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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    12 Abril de 2010  
 
 
ARTE

A propósito da Virada Russa


SILVANA RABELLO (1)


Nem só de colóquios e simpósios se alimenta um psicanalista... Nem só de palavras, idéias, interpretações e metapsicologia, mas também de imagens que afetam, perturbam e fazem trabalhar!

Não falo, aqui, do quanto a psicanálise pode interpretar uma imagem ou uma obra de arte. Muito pelo contrário. Falo de como a obra de arte pode interpretar o sujeito comprometido com o exercício da psicanálise, no sentido de perturbá-lo, afetá-lo e levá-lo a imaginar e a des-recalcar, impulsionando-o a novas significações, humanizando-o um pouco mais, a cada re-encontro com o Outro. Cabe à psicanálise, então, significar-se na sua singularidade, a partir das experiências que a afetam! Singularidade, porém, integrante do caldeirão simbólico-cultural de um momento histórico, que a determina para além do que se possa supor.

Assim, transpondo para o campo da pintura o que Pontalis escreve a respeito das eventuais relações entre psicanálise e literatura, podemos dizer que:

... longe de nos conduzir a tomá-la (a literatura) como objeto de análise, (esta) coloca o "leitor" em posição de analisado. A outra fala, aquela da obra, é ela que coloca em questão e em movimento o "leitor", essa fala que vem tomá-lo de vez, de muito longe e de muito perto. (2)

Pontalis chega a sugerir, neste texto, que a interpretação psicanalítica de uma obra de arte pode não ser nada mais que a resistência do psicanalista em se deixar afetar por ela e de ressignificar-se a partir dela, assim como pode acontecer na experiência junto a um analisando.

A VIRADA RUSSA foi um belo exercício de reconstrução, ainda que parcial, deste caldeirão onde estamos metidos, mesmo que, de russos, não tenhamos quase nada. Foi perturbadora não só pela beleza de suas obras e pela brilhante curadoria, mas, especialmente, pela intensidade do universo humano contemporâneo ali apresentado ou representado, através destes movimentos artísticos que se deram na virada do século XIX/XX. E é a este evento que me dedico aqui.

***

"VIRADA RUSSA - A Vanguarda na Coleção do Museu Estatal Russo de São Petersburgo" foi a exposição que esteve disponível ao público no Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo, de 15 de setembro a 15 de novembro últimos. Foram exibidas 123 obras inéditas no Brasil, de 52 artistas da vanguarda russa, como Chagall, Kandinsky e Maliévitch, entre telas, cartazes, esculturas, figurinos e louças do Museu de São Petersburgo, além de dois vídeos. É a primeira vez que a arte russa é apresentada ao mundo ocidental por uma curadoria russa e não por um olhar "estrangeiro", o que também lhe confere algo de especial.

Neste contexto, tomamos conhecimento de um recorte das produções artísticas, revelando alguns movimentos que foram se organizando pelo tempo, que vão da arte figurativa, passando pelo nascimento da arte abstrata que junto à vanguarda francesa constituem os fundamentos da arte moderna, até o movimento stalinista, que submetia sua arte aos fins da revolução. Segundo Alonso e Athayde, dois dos curadores desta exposição:

O inicio do século XX entrou para a história da arte como um momento excepcionalmente fértil e turbulento. A extinção do referente canônico, que direcionava a produção acadêmica, acarretou a proliferação de diversas propostas artísticas. Todas compartilhavam de uma atitude de repúdio à tradição e, ao mesmo tempo, cada uma ensaiava a viabilidade de se instituir como nova norma. O desejo de renovação, que em diversos países da Europa se refletiu em movimentos artísticos transgressores, alcançou, no contexto da Revolução Russa, uma dimensão ainda mais extraordinária, pelo fato de emergirem em um cenário histórico em que a urgência das mudanças polarizava todos os setores da sociedade. Não se tratava então dos avatares de um movimento restrito ao artístico, mas sim de uma teia social ávida por transformações. (3)

O inicio do século XX é a época em que Saussure revoluciona a lingüística e, com ela, a concepção de linguagem, questionando, como efeito, a objetividade das ciências que até então se consideravam exatas. É, ao mesmo tempo, a época do surgimento revolucionário da psicanálise, que retira a razão do homem do lugar de seu "referente canônico" e revela o lugar fundamental do inconsciente. Entre tantos outros acontecimentos, esse momento entrou também para a história da arte como um momento excepcionalmente fértil e turbulento, integrando esta virada vertiginosa que ainda hoje atinge a todos e nos deixa zonzos.

