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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    12 Abril de 2010  
 
 
CINEMA

Lars von Trier: desbravador de horizontes intocáveis


ALESSANDRA AFFORTUNATI MARTINS PARENTE (1)



O filme de Lars von Trier, O Anticristo, foi alvo de polêmicas entre os críticos desde sua estréia em Cannes. Parto sempre do princípio de que se o filme provoca tamanha celeuma, é porque deve ser bom. Este pode parecer um critério muito raso para a avaliação de um filme, mas geralmente desconfio de críticas desfavoráveis quando estas estão repletas de ataques muito virulentos. Se o filme não tivesse tocado, não mereceria tamanho dispêndio de energia e palavras. Isto por si só não parece ser razão para dizer que o filme é bom, mas pensando em nosso estupor e indiferença permanentes diante de acontecimentos que deveriam causar, no mínimo, certa indignação, já me parece um mérito que o diretor tenha conseguido suscitar reações furiosas de revolta.


O filme começa com imagens que alguns consideraram clichês ou, mais especificamente, imagens de publicidade em preto e branco e câmera lenta (2). De fato, o contexto todo das primeiras cenas parece imitar comerciais de televisão, que costumam elevar a felicidade familiar e doméstica de forma completamente artificial. Vemos o casal fazendo sexo de forma exuberante, uma criança linda com um ursinho típico de lojas americanas, uma máquina de lavar roupas que lentamente funciona. Chuveiro, cama, berço, sexo entre marido e mulher, o aconchego do lar em contraposição ao frio hostil que se impõe do lado externo do apartamento.

Nem a trágica morte da criança parece romper os parâmetros com os quais ainda sabemos lidar. Esta faceta terrível da vida - morte acidental, ainda mais de uma criança - gera compaixão, tristeza, solidariedade e ainda habitamos o universo suficientemente conhecido da moral cristã. O estado devastado do casal devido à morte do filho parece razoável: o luto impõe-se e é esperado que a dor da perda de um filho seja a mais intensa, ainda mais no caso de uma mãe. Mas esta história familiar vai mostrando aos poucos outro lado. O filme parece negar toda encenação inicial, mostrando de forma radical a antítese do amor materno, da esposa e os avessos de um prazer sexual admissível pela moral pequeno-burguesa.

Na ambigüidade do amor materno o que predomina em O Anticristo é o mal, a agressividade, o ódio, a faceta mortífera de nossos desejos. O marido, com sua psicologia barata, pretende enfrentar o submundo de sua mulher, que permanentemente o adverte: estamos entrando em terrenos perigosos. O personagem, entretanto, confia em suas técnicas, seu método, sua racionalidade e sugere uma visita ao lugar que a amedronta: uma casa isolada cercada por uma floresta. Lá um mundo obscuro começa a se revelar, também para ele, em diferentes figuras da Natureza.

Um lado mortífero se espalha entre os animais e a vegetação, e a moça revela pouco a pouco uma profunda intimidade com tais aspectos repugnantes. Ele, no entanto, insiste em curá-la de sua "doença" até que sua crueldade emerge em atos de violência desmedida, somente comparáveis a cenas de filmes como Misery [Louca obsessão]. Neste filme, Kathy Bates interpreta uma louca desvairada, com a qual pouco nos identificamos, ao contrário do que ocorre em relação à protagonista de Anticristo, que não perde seu caráter humano. A ironia desta mulher frente aos "métodos perspicazes" do marido aparece quando ela faz uma referência a Freud.

A psicanálise nunca negligenciou a pulsão de morte, a sexualidade sádica e masoquista, os aspectos selvagens da alma humana, dando a estes um estatuto antes desconhecido na civilização. Emprestando-lhe certa beleza, Lars von Trier nos convida a habitar este outro lado da moeda de nossa natureza, sempre soterrada por uma moral civilizada. Muitas cenas têm uma aparência pictórica ou onírica próximas dos quadros de Bosch, nos levando a sentir um estranho prazer diante de cenas constituídas por fragmentos repulsivos.

Reconhecer o terrível em nós não é tarefa fácil, Freud já sabia quando pessoalmente se aproximou do que denominou das Unheimliche ou o estranho-familiar. Conhecemos bem a figura da mãe-intelectual, do marido dedicado, do sexo sedento de vontade e desejo, a excitação, o luto, a depressão domada pelo remédio. O que causa espécie é justamente o momento em que esta mulher inteligente e este homem dedicado a ela atravessam as fronteiras de um repertório esclarecido - no sentido iluminista do termo - para adentrarem cenários macabros e aterrorizantes. O conquistado direito ao prazer e volúpia das mulheres ocidentais é mutilado pela moça em um único ato, de tamanha violência, que dificilmente resiste-se a fechar os olhos. Sua falta de pudor ao masturbar-se bem como sua maldade contundente ao perfurar ou espancar o marido também denotam a distância das cenas com aquilo que estamos habituados a aceitar. Extirpar o clitóris é parte de uma cultura que consideramos ser antítese da nossa e nos refugiamos em nossas confortáveis liberdade e aceitação de diferenças de forma sempre esclarecida. O que Lars von Trier trouxe à tona - e talvez seja este o motivo de tanto repúdio diante desta obra - foi o lado que repelimos de nós mesmos e este está bem perto de horizontes que acreditávamos muito distantes.

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(1) Alessandra Affortunati Martins Parente é psicanalista, aluna do 2º ano do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
(2) Cf. coluna de Jorge Coli no caderno "Mais!" da Folha de São Paulo de 25/10/2009. Embora o crítico teça considerações desfavoráveis ao filme, das quais particularmente discordo, como todo bom crítico ilumina, com suas observações, partes interessantes da obra. Uma delas justamente é o caráter afetado das cenas iniciais em preto e branco e câmera lenta.




 
 
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