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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    11 Novembro de 2009  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

Nota sobre o evento Trauma, Memória e Transmissão: a incidência da política na clínica psicanalítica


JOÃO RODRIGO OLIVEIRA E SILVA (1)


Nos dias 23 e 24 de outubro de 2009 o Departamento Formação em Psicanálise realizou o evento "Trauma, Memória e Transmissão: a Incidência da Política na Clínica Psicanalítica". A atividade lotou o auditório e reuniu, na platéia, além do público interessado, membros de vários departamentos do Instituto Sedes Sapientiae, bem como militantes de movimentos de direitos humanos. O cerne do evento foi a presença das "Abuelas de Plaza de Mayo" na figura de Estela B. de Carlotto, sua presidente. Estela principiou as atividades contando da história desse movimento, de sua história nele e apresentando o trabalho que desenvolvem atualmente: o resgate dos filhos - seus netos - dos casais presos e assassinados pelo regime militar argentino, que foram tomados e entregues pela ditadura aos cuidados de casais desconhecidos. Em seguida, o tema do encontro foi sendo desdobrado nas diversas intervenções dos debatedores, em diálogo com as questões suscitadas pela fala da Estela. Os debates tiveram a participação de Ana Zabala - psicanalista que trabalha no Centro de Atención por el Derecho a la Identidad de Abuelas de Plaza de Mayo - e também de Paulo Endo, Maria Rita Kehl, Miriam Debieux, Durval Mazzei, Ana Maria Medeiros da Costa, Caterina Koltai e Nora Miguelez.

Foi uma ocasião para pensar, ouvir e falar sobre a violência, o trauma, a repetição e sobre a memória, a recordação, a resistência, a amizade e a elaboração. Tratou-se da verdade e da mentira. Caminhou-se pelo mundo da psicanálise, da política, da clínica e da história (grande e pequena). Transitou-se entre Brasil e Argentina (evocando o restante da América Latina, a África e a Europa). E, por fim, estava-se também falando do Sedes, de sua história e da história de muitos dos que fazem essa instituição. Tudo isso realizou um encontro tocante, inteligente e verdadeiro.


(1) João Rodrigo Oliveira e Silva é psicólogo, doutorando em psicologia clínica pela USP, aluno do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise e professor do Departamento Reichiano do Sedes.



ABERTURA DO EVENTO TRAUMA, MEMÓRIA E TRANSMISSÃO

CRISTINA PERDOMO (1)

É com muito prazer que o Departamento Formação em Psicanálise abre, hoje, este Evento: Trauma, Memória e Transmissão.

Gostaria primeiro de contar a vocês o porquê deste Evento.

Trata-se claramente de um evento psicanalítico que coloca em evidência a necessidade de transmitir nossa preocupação em levar adiante um projeto ético-político em nosso Departamento, em concordância com o projeto sustentado por esta instituição à qual pertencemos: o Instituto Sedes Sapientiae da cidade de São Paulo.

Apoiados na carta de Princípios, salientamos que é nosso compromisso assumir um processo de formação e de trabalho que promova o pensamento crítico, acompanhado de um trabalho de comprometimento profissional com os direitos irrenunciáveis da pessoa humana.

Sendo assim, nosso Departamento pensou neste evento como uma maneira de convocar à reflexão, com a ajuda de nossos pares, para pensar os caminhos possíveis, já transitados e a serem transitados, levando em consideração as marcas profundas deixadas - em cada uma das subjetividades e no processo coletivo social - pelos momentos históricos que temos atravessado neste último século.

Afirmando que estes momentos históricos, com a quantidade de traumatismo que aportam, têm efeitos nos modos de subjetivação, nos propomos a pensar as formas possíveis de inserção dos psicanalistas - como cidadãos e como profissionais - no que seu referencial possa contribuir para dar passos no sentido de criar possibilidades para a constituição de uma realidade social mais justa.

A violência de Estado que caracterizou estes momentos históricos aos quais fazemos referência, a violência como política de Estado, a sustentação e legitimação de um estado de violência, têm conseqüências aterrorizantes e paralisadoras do pensamento e dos processos de simbolização. Quebram-se as regras do jogo e o Estado, que deveria proteger, persegue e mata.

O terror paralisa e o objetivo de destruir os laços sociais é assim conseguido. Impera a lei do "cada um por si" e do "salve-se quem puder".

Nisso radica a potencialidade e a força patogênica do trauma social. A resposta imediata de desmobilização e abulia, produzida como conseqüência de regimes apoiados no terror e na perseguição, é um dos males maiores que a humanidade pode sofrer. A disciplina do terror visa a desmantelar as subjetividades, a anular as possibilidades de pensar diferente, a unificar o discurso. Há um único discurso possível e ele é hegemônico, impondo, deste modo, a lógica de significações do establishment no poder.

Sabemos dos efeitos devastadores no campo simbólico, tanto no coletivo quanto no individual, e das ressonâncias para as gerações seguintes.