Zonzos ao sermos tomados enquanto ecos deste turbilhão que nos leva a produzir repetições, sintomáticas ou mortíferas, no sentido das rupturas incessantes de referências, em todos os setores da vida. Rupturas que, ao mesmo tempo, procuram instituir-se como novas normas.

Podemos ver isto em toda parte. Também na psicanálise, ou melhor, num cuidado necessário por parte dos grupos e instituições psicanalíticas, no sentido de não reincidirem nesta repetição, de não se tornarem referentes canônicos a serem espelhados, e sim, para constituírem-se em espaços onde a palavra possa circular, produzindo novos sentidos!

Assim, esta exposição "revela em suas imagens" a empolgação deste movimento cultural intenso, profundo, que revoluciona a maneira do homem pensar, expressar, viver e significar o mundo e suas experiências. E assim, inaugurando, a "olhos nus", uma nova lógica, um novo caminho de significação.


Segundo Philippe Sers (4), a arte abstrata que surge neste contexto dá de ombros à figuração. Assim, o espectador perde seus hábitos de leitura direta e imediata da obra de arte. É a virada radical dada pelo homem de seu tempo a respeito de suas referências mais caras. E ver isto é uma experiência peculiar.


Mesmo cem anos depois, produzem-se em nós os ecos destes movimentos, perturbando-nos, ainda, para além do que possamos supor. Desnorteando-nos, fazendo com que nos sintamos doentes, confusos, em busca de sinais imediatos onde nos possamos reconhecer, sem sabermos, muitas vezes, que não é de doença que se trata, mas da contingência inevitável do ser desta era ou do conhecido "mal-estar na civilização", que a cada era encontra seus caminhos de elaboração.

Participando intensamente desta virada, a psicanálise manifesta-se quebrando o paradigma do homem bom, da felicidade, da criança assexuada e reconhecendo a lógica dos sintomas humanos, tidos até então como fruto de precariedade ou erro. Em outras palavras, rompe com os referenciais imaginários que sustentavam o homem num certo lugar de reconhecimento imediato por seus pares. Porém, não o desampara, por revelar que qualquer produção humana é lógica; que o mal-estar na civilização é inevitável; que o desejo humano deve ser ouvido, apesar de nem sempre poder realizar-se; que a dimensão da palavra é sempre peculiar e merece escuta, apesar da difícil leitura e enlaçamento por parte do outro, no reconhecimento desta singularidade e na construção de sentidos. Assim, a psicanálise, ao mesmo tempo em que quebra alguns pontos de apoio do homem desta época, oferece-lhe, por meio de uma escuta muito peculiar, sustentação aos caminhos simbólicos necessários à reconstrução de novas referências; agora, menos especulares, assim como acontece no mundo das artes - e a partir dos sentidos que ele pode produzir e através dos quais pode se reconhecer.


Enquanto isto, a revolução artística rompe com a idéia de que a arte deve apresentar ou representar elementos da realidade concreta e de que seu valor deve ser medido através desta precisão. Com Saussure, sabe-se que isto não pode se dar, a objetividade foi negada ao homem, resta-nos então o jogo da linguagem, como ele mesmo sugere, como um jogo de xadrez: a cada jogada, inédito. Portanto, teremos sempre aí um olhar peculiar, uma construção inédita e reveladora de algo do sujeito ou da cultura, que pede por palavra, escuta e reconhecimento.

A ruptura com o referente, com a reprodução a partir dos modelos oferecidos como ideais, na arte e fora dela, parece expressar a grandiosidade da experiência subjetiva a que o humano era - e ainda é - obrigado a responder na contemporaneidade, na tradição das artes plásticas, na tradição que envolve a experiência do casamento, da família, da maternidade e paternidade, na tradição do que é ser homem e do que é ser mulher, na tradição do que é viver.


Disto sabemos a partir das múltiplas discussões e produções escritas sobre o fim da função paterna na contemporaneidade, sobre as questões de gênero, entre tantas outras. Porém, ao apreciar estas produções em telas intensas e vibrantes, é outra a experiência e apreensão. Distanciar-nos da teoria, da metapsicologia, legado precioso deixado por Freud e "olhar" o homem se debatendo com os conflitos dos novos tempos, através de suas formas e cores no espaço restrito da tela e do seu enquadramento, produz um necessário distanciamento de nós mesmos e nos eleva à dimensão universal, de elementos da cultura ocidental onde a experiência pessoal ganha novas proporções: mais modestas, frente à radicalidade de uma cultura viva na qual estamos imersos e à qual somos obrigados a responder, aqui ou em terras distantes.

