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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    10 Setembro de 2009  
 
 
ENTREVISTA

Ricardo Rodulfo


LIA PITLIUK (1)

À guisa de apresentação de Ricardo Rodulfo, reproduzo aqui um pequeno trecho do meu prefácio à edição brasileira de Desenhos fora do papel, que eu traduzi para o português em 2004:

"Tive um primeiro vislumbre do trabalho de Ricardo Rodulfo em 1999, através de um texto que ele apresentou ao comitê de São Paulo dos Estados Gerais da Psicanálise, chamado As crianças da psicanálise e a necessidade de uma revisão de seu estatuto. Entusiasmada com o que li, escrevi ao autor e assim iniciamos uma correspondência (e uma amizade) que se estenderia por anos. Assisti a algumas de suas conferências em S. Paulo, li livros e textos que me enviava, comecei a citá-lo em palestras e aulas. Meu entusiasmo se devia ao seu trabalho de desmontagem, na psicanálise, de algumas categorias, imagens, representações que nos afastam do acontecimento, da experiência, do encontro. Em seus escritos, Rodulfo discute o que, afinal, entendemos por criança, em psicanálise; o que entendemos por pai ou mãe ou família. No mesmo sentido, Rodulfo coloca em questão nossas concepções de enfermidade, nossas concepções de gênero... Enfim, trata-se de um autor muito implicado nas desconstruções que, hoje, vêm se mostrando mais do que necessárias e que vêm sendo empreendidas não apenas desde dentro da psicanálise, mas talvez em todos os campos do pensamento.

Assim, foi num impulso que decidi traduzir "Dibujos fuera del papel", antes mesmo de encerrar minha primeira leitura dele. Numa perspectiva winnicottiana e com fortes referências de Piera Aulagnier, neste livro Rodulfo desenvolve uma concepção muito interessante dos processos de subjetivação, numa pesquisa clínica e teórica sobre o que, afinal, pode um corpo - corpo este já não tomado como organismo biológico natural nem como entidade desencarnada. Depois desta leitura, já não nos é tão fácil enxergar uma ordem somática "por baixo", "por trás" ou mesmo "na origem", à qual depois se adicionariam um psiquismo e um corpo representado e, então, uma ligação entre os dois."

Ricardo Rodulfo é psicanalista argentino, professor titular de Clínica de Crianças e Adolescentes e de Psicopatologia Infanto-Juvenil na Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires, e também da Universidade Século 21 de Córdoba. É também professor convidado em universidades de Berlim, Madri, México, Porto Alegre, e também na PUC-SP. Preside a Fundação Estudos Clínicos em Psicanálise de Buenos Aires. Entre seus livros estão Futuro porvenir, El psicoanálisis de nuevo, assim como duas obras traduzidas para o português: Desenhos fora do papel e O brincar e o significante.

Entrevista realizada em 29/05/2009

L - Na sua obra temos aproximações e articulações muito interessantes entre psicanálise, filosofia e música, para dizer o mínimo. Você poderia contar um pouco sobre a sua formação pessoal?

R - Muito antes de psicanálise, quando eu era uma criança, comecei com a escrita: eu sempre escrevia pequenas estórias, contos. Também ainda criança - muito cedo, aos 6 anos - comecei a estudar música (aliás, este foi meu primeiro título universitário, aos 20 anos: professor nacional de música). E durante a adolescência eu fui me interessando não só pela música enquanto prazer estético, ou execução de um instrumento, mas pela questão das estruturas musicais. Inclusive escrevi, nessa época, um pequeno ensaio sobre o classicismo vienense do século XVIII - Mozart, Haydn, Beethoven e Schubert - onde eu fazia um exame do percurso da música européia do barroco, passando pelo estilo galante ou cortês, ao classicismo. Essas, então, eram minhas paixões mais antigas. Na adolescência outra paixão foi despertada: a filosofia, e nisto não fiz uma carreira acadêmica: eu comecei um trabalho por conta própria com a filosofia grega - os estóicos, Platão - e também com filósofos contemporâneos, como Ortega y Gasset, Heidegger, Gabriel Marcel, etc.

