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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    12 Abril de 2010  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

Traduzir Freud: Encontro com Paulo César de Souza


No dia 31 de março um grande número de pessoas lotou o auditório do Sedes e gerou público para o telão disponibilizado numa sala próxima. Tratava-se do debate organizado pelo Conselho de Direção do Departamento de Psicanálise, em torno da edição das Obras Completas de Sigmund Freud, que foram traduzidas diretamente do alemão por Paulo César de Souza.

O evento Traduzir Freud por Paulo César de Souza contou, em sua platéia, com as presenças de Maria Emilia Bender, editora da Companhia das Letras, de diversos articuladores do Conselho de Direção, de muitos professores e alunos do Curso de Psicanálise, membros do Departamento e de várias pessoas próximas, e inaugurou, com qualidade, os encontros coletivos de 2010.


POR VERA MAIER DAYAN (1) E NELSON DA SILVA JUNIOR (2)


O Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae sempre primou por uma postura aberta e acolhedora com relação à produção do pensamento psicanalítico. Pensamento este em constante movimento, vivaz e crítico, capaz de repensar, ressignificar e criar, impedindo o engessamento de nosso campo em certezas apriorísticas.

É neste contexto que o Departamento de Psicanálise de nosso Instituto convidou o tradutor e germanista Paulo César de Souza para falar sobre sua tradução das Obras Completas de Sigmund Freud, que está sendo publicada pela Editora Companhia das Letras.

Paulo César de Souza é conhecido por suas traduções de Nietzsche e Brecht, pelas quais recebeu duas vezes o Prêmio Jabuti. Durante alguns anos foi colaborador do jornal Folha de São Paulo. Seu primeiro artigo, publicado em 1985, intitulava-se "Nosso Freud" e já discutia questões de base para a tradução de Freud. Sua primeira tradução de um texto de Freud, incluída nesta edição, foi publicada em 1989 no mesmo jornal. Essas e outras contribuições foram depois incorporadas aos volumes Sigmund Freud e o gabinete do Dr. Lacan, da Editora Brasiliense, em 1989 e Freud, Nietzsche e outros alemães, pela Editora Imago em 1995.


"Traduttore, traditore", traduzir significa fazer escolhas que implicam o tradutor em primeira pessoa. São estas escolhas que dão margem à discussão, ao levantamento de questões, ao pensamento crítico e criativo, e, por conseguinte, ao amadurecimento coletivo de problemáticas que atravessam a todos os estudiosos dos textos traduzidos.

Depois de ter sido apresentado por Maria Aparecida Kfouri Aidar, coordenadora da Mesa, Paulo César iniciou sua fala dizendo estar ciente de que uma das questões candentes era sua opção por traduzir Trieb preferencialmente por "instinto", - seriam aceitáveis também "impulso e ímpeto, dependendo do contexto" -, em detrimento de "pulsão", neologismo gaulês que considera ser mais pobre em sua possibilidade associativa e menos apropriada para cobrir a polissemia do termo Trieb, usado por Freud. As ressonâncias de "instinto" em português seriam o que temos de mais próximo às ressonâncias de Trieb para um falante de língua alemã, sobretudo no que diz respeito a ressonâncias biológicas que tais termos evocam.

Com efeito, para justificar sua escolha, leu na íntegra o verbete "Trieb/Instinct/Pulsion" de seu livro As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões, originalmente sua tese de doutorado em Língua e Literatura Alemã. De fato, Paulo César nos dá, de forma bem detalhada e documentada, a análise da palavra instinto. O autor afirma estar ciente de que esta não cobre inteiramente o significado de Trieb, mas deixa claro que prefere esta ao "neologismo mais abstrato e pobre em conotações" constituído pelo termo "pulsão" (pg. 257). O autor faz uma crítica bastante contundente à posição de Laplanche e Pontalis, sendo um de seus argumentos o fato de que esta "implica uma ruptura ou cesura entre o que é humano e o que é animal, desprezando o que haveria deste naquele" (pg. 259). Paulo César argumenta que "talvez seja lícito afirmar que no fundo é o narcisismo humano (a "inconsciente vaidade humana") que se manifesta na insistência em distinguir resolutamente um Instinkt de um Trieb humano" (pg.261).

Após sua exposição, Noemi Moritz Kon iniciou o debate, perguntando a Paulo César sobre suas transferências com a psicanálise, ressaltando o fato de que sua leitura como tradutor e germanista é necessariamente diferente da de um psicanalista. Paulo César então contou um pouco de sua trajetória, sua análise, a impressão que lhe causou a casa de Freud em Viena e como os escritos de Freud, ali guardados e à disposição dos interessados, o instigaram a se aprofundar na obra agora traduzida.