Do especular, figurativo, à busca da essência nas artes, onde muitos se perdem. Mas onde outros encontram o seu caminho.

Da razão ao inconsciente, em movimento análogo.

Assim como Saussure e Freud, ao retirarem o véu do "já dito" a respeito da língua e do psiquismo humano, encontram os elementos singulares de sua constituição, surpreendendo com a virada que daí adveio.

Kandinsky faz o mesmo, no seu estudo sobre a arte. Parte da reprodução à pesquisa dos elementos considerados essenciais na produção pictórica - o ponto, a linha e o plano onde estes são depositados, assim como as cores básicas. Inaugura, então, a arte abstrata, como fruto do estudo profundo que o leva a experimentar tais elementos em composições infinitas, como no exercício da palavra e da subjetividade, descobrindo o valor de cada elemento em relação aos demais e a sua dimensão singular.

Entre tantos artistas da VIRADA RUSSA que mereceriam destaque, como Chagall, Malievitch, Lariónov, Tátlin, Bogomázov, Vódkin, Popova, Énder, recorto aqui Kandinsky, pois além de suas produções pictóricas, nos deixa seus escritos, oferecendo formulações sobre este movimento e sobre a essência das produções pictóricas na arte abstrata, como Do espiritual na arte e na pintura em particular (5) e Ponto e linha sobre o plano (6), entre outros.


Temos dele, ainda na arte figurativa, como parte da exposição: Igreja Vermelha, produzida entre 1901 e 1903 (http://www.advanced-embroidery-designs.com/cart/photos/21819t.jpg).

Podemos ver, através de suas obras escritas, que o movimento da arte figurativa, até inaugurar a arte abstrata, se dá neste longo caminho de experimentação a respeito dos elementos essenciais que estruturam os produtos humanos, no caso, nas artes plásticas. Para ele, a arte abstrata é conseqüência de um método de experimentação.

Ele entende que a humanidade está preocupada com resultados imediatos, com receitas, no prazer imediato das aparências, e que a arte deve se elevar contra isto, restituindo à criação artística sua missão fundamental, que lhe parece ser a de des-velar a ordem das coisas.

O primeiro destes dois livros, impresso em 1911, coincide com sua primeira aquarela abstrata: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/abstracionismo/imagens/abstracionismo-3.jpg


Da mesma forma que Freud nos ensina acerca da construção da teoria psicanalítica, Kandinsky pensa que, em arte, a teoria segue a experimentação, e não a antecede. Assim, ele entende que uma obra de arte não seja apreendida, nem realizada, senão por aprofundamentos sucessivos; e acredita que a experiência interior do artista não é transmissível a um aluno, apenas seu método.


Assim, Kandinsky define as cores básicas, seus efeitos isolados ou em experimentação quando em diferentes composições, discutidas em "Do espiritual na arte", e elementos essenciais como ponto, linha e plano; e busca experimentações, quando isolados ou em composição, em "Ponto e linha sobre plano", aplicando com brilho sua teoria de "desvelar-velar" (pensando-se em véus sucessivos a serem retirados na leitura ou na produção de uma obra de arte abstrata, o que exige um olhar extenso na direção deste desvelamento).

Homens inquietos, à busca da essência do humano, o que passa a exigir a des-construção do que se tinha estabelecido como tal até então, busca esta que em Kandinsky se traduz nestas obras, expostas na VIRADA RUSSA:

São Jorge, 1911
(http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/foto/0,,19859027,00.jpg)

Composição 224, 1920
(http://www.britishcolony.com.br/blog/wp-content/uploads/2009/07/arte1.jpg)


Pente Azul Escuro, 1917
(http://webdebee.files.wordpress.com/2009/09/kandisnky-penteazulescuro.jpg)

Agora outras do mesmo artista, mas que não estiveram nesta exposição:
http://www.guggenheim-venice.it/collections/artisti/dettagli/opere_dett.php?id_art=86&id_opera=176

http://www.guggenheim-venice.it/collections/artisti/dettagli/opere_dett.php?id_art=86&id_opera=177

Para além de Kandinsky, outros, citados acima, mereceriam destaque, por desenvolverem outras linhas de pesquisa, ainda naquela época, compondo a VIRADA RUSSA. Algumas destas propostas de subversão na arte russa beberam nas profundas raízes da cultura popular, do folclore russo, como o "Quadrado Negro", "Círculo Negro" e "Cruz Negra" de Kazimir Maliévitch, que produzem um deslocamento em relação aos ícones da arte tradicional russa, por muito tempo restrita à arte religiosa. Confira:

http://webdebee.files.wordpress.com/2009/09/quadrado-negro-malevitch-1915.jpg

http://2.bp.blogspot.com/_RYVh3IeNckI/SrgppEaTtoI/AAAAAAAAD1o/Qf_XEXJy_CE/s400/
a++k++malevich+black+circle.jpg

http://www.dmoma.org/lobby/exhibitions/blockheads/images/malevich_black_cross.jpeg