L - E a psicanálise?

R - Meu interesse foi despertado quando eu estudava psicologia, aos 23 anos... e despertou de um modo literário, eu diria, porque foi lendo a Interpretação dos Sonhos de Freud. Primeiramente a leitura me impactou por se tratar justamente de um livro muito belo, com uma escrita muito original - um livro inclassificável quanto ao gênero. Isso foi um golpe para mim e me fez entrar na psicanálise.

L - E como foi seu caminho de formação na psicanálise?

R - Nunca fiz uma formação dentro de uma instituição psicanalítica, mas com figuras, alguns mestres, digamos, que às vezes estavam em instituições psicanalíticas. Bem, trabalhei muito Freud por minha conta e com diferentes pessoas com quem estudei. Um dos mais importantes foi Guillermo Maci, que me ensinou a ler, poder-se-ia dizer. Um filósofo que, nos anos 70, se interessou pela psicanálise - sobretudo por Freud e Lacan - a partir de Althusser, de Foucault, desses tipos de leituras. Em Buenos Aires, nessa época, o movimento kleiniano tinha um peso muito grande, e em seguida ocorreu a entrada do movimento lacaniano; e por uma característica ou limitação pessoal, eu nunca fui parte de uma linha teórica: tive professores kleinianos mas nunca fui kleiniano, tive formação com lacanianos mas nunca fui lacaniano. Sempre me senti marginal com respeito a isso. Não penso que algo que termine em "iano" faça bem à psicanálise, porque a leitura e o trabalho existem na diferença: a diferença entre um autor e outro me faz pensar. Nós, seres humanos, precisamos de oxigênio, e os textos precisam de seu próprio oxigênio, que é ler outros textos - o que chamamos intertextualidade.

L - Assim como os sonhos, que se interpretam uns aos outros...

R - Exatamente. E, além do mais, os efeitos de escola - que em psicanálise têm sido tão nefastos - têm, em meu ponto de vista, um grave impasse ético: se eu penso que não tenho nada a aprender com o outro, se penso que só posso aprender com os do meu próprio clã, creio que intelectualmente estou perdido, por mais estudioso e capaz que eu seja. Só posso aprender com o outro.

L - Você fala bastante disso em seu último livro.

R - Sim. E não é casual que Maci fosse um filósofo: a clínica pela clínica, a clínica só com a clínica acaba sendo uma coisa banal, um anedotário, uma clínica sem cabeça. O original da psicanálise, justamente, é um cruzamento inclassificável entre uma clínica muito diferente de outras e questões de fundo que dizem respeito ao que tradicionalmente chamamos o Ser. Creio que a psicanálise, em última instância, nos confronta com a questão do Ser e com uma pergunta pelo Ser; e com uma pergunta pelo ser do Ser. Mas justamente não como uma questão abstrata de gabinete, mas na rua, na carne das pessoas, no jogo, na alegria e sofrimento das pessoas.

Para ser psicanalista, foi decisivo para o meu pensamento encontros com pensadores não psicanalíticos. Um é Lévi-Strauss: creio que por muitos anos tratei, muito seriamente, de aprender a ler um texto em termos do que ele chama de análise estrutural - que não é o mesmo que a consigna estruturalista. E Derrida.

L - Pois então, para mim um dos elementos mais marcantes do seu trabalho, e que sempre me entusiasmou tanto, é a dimensão política dos seus escritos. Pela via da desconstrução e também, muitas vezes, pelo caminho da crítica direta que você faz, de forma muito clara e contundente, a certos modos de pensamento e a certas práticas. Todo o tempo vemos você lutando contra a violência e contra a dominação que está em todos nós - que está nas nossas teorias, nos nossos ensinamentos, na nossa clínica, nas nossas atitudes. Essas batalhas, aliás, marcaram muito o meu trabalho - não só meu trabalho clínico, mas também o meu trabalho com formação de analistas. Você denuncia o falocentrismo, o logocentrismo, o adultocentrismo presentes nas nossas idéias e práticas cotidianas. Então, como é que poderíamos introduzir este universo crítico, que considero fundamental, para quem não te conhece ainda?

