tempo furtado aos deveres, dissimuladas delícias. Mas lia-se também com vagar: aos poucos, gota a gota, para sorver a beleza da língua, reter no espírito a impressão. Que grande melancolia se seguia ao término dessa devoração! E como ainda perdura essa pena, renovada, com a quietude de uma estória acabada.
Ficamos tristes, ele e eu, ficamos órfãos.
Falou, então, das casas nuas de livros, de outras com estantes bem arrumadas que expunham aos olhos das visitas somente as lombadas escolhidas de obras sérias e respeitadas.
Falou, ainda, dos livros ocultos deixados num canto esquecido da sala. Fora do alcance da mão, fora do alcance da luz, úmidos e embolorados, repletos de nódoas. Via-se perfeitamente, no macerado das páginas, o caminho da traça.
Perversa traça que com seu traçado perverso interrompe as palavras na linha, perfura letras inteiras, tritura sintaxes e apaga sentidos, deixando buracos, convites à adivinhação.
Falou de Benjamim e eu adorei. Pensei no trabalho invertido de Penélope. No dia que desfaz a obra noturna: "... cada manhã ao acordarmos... seguramos em nossas mãos apenas algumas franjas da tapeçaria da existência vivida, tal como o esquecimento a teceu para nós".
Falou de tantos autores, de tanta literatura. Citou Moravia. Citei Duras, o deslumbramento e o grande vazio da memória.
Memória cheia e vazia. Memória de fatos, como fotos. Memória para imaginar.
Memória fixa, estável, imóvel.
Memória cacos-de-mosaico, psicodélica, um grande Parque Güell: torres tortas, lagartos-fonte, bancos torneados dispostos em serpentina, corredores e pilares em louco movimento. Que tontura essa possibilidade de lembrar, assim, tão sem limites!
Ele seguiu falante, agitado. Gostava, nos livros, dos ensinamentos sobre o ódio, a existência e a morte. Já eu, gostava mais do que tudo, dos olhares, da palavra que estremece, das confidências furtivas, dos inconfessáveis.
No meu silêncio composto, reencontrei de repente, um pensamento tão belo, que não resisto a transcrevê-lo. É de Benjamin, em sua admiração pela grandeza de Proust:
"... se quisermos captar... a vibração mais íntima dessa literatura, temos que mergulhar numa camada especial, a mais profunda, dessa memória involuntária, na qual os momentos da reminiscência, não mais isoladamente, com imagens, mas informes, não-visuais, indefinidos e densos, anunciam-nos um todo, como o peso da rede anuncia sua presa ao pescador... E suas frases são o jogo muscular do corpo inteligível, contém todo o esforço, indizível, para erguer o que foi capturado".
E nos despedimos depois de termos estado tão próximos, com aquela melancolia do insólito encontro que se finda.
Onde estivemos? O que aconteceu?
Foi o dia que desfez o trabalho da noite.
Ficamos com as franjas.
JUNHO DE 2009
(1) Rubia Delorenzo é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.