Vale destacar também Pável Filónov, ainda pouco conhecido entre nós. Porém, segundo Alonso e Athayde:

Sua complexa visão do mundo se expressa na assimilação e fusão, em seus quadros, das mais diversas linguagens visuais (do cubismo e futurismo à arte antiga russa) para forjar obras de complexos simbolismos... Parece persegui-lo a necessidade de explicar o mundo e todos os recursos se curvam a este empenho, ...representativo da heterogeneidade do momento de virada que enfatizamos nesta exposição.

É o que podemos ver em sua produção de 1914, "Vaqueiras":

http://www.jornaldacidade.net/images/sgw/1_20090703224822.jpg

Mas este texto pretende apenas, à propósito da VIRADA RUSSA, colocar algumas idéias em circulação acerca deste importante momento da nossa história, expresso nessas telas.

Como nos mostra a arte abstrata e o legado freudiano, as produções humanas podem parecer caóticas, mas nunca o são. Assim, restam-nos novas elaborações, talvez mais simbólicas e menos especulares. Caminho difícil, este... Muitos, porém, ao lado de suas referências especulares, rateiam nos engodos simbólicos, onde o sintoma se organiza - ou não consegue se organizar.

Através dos produtos humanos, sejam eles quais forem, as verdades humanas são reveladas. É o que nos ensinaram as manifestações histéricas da era vitoriana, verdades estranhas à ordem egóica, contra as quais tendemos a resistir, criando conflitos e sintomas, em nossa própria escuta. Porém, criando... sempre.

Daí, o legado da psicanálise, que nos ensina, desde Freud, a convivermos paciente e atentamente com o que parece caótico do humano. Como diria Kandinsky, não há leitura imediata do humano, é preciso atenção para o que passa a se des-velar através de suas manifestações, à espera de que, numa virada, um sentido se revele. Virada esta, em cada um de nós, singular, incompleta.

Assim, o lugar da psicanálise, no mundo contemporâneo, se faz ímpar, na sustentação daquilo que, no humano, busca uma virada que nunca se completa.

A partir do que se revela do homem contemporâneo através da VIRADA RUSSA, vale, por fim, uma última provocação. Agora, em livro: A ARTE NA VIRAGEM DO MILENIO - ART AT THE TURN OF THE MILLENNIUM, editado por BURKHARD RIEMSCHNEIDER UTA GROSENICK e publicado pela TASCHEN, pensando a arte na virada do século XX para o nosso.

O que se revelaria do homem, nas imagens a seguir? Lentamente, desvelando sentidos, ... o que podemos pensar do homem de hoje através da arte deste início de milênio?

Franz Ackermann, Songline, 1998:
http://www.neueraachenerkunstverein.de/projekte/1998/ackermann/images/3.jpg

Janine Antoni, Loving care, 1992:
http://www.brooklynmuseum.org/eascfa/feminist_art_base/archive/images/194.644.jpg

Miroslaw Balka, Holocaust Sculpture, 1990:
http://odddotdesign.com/odddotblog/wp-content/gallery/balka-otwock/miroslaw-balka-001guard.jpg

Sophie Calle, Anatoli, 1989:
(http://www.galerieperrotin.com/FM_WEB/oeuvre/photo/Sophie_Calle/sophie-calle-14842_1.jpg)

Katharina Fritsch, Company at table, 1988:
http://farm4.static.flickr.com/3233/2365291074_e068894267.jpg
(1) Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
(2) Pontalis, J.-B. "Écrire, Psychanalyser, Écrire" In Écrire la psychanalyse: Nouvelle Revue de Psychanalyse, n.16, 1977.
(3) Ania Rodriguez Alonso e Rodolfo de Athayde. "Virada russa: revelações de uma arte em transgressão". In, Virada Russa: a vanguarda na coleção do Museu Estatal Russo de São Petersburgo. CCBB, 2009. (Esta belíssima publicação apresenta a exposição em detalhes, através de ótimos textos e da reprodução das obras lá apresentadas).
(5) Kandinsky, Du spirituel dans l'art, et dans la peinture en particulier. Paris : Denoel, 1954/89, p.9.
(6) Kandinsky, Point et ligne sur plan. Paris : Gallimard, 1991.




 
 
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