R - Vejo minha posição atual como apoiada em três coisas, três pés. O primeiro, a psicanálise - não como esta ou aquela teoria, com seu sistema de conceitos, mas como aquilo que, em meu último livro, Futuro porvenir, eu chamo a atitude psicanalítica: a psicanálise como uma maneira de pensar, o que não é o mesmo que a conceitualização. É um pouco como a diferença que Winnicott faz entre o jogo e o brincar. O segundo pé é o fato de Lévi-Strauss ter me ensinado a ler um texto estruturalmente. E o terceiro é que Derrida me ensinou a desconstruir um texto.

L - Podemos clarear um pouco o tema da desconstrução?

R - Eu diria o seguinte: a psicanálise não é trazida pela cegonha. Nas "escrituras psicanalíticas sagradas" - como a de Ernest Jones, ou nas versões lacanianas onde Lacan "voltaria a fundar" a psicanálise - a psicanálise aparece como que saindo da cabeça de um gênio. Essa é uma história extremamente pueril, é uma maneira pueril de pensar as coisas. Pueril e perigosa, porque a idéia de algo que surge sem dívidas com o passado, com um corte absoluto, uma coisa nova que se inaugura sem laços com ninguém...

L - Como uma religião, talvez?

R - Isso mesmo, facilmente se torna uma idéia religiosa. E além do mais é muito ingênua e nos deixa expostos, vulneráveis - como uma casa em que os ladrões pudessem entrar com toda a facilidade -, abertos a que todas as velhas tradições de pensamento se apoderem do novo que a psicanálise traz. Nisso consiste a desconstrução: Derrida sublinha que nós pensamos, mas poucas vezes nos detemos para pensar com quê pensamos. Isto raramente foi feito em psicanálise. Então a psicanálise se sente orgulhosa e fetichiza seus próprios conceitos como o inconsciente, o narcisismo, o recalcamento, sem pensar com que carga vêm todas essas palavras. Elas vêm com velhíssimas tradições metafísicas.

L - Que fazem resistência à própria psicanálise, como diz Derrida.

R - Sim. Ao falar, temos que apelar a um vocabulário que já existe. Por mais que se declare um corte, não há tal corte, há cordões umbilicais. Exemplo muito simples: quando Freud, na década de 1890, começa com alguns trabalhos, lança mão de um par opositivo - que remonta a Aristóteles, por exemplo - representação/afeto. Estes não são conceitos psicanalíticos; e ainda que tenham especificidades dentro da psicanálise, estas categorias vêm como uma maneira muito antiga de partir as coisas que não é nada conveniente para a psicanálise. Essa divisão que estamos usando como exemplo, entre representação e afeto, é ruim para o que a psicanálise trata de pensar, não lhe serve, é incômoda e lhe faz resistência. Com isso, se a psicanálise não desconstrói aquilo com o que ela pensa, se não desmonta sua teoria para ver do que é feita - como as crianças desmontam as coisas para ver de que são feitas -, termina prisioneira de velhas categorias, termina introduzindo a resistência. Por isso Derrida fala já não das resistências à psicanálise, como Freud falava, mas das resistências da psicanálise a si mesma. E Derrida pensa que a psicanálise tem uma enfermidade auto-imune, que ela ataca a si mesma. Creio que isso é muito profundo e que implica uma vigilância, um alerta, um cuidado em não fetichizar o vocabulário.

L - Você pode exemplificar isso?

R - O movimento lacaniano é um excelente exemplo de como se pode fetichizar um vocabulário, com o perigo de que o que deveriam ser conceitos se transformem em consignas, como uma consigna política. Quando se fala do desejo, por exemplo, ou da lei do pai. Acabam sendo consignas em vez de conceitos e se acaba como os judeus no deserto, adorando o bezerro de ouro, idolatrando palavras sem poder examinar de que são feitas. E isto é muito antipsicanalítico. A psicanálise, em sua emergência, se caracterizou por interrogar sobre com que se pensava. Quando alguém pergunta a um paciente o que ele quer dizer com determinada palavra, o que é tal coisa para ele, está obrigando o paciente a se deter sobre os termos que usa. O que é bom? O que é mau? O que você chama de estar deprimido? Perguntas muito simples. Se é uma criança, como personifica coisas em seus desenhos ou em suas brincadeiras? E isso é o que temos que fazer com a própria teoria.