Por isso, ao invés de apagar vestígios, queremos recuperar memória; ao invés de esquecer a história, queremos recontá-la. Não para rondar enlutadamente em volta dela e sim para abrir novas possibilidades de simbolização que permitam uma nova articulação. E, sobretudo, para legar às gerações que nos sucedem aquilo que lhes corresponde por herança simbólica.

Sabemos também, como analistas, que há algo irredutível e que o inscrito primordial não pode ser capturado nas redes do discurso historicizante; que, nesse processo de recuperação e ensamblage de elementos, o não historizável deverá encontrar modos de articulação possíveis para não ficar liberado ao exercício de repetição da pulsão de morte.

Desde a psicanálise podemos propiciar a transformação dos restos fragmentários em uma construção histórica que permita aos sujeitos posicionarem-se na cadeia da filiação, pois o processo identificatório está intimamente ligado ao processo de historicização. Através deste é que se transforma o inapreensível em algo falado e se propicia a abertura de um espaço onde os enigmas possam ser formulados e gerem, a partir da sua postulação, novas vias auto-teorizantes e simbólicas, com os conseqüentes reflexos no coletivo. Não há nisto ilusão de um histórico como construção total, será sempre fragmentária essa construção, mas possibilitando uma assunção de si.

E pensamos que, nos movimentos sociais como as "Abuelas de Plaza de Mayo", ou as "Madres", ou dos familiares de presos políticos e desaparecidos, no MST, etc., há um elemento de historicização que permite ao sujeito sair de seu solipsismo traumático e sintomático em direção à construção do espaço público. Este, ao mesmo tempo em que legitima seu lugar de cidadão, lhe permite juntar forças com seus companheiros de rota para traçar o caminho de afirmação do movimento, agora como lugar instituído na esfera pública, como instância possível em direção às mudanças.

É este processo de historicização que evita que se fique capturado no drama individual, privado, particular e singular e que possa abrir-se para o coletivo, público, e para a construção de uma organização - como são os movimentos sociais populares que resistem, que lutam contra o imobilismo e a conservação da situação oficial.

Não podemos apagar o vivido. Temos a obrigação de trabalhá-lo e interrogá-lo.

E são esses movimentos, que foram iniciados por uns poucos, que ganham força e nos dão força para rejuvenescer, re-despertar em nós a vontade de participar, de compartir, de seguir o caminho sabendo que é longo.
Alguns poderão pensar: "Que otimista!!!".

Sim, é otimismo.

Porque otimismo é a possibilidade de investir na ação que cada um realiza, sentindo-se protagonista dela, na esperança de que signifique algo para alguém, que tenha efeitos e que o sacrifício das gerações que nos precederam, e o esforço e esperança da nossa, possibilitem algo diferente e melhor para as gerações futuras.

Frente ao entusiasmo de uns, o espírito derrotado de outros - outros que, em algum tempo, compartiram o mesmo entusiasmo. Compartimos com eles certa visão da história, da esperança de algo melhor; gostaríamos de acordá-los e voltar a compartir com eles um futuro em que a ética nos guie, com a confiança de que nossas ações de hoje abrem as possibilidades de amanhã.

Não formamos parte dos saudosistas que pensam que somos os últimos de uma geração que tardará muito em voltar. Por isso, investimos no desafio de propiciar um pensamento crítico onde a utopia não seja renunciada por impossível ou perimida, mas que sim, norteie as metas possíveis.

Propiciar um pensamento crítico que permita a realização de projetos coletivos, um pensamento que não nos limite ao imediato da sobrevivência cotidiana, ao individualismo egocentrado, abrindo espaço para a noção de coletivo, de comunidade, de semelhante.

Propiciar um pensamento crítico para legar às gerações futuras um modelo diferente, em que o poder de uns não esteja sustentado na miséria de muitos.
Propiciar um pensamento crítico onde as experiências históricas de violência dêem lugar a um processo de força coletivo.

Propiciar um pensamento crítico em que o projeto psicanalítico se inscreva, com a consciência clara de que a saúde pública é uma obrigação moral e política do Estado, e não fruto da ação caritativa de uns poucos.

Propiciar um pensamento crítico e uma ética em que o semelhante se inscreve como alteridade no marco do respeito e do cuidado físico e simbólico do outro.


Enfrentamos tempos difíceis e contraditórios, mas, certamente, muito afastados dos tempos sombrios das ditaduras de América Latina. Temos ainda muito por fazer.

Quero encerrar minha fala agradecendo a presença neste evento da Diretoria do Sedes, dos colegas dos outros Departamentos e Cursos do Instituto, dos Centros, da Clínica e dos funcionários, e a de todos os colegas do Departamento Formação em Psicanálise que trabalharam e fizeram possível este evento. Esta participação multi-institucional é uma clara manifestação de que podemos e devemos pensar juntos.

Agradeço a presença de nossos convidados que, desde o primeiro momento, mostraram-se entusiastas e solidários com nosso projeto. Bem como a presença de todos vocês, que nos mostram que vale a pena seguir o caminho. Muito obrigada.

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(1) Cristina Perdomo é psicanalista, professora, supervisora e coordenadora geral do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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