Colocamos então duas questões, oriundas de nossa implicação com a formação de psicanalistas. Questões oriundas da necessidade, sob o ponto de vista da formação, de que não se perca o sentimento de estranheza necessário ao psicanalista e o rigor que sua tarefa exige na abordagem do texto freudiano. Em primeiro lugar, lembramos que Trieb e Instinkt não são palavras intercambiáveis, não é possível, por exemplo, falar de Todesinstinkt (instinto de morte) ou de Ichinstinkt (instinto do eu). E se na língua de origem há duas palavras distintas, ainda que parcialmente coincidentes, seria cabível reduzi-las a uma só na língua de destino? O recurso à explicitação pontual, onde Freud de fato usa o termo Instinkt, não demonstraria o caráter arbitrário desta escolha? A cada ocorrência do termo Instinkt no original, uma nota advertiria que onde se lê "instinto", em português, Freud está falando de fato de Instinkt (e não de Trieb no original em alemão). O argumento de uma ressonância associativa mais rica da palavra "instinto" parece aqui ser vencido, a nosso ver, pela incerteza desnecessária no espírito do leitor sobre todas as outras ocorrências do termo "instinto".

Paulo César de Souza argumentaria mais uma vez, e pertinentemente, a nosso ver, que o termo instinto mantém presente uma indissociável ressonância com o fator biológico em vigor no termo Trieb que se perde no neologismo pulsão. Nossa segunda objeção, contudo, parte novamente do ponto de vista da formação, que impõe uma exigência paradoxal à tradução, a saber, uma necessária estranheza com a língua de destino. Pois, se é verdade que Trieb evoca a força vital da natureza no alemão de Freud, e conserva uma inegável ligação entre a biologia e o espírito, não cremos que se trate da mesma biologia e do mesmo espírito presentes na ligação feita pelo termo "instinto" nos tempos atuais. Com efeito, uma leitura atenta de Freud demonstra que para ele as relações entre o psiquismo e o organismo eram essencialmente diferentes do que tendemos a pensar hoje com a palavra instinto. Em uma série de conceitos e hipóteses, claro está que a organicidade humana era pensada por Freud como essencialmente plástica e sensível à influências do psiquismo. A maleabilidade erótica do corpo derivada da histeria, a fase de latência, a transmissão hereditária das fantasias de castração, pressupõem, por exemplo, cada uma a seu modo, uma modificação do organismo a partir das experiênciaspsíquicas vividas pelos sujeitos ou por gerações de sujeitos. Assim, na compreensão freudiana das relações entre o organismo e o psiquismo, uma relação de determinação mútua de fato está presente e esta se condensa no termo Trieb.

Contudo, a compreensão cotidiana e atual da ligação entre organismo e psiquismo no sentido de "instinto", por sua vez, é pensada em um quadro de determinação bastante diferente desse. Trata-se em "instinto" de uma via de mão única, onde o orgânico atua apenas como causa de efeitos no psiquismo, jamais como sujeito passivo de causas psíquicas. Nesse sentido, o termo "instinto", apesar de manter a dita ligação do psiquismo com o organismo, o faz amputando algo essencial do pensamento freudiano: a idéia de que o psiquismo seja causa de mudanças no organismo. O problema aqui é da mudança na mentalidade em geral da cultura ocidental nesses cento e poucos anos e não apenas de fidelidade semântica entre dois termos estrangeiros. Simplesmente não se pensa mais a biologia como Freud o fazia. É nesse sentido que dizemos que "instinto" cria uma falsa familiaridade, ilusão de compreensão que pode ser evitada pelo uso de um termo novo tal como "pulsão", sem referências imediatas na linguagem natural, pois que exige do leitor um deslocamento para fora de seu campo de compreensão fácil e imediata, levando-o a se dar conta da radical mudança ocorrida na própria cultura na concepção do que é uma "teoria científica".

Outras colocações bem interessantes foram feitas. Apontou-se, muito oportunamente, para a questão da opção política subjacente ao uso de uma ou outra palavra. Pontuou-se que cada tradução reflete um tipo de leitura e que a tradução não é só efeito, como gera efeito. Resgatou-se a importância do Dicionário do Alemão de Freud, de Luiz Alberto Hanns, publicado pela Imago em 1996, que muito nos tem servido. Falou-se da dimensão poética, de nosso compromisso com a clínica, da necessidade de um bom senso para traduzir, dos significados específicos que uma palavra tem num determinado momento histórico, que questões específicas isto coloca, e falou-se também de vivências singulares do sujeito que influenciam sua preferência. Isto para citarmos apenas algumas das intervenções da platéia.

Isto posto, somos gratos a Paulo César de Souza pela sua visita, sua exposição e por termos, a partir de agora, uma tradução que é fruto de um trabalho sério, exato e elegante, que nos aproxima também das qualidades estéticas inerentes ao texto de Freud. Uma nova tradução da obra de Freud, diretamente do alemão, é indubitavelmente um evento importante e feliz, porque amplia nosso leque de escolhas e nos obriga a repensar os motivos que nos levam a optar por certos termos em vez de outros, quando traduzimos as palavras e, eventualmente, o pensamento do pai da psicanálise.

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(1) Vera Maier Dayan é aluna do 4° ano do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
(2) Nelson da Silva Junior é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise e professor do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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