L - Lembremos que uma das suas desconstruções mais significativas, Ricardo, é a da estrutura de paternidade, não é mesmo?

R - Exatamente. E ela aparece já no mito de origem da psicanálise: Freud, o pai. Isto não é apenas um crime, mas um erro, é fundamentalmente falso, porque se se examina a emergência da psicanálise, nos próprios textos de Freud está claro que não é assim - ainda que Freud logo reivindique o lugar de único autor, por uma questão de luta política com Adler, com Jung, etc. Neste sentido é interessante que Winnicott nunca aparece como o pai e que Winnicott não deixou instituição.

De fato, a psicanálise emerge como algo de grupo entre Charcot, Janet, Breuer, Bernheim... e, além do mais, os pacientes: em vários momentos o que Freud consigna como fatos decisivos para a emergência da psicanálise foram propostas e inventos dos pacientes. E temos ainda todo o aproveitamento feito a posteriori do que tinha sido trazido por grandes artistas como Shakespeare, Sófocles, Dostoievski, Ibsen ou Goethe. Não há um autor da psicanálise; isso de "pai da psicanálise" é uma impostura que está aí funcionando e travando tudo teoricamente. Porque, se se começa entronizando um pai, como criticá-lo?

L - Isso não é só da psicanálise, aliás...

R - Claro. Em outros campos havia muitos debates inúteis sobre quem era o pai de quê. Por exemplo, em música, a sinfonia como gênero, que começa a se perfilar no século XVIII. Falou-se que Haydn era o pai da sinfonia; então surgiram os italianos e disseram "não, não é Haydn, é Sammartini". Na realidade há vários pontos de emergência, a sinfonia começa a partir de vários músicos, alguns próximos entre si e outros que nem sequer se conhecem entre si, e alguns perduraram mais do que outros. Mas não há alguém que se possa chamar "o pai da sinfonia". E quem é o pai do rock? Não são os Beatles, nem Elvis Presley. Não há um pai - qualquer criação é coletiva, de grupo. Do mesmo modo, quando se diz "o pai da pátria". Por que há que se pensar num pai?

L - E o método desconstrutivo...?

R - Podemos e devemos perguntar, com respeito a qualquer termo, de onde vem, que cargas traz. Quando digo psique, já estou comprometido num sistema que opõe psique a corpo, corpo a mente, corpo a alma. E se digo aparelho psíquico, não escapei disso. Se digo inconsciente, estou num sistema que implica inconsciente / consciente. Então, para dar um pequeno passo, temos que trabalhar muito, e não basta fazê-lo com declarações: a psicanálise fez muitas declarações de independência e originalidade, como se não devesse nada nem à psicologia nem à filosofia nem à biologia. Isso é absolutamente falso e muito perigoso, sobretudo porque é muito ingênuo, é comovedoramente ingênuo. Quando se trabalha, não há tempo para fazer declarações: trata-se de escrever e trabalhar e pensar a sério.

L - Em relação à questão da desconstrução, em Futuro porvenir você sublinha que desconstruir não é descartar nem desqualificar. Acho essencial iluminar este ponto, porque é comum que se associe desconstrução a desqualificação e substituição. Você fala disso em muitos lugares e acho muito importante, porque essa é uma resistência importante da própria psicanálise à desconstrução.

R - Por isso mesmo Derrida preferiu inventar o termo "desconstrução"e se afastou do que Heidegger usava, que era "destruição", a propósito de destruir as teorias da metafísica. Desconstruir implica em interessar-se por algo e tratar de poder utilizá-lo melhor. Desconstruir pode levar a mostrar que algo caducou, que algo não funciona mais, mas não o todo; seria algo assim: "isso está superado", "isso não se confirmou com o tempo", "isto, por outro lado, se confirmou". Portanto, desconstrução não tem nada a ver com a desqualificação.

