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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    11 Novembro de 2009  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

Carta aberta de Eduardo Losicer.


CARTA ABERTA DE EDUARDO LOSICER (1)


Aos amigos do Sedes Sapientiae
Aos presentes e interessados no lançamento do livro Clínica e Política 2

Caros amigos

Desde o momento em que a proposta de lançamento do livro foi acolhida pelos amigos do Sedes me senti profundamente grato e feliz. Ter ficado impossibilitado de comparecer a tão importante encontro - nesse dia os aviões não saíram do chão - e expressar pessoalmente esta minha gratidão, talvez tenha sido a maior das perdas que me fora imposta. É por isso que quero agora torná-la pública, mesmo de forma diferida e não ‘presencial'.

Diante do irrecuperável, me sugeriram enviar o texto preparado para o encontro, como forma mínima de suprir minha forçada ausência. Acontece que as anotações que levava para a ocasião não constituíam propriamente um texto para ser lido, na medida em que, como promotor inicial do encontro, pensava restringir-me a auspiciar o livro e comentar o contexto em que Clínica e Política 2 estava sendo lançado, junto com 20 anos da Medalha Chico Mendes de Resistência.

Como solução de compromisso, nesta carta pretendo relatar brevemente a importância que o encontro tinha para mim.

Dizia que ia com alegria para São Paulo, animado por uma confluência de fatores que não podia ser mais propícia. Não porque se tratava de um evento celebrante - a não ser a celebração da amizade - e muito menos de um evento festivo. Tampouco se tratava de um fórum para defender teses acadêmicas nem de reunião para defender pequenos poderes e diferenças.

Tratava-se, isto sim, de um ato eminentemente político, e era isto que mais me animava: tinha uma tarefa política para ser cumprida e me sentia muito bem de poder realizá-la como parte de um coletivo que produz novidades.

Na confluência favorável ao encontro, contávamos com o atualíssimo tema dos Direitos Humanos como marco, tínhamos um bom livro para apresentar e lançar e, principalmente, contávamos com uma instituição e muitos amigos comprometidos, tanto com a política quanto com a clínica. Para muitos de nós, a adesão ao acontecimento representava um ato de lealdade com a sua própria história e com aqueles que nos foram solidários. É por isso que, em um ato pela memória, não podia deixar de mencionar que foi o Sedes que nos acolheu há mais de trinta anos, quando nos exilamos no Brasil.

Era com estes reconhecimentos - que não são de praxe - que pensava abrir a minha fala. Continuaria esclarecendo que lá estava mais em função de testemunho da produção do livro do que em função de qualquer representação. O Grupo Tortura Nunca Mais é um movimento social e não uma ONG. Achei oportuno afirmar o movimento diante de qualquer outra forma de organização política e aproveitar a oportunidade para advertir que O Globo - em mais uma de suas manipulações - acabava de publicar (7/10) erroneamente que o GTNM era uma ONG.

Nenhum movimento social depende de representações. Eu estava na grata situação de levar importantes recados dos amigos - o livro - sem ter o encargo da representação. Em momentos em que os sistemas políticos de representação mostram suas falhas, queríamos apostar que serão os movimentos políticos e sociais que colocarão a roda da história para andar de novo.

Ainda sobre os bastidores da preparação do encontro, pensei em confidenciar certos comentários que trocamos com as organizadoras Ângela e Heidi: ao que tudo indicava, o livro se comportava - não é por acaso - como um poderoso analisador. O simples enunciado da Clínica Política parece lançar uma interrogação sobre a implicação das pessoas e dos coletivos com os temas que apresenta: violência institucional, ontem e hoje.

"O Estado violento em nós", eloqüente título que Eduardo Passos escolheu para seu artigo, fala muito bem deste efeito de implicação. Instiga-nos a encarar de frente a violência que vivemos cotidianamente em nossas próprias instituições. Ou seja, desvendar essa violência silenciosa que se infiltra entre nós. Travestida de desafeto entre companheiros ou agressividade entre amigos, a violência institucional que vivemos nos lugares de trabalho e de convivência tem um efeito peculiarmente deletério - que a clínica com os afetados pela violência de Estado mostra bem -, isto é, despolitiza as diferenças que interessam e sujeita o coletivo às pequenas diferenças e sua entediante dança de egos. Enquanto isso, as forças conservadoras que supomos combater continuam avançando dentro de nós... e no mundo também. O grande salto que nos arrastou do Estado de terror ao Estado mínimo - salto ao abismo, sabemos hoje - conservou e aprofundou seu objetivo único de impedir a ação política. Por meio da repressão direta nas épocas de ditadura militar ou por meio de um brutal apelo ao imaginário nas épocas de ditadura de mercado, o silenciamento nos é imposto, seja de fora para dentro (a tortura é simbolizável? quem quer escutar um torturado?) ou de dentro para fora (como ser ouvido?).

A contrapelo desta despolitização, o livro restitui a dimensão política - antes silenciada - de certas palavras de uso "comum", como por exemplo, as palavras memória e reparação.
Também achei importante, para nosso encontro, lembrar que certas outras palavras/funções, por exemplo, punir, perdoar, julgar, lembrar, reparar, castigar, reconciliar, vingar... estão ficando politicamente cada vez mais afiadas. Como faca de dois gumes (afirmá-las ou negá-las), elas nos cortam na própria carne e, o que é pior, pode nos rachar (cortar entre nós).

Porém, a função-testemunho parece escapar deste binarismo. A testemunha pode ficar décadas em silêncio mas, em algum momento da história, ela encontrará alguém para ouvi-la. É isto que propõe a Clínica Política. Assim, quebra a dupla sentença imposta pelas ditaduras: não apenas "não falarás", mas também "nunca serás ouvido".

Para finalizar, a propósito da função do testemunho e seu eterno retorno, achei oportuno lembrar certos ditos em outra ocasião.

A testemunha do terror de Estado é um habitante de fronteiras; o silêncio de um lado, a memória do outro. Quando encontra quem o escute, ele produz memória, isto é, produz um elo de memória coletiva que antes não existia. Dizendo o indizível, a testemunha do terror de Estado produz uma verdade onde antes nada havia. Produz justiça quando rompe a fronteira entre o clandestino mundo da exceção e o falante mundo do Direito; com a sua complexa função de dar um nome ao inominável, a testemunha se realiza no seu devir visível ... diante daquilo a que antes éramos cegos. Não informa nem comunica nada; apenas estabelece a índole coletiva dos fatos históricos. Se não fosse seu depoimento, a história e a política seriam exclusivamente produzidas pelos meios hegemônicos de comunicação e pelos centros formadores de opinião, tal como acontece hoje em todo lugar.

Mesmo depois de anos e décadas de latência, a testemunha perde o medo e vinga.

O simples testemunho do que é atroz vinga sem ser vingança, repara sem ser punição e serve, pelas conseqüências que provoca, sem ser servidão.

A Clínica Política nos ensinou que a palavra viva do testemunho, enfim, sempre retorna.

Impedido de comparecer ao lançamento - fato frustrante para mim e para os que me esperavam - só encontrei algum alívio quando os amigos me contaram que, apesar de tudo, a organização e os presentes deram a garantia que faltava para o encontro... e o livro entrou em circulação. Eu não "cheguei na praia" - como dizemos no Rio -, mas os livros chegaram.

Recado passado e explicações dadas, agradeço a todos, mais uma vez.

Eduardo Losicer
Outubro de 2009
losicer@terra.com.br

(1) Eduardo Losicer, psicanalista e analista institucional argentino-brasileiro, clínico e pesquisador independente, atua nos campos da saúde mental e dos direitos humanos.




 
 
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