Esse preconceito vem de algo que também é necessário desconstruir, que é a maneira dualista de pensar: isso é bom e isso é mau, tudo e nada, branco e preto, psicanálise e não-psicanálise, lacaniano e anti-lacaniano, homem e mulher, ativo e passivo, etc. Uma das coisas a que a desconstrução se dirige muito especialmente é contra a maneira dualista, o sistema dualista, as categorias dualistas. Obviamente estes não são inventos da psicanálise, é uma grade metafísica para organizar as coisas; e a psicanálise, por sua vez, ficou presa nela. Por exemplo, quando se opõe observação e clínica, ou quando se opõe psicanálise a toda a psicologia, ou teoria a clínica. A desconstrução tem mais a ver com o que Freud dizia como recomendação de método na interpretação de sonhos: em lugar de um ou colocar um e. Porque, além do mais, a desconstrução sempre tende a mostrar as cumplicidades que há em todas as dicotomias, as cumplicidades subterrâneas.

L - Entre as suas batalhas está, justamente, a que você empreendeu contra o dualismo mente/corpo, e que me impeliu a traduzir o seu livro. Você pensa a constituição subjetiva bem longe de uma constituição psíquica que iria se sobrepor a um corpo biológico prévio. Em Desenhos fora do papel você fala não só de escrita no corpo, mas de escrita do corpo.

R - A psicanálise ficou comprometida com uma tradição positivista. Entre outras coisas, Freud estava muito marcado, como qualquer cientista de sua época, pelo positivismo, e para o positivismo primeiro está o corpo - o que se vê, o que se pesa - e depois o psíquico. Daí a idéia de Freud de que primeiro existiriam necessidades e depois desejos. Esta é uma idéia tipicamente positivista: primeiro comer, depois brincar. O próprio Lacan, em sua maneira de pensar a necessidade, continua com essa tradição, opondo necessidade e desejo e deixando a necessidade do lado do orgânico. Ele polariza: uma espécie de organicidade bruta e, de outro lado, a palavra, o mundo do significante, como um mundo encantado à parte.

Isso é falso, a própria psicanálise descobre que isso é muito falso. A psicanálise emerge como uma leitura nova do corpo: a leitura do sintoma histérico ou a leitura da sexualidade infantil, da zona erógena... Essas coisas promovem um novo retrato do corporal. Por isso mesmo, eu desconfio da noção de simbólico tal como é usada seja por Lacan, seja por outras correntes; normalmente, simbólico acaba sempre querendo dizer verbal, ou algo que depende do verbal, e deixa o corpo como que do lado do não-simbólico. Em meu livro eu justamente aponto muito isto, que uma carícia é uma escrita tão simbólica quanto uma letra ou uma equação matemática escrita numa folha de papel. Meu livro se confronta assim com uma das tradições mais fortes que existem, que é a do corpo como algo prévio, que já está aí, e não simbólico. Assim, eu prefiro manter distância desse termo, e nisso Winnicott me ajudou muito. Winnicott não usa muito esse termo. Aliás, vale a pena sublinhar que, com o tempo, Winnicott se transformou em minha referência principal em psicanálise.

L - Isto me faz retornar à questão do trabalho com crianças. Você sempre sublinha quanto o trabalho com crianças ultrapassa, de fato, o trabalho concreto com as crianças, promovendo aberturas e transformações na psicanálise como um todo, e nos psicanalistas - por exemplo, pelo giro trazido para a psicanálise pela consideração do brincar. Os desdobramentos disso são de uma magnitude imensa - como, por exemplo, na importância de brincar com conceitos, por exemplo, de brincar com a própria teoria. É uma consideração do brincar numa perspectiva muito mais ampla. Poderíamos introduzir isso de algum modo?

R - Poderíamos começar pelo mais simples: quando alguém quer se aproximar de uma criança, e mais ainda de um bebê ou de um deambulador, a única maneira de fazê-lo é através da brincadeira. Inclusive sonoramente, porque um bebê não entende as palavras, mas sabe muito bem brincar com os sons, e isso lhe encanta. É músico antes de ser escritor. Então quem quer trabalhar com crianças tem que saber ler brincadeiras, ler desenhos. Então há aí uma questão prática. Segunda coisa: as crianças chegam a falar graças ao fato de brincarem com sons, senão seria ecolalia - ou seja, há uma espécie de prioridade lógica do brincar com respeito ao falar: as crianças têm que poder brincar para poder falar, mais do que o contrário. Isso é incontestável, embora seja claro que falar logo introduz novas dimensões, modifica, enriquece, suplementa. Também a prioridade do brincar com relação ao desenho está clara, ainda que o desenho tenha tanta importância estruturante na fabricação do corpo a partir dos 3 anos.

Foi a posteriori que eu me dei conta de que minha formação musical me havia protegido, sem que eu o soubesse, do logocentrismo, porque a música não precisa das palavras. Claro que muitas vezes estão presentes em canções, mas há muitíssimas músicas puramente instrumentais. E a música não pode ser explicada com palavras, não se pode contar com palavras uma fuga de Bach ou um tango de Piazzolla, ou uma música de Gismonti. Então eu já estava vacinado pela música contra uma idealização da palavra, sem que eu trabalhasse muito nisso - foi uma bondade da música para comigo. A música chega ao corpo, faz corpo, está no corpo, e se alguém se põe a escutar uma música e tenta verbalizá-la, não vai poder escutá-la, a escuta fica arruinada. É um efeito "de mente", no sentido de Winnicott. E cada língua tem algo que não se pode colocar em palavras, que não se pode dizer. Tem seu canto. A maneira com que um brasileiro diz "tudo beeeeem?" ou que um argentino diz...

L - "que táááál..............?"

R - (risos) Claro. Ou que um francês diz "au revoir". E creio que com Lacan aconteceu exatamente o contrário do que aconteceu comigo: para a sua teoria do significante, em vez de se apoiar sobre a música - que teria sido melhor para o que ele queria marcar do significante -, ele se apoiou na linguística estrutural numa época em que se idealizava a linguística tanto quanto Freud idealizava a física ou a biologia. E a linguística - ao menos essa linguística a que Lacan recorreu - exclui o musical. Então o significante nasceu numa base verbalista quando, justamente, ele seria muito melhor entendido em termos de musicalidade (o que Lacan chama de materialidade do significante).

L - Retornando então às transformações que o brincar traz para a psicanálise... ?

R - A partir dessas considerações, nada fica exatamente igual a antes, inclusive toda a psicanálise com o adulto. Estritamente falando, poderíamos dizer que a consigna de associação livre é um convite a brincar com as palavras, suspendendo os significados estabelecidos, os juízos morais, a lógica, a sintaxe. Brincar com as palavras sem se preocupar com outras coisas. Essa é uma consigna de jogo: brinquemos de que não nos interessa a lógica nem a moral nem o sentido corrente dos vocábulos. Isso é associar livremente, e essa é uma proposta lúdica. E quando se diz brincar com as idéias, eu diria que isso é muito mais do que uma metáfora, não é uma maneira de dizer. Se não se pode brincar, não se pode pensar; pode-se repetir, citar, mas não pensar.

L - Infelizmente nosso tempo está no fim. Você teria outras coisas que não as que eu pincei, coisas em que você está interessado agora, além destas que eu tentei localizar?

R - Sempre há coisas que ficam pendentes para falar. Mas você não é uma interlocutora qualquer, é uma interlocutora muito sintonizada, creio que passamos por eixos muito essenciais, não tenho a impressão de uma visão unilateral. Isso não quer dizer que falamos de tudo, mas me parece que a orientação dessas perguntas permitiu um certo percurso, suficiente para este momento.

(1) Lia Pitliuk é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, onde trabalha na Área de Clínica. Também é membro do Departamento de Psicanálise da Criança, professora dos cursos Psicanálise da criança e A clínica médica de crianças e a psicanálise. Tradutora de Desenhos fora do papel, de Ricardo Rodulfo.




 
 
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