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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    13 Junho de 2010  
 
 
ESCRITOS

Mata-se o tempo. Detém-se a morte? (1)


RUBIA DELORENZO (2)


"O deserto dos tártaros" é uma ficção sobre o tempo, sobre a figura da espera. Mais: no romance de Dino Buzzati, escrito em 1940, vemos tecer-se a rede que busca capturar o tempo e amortecer o desejo, revelando na rítmica circular dos ritos instituídos o propósito de deter o inexorável movimento da morte. O tempo do rito é um tempo que programa, disciplina, torna homogênea e geométrica a realidade. Portanto, quando celebrado, o rito faz dissolver a angústia associada ao imprevisto. Temporalidade objetiva, pragmática, a temporalidade experimentada no romance pretende, pela reiteração incessante do mesmo, uma regulação e um ordenamento máximos dos acontecimentos da vida.

A sucessão das horas, dos dias, dos anos é aí dissolvida pela repetição contínua dos atos, que tornam a experiência diária sem cor, sem matizes, sem intensidades, alegria ou dor.

Tratado sobre o que há de mais caro à problemática obsessiva - a fortaleza, o tempo e a morte - arrebata o leitor, perplexo diante do equívoco de um homem que imaginou poder congelar o tempo. Foram inúmeros seus esforços: restringiu a espontaneidade dos gestos, adaptando-se à intransigência das normas, manteve seus dias idênticos na feitura reiterada de movimentos de autômato... já não se sabia mais: vida e morte se assemelhavam.

Dia e noite, tardes ensolaradas e madrugadas frias, tudo se experimentava na mesma luz e temperatura. Regulavam-se, neutralizavam-se, equilibravam-se as diferenças.

Essa narrativa, repleta de alegorias inquietantes, gravita em torno de uma atmosfera austera. Das muralhas à paisagem, tudo transpira um ar inóspito e sinistro.

Conta-se a história de um oficial jovem, Giovanni Drogo, instalado numa fortaleza de fronteira que, sem se dar conta, nela envelhece absorto em seu perpétuo e supérfluo posto de sentinela. Trecho de fronteira morta, rodeado de pedras e terra seca, tão separado do mundo, este forte nunca recebeu visitantes, nem mesmo nas guerras passadas. A rigor, ali "tudo se estagnava num torpor misterioso".

Fora do tempo, sem passado e sem futuro, sua vida de clausura se consome - sem que ele se aperceba - à espreita de um pressentido inimigo. Atento, cauteloso, antecipa seus movimentos, avalia sua proximidade ou distância, gasta seus olhos buscando a nitidez da figura que o amedronta.

Regulamentos inflexíveis, senhas secretas, a meticulosa precisão da troca da guarda, nada parecia garantir a segurança máxima contra invasões. Assim, as horas, o sono, o interesse pelo universo dos homens, se sacrificam ali, ao único objetivo de controlar. É preciso observar com inesgotável prudência o adversário: montar turnos, verificar armas, mantê-lo suspenso na mira do canhão, conservá-lo no campo de visão do telescópio. E ainda, manter-se em vigília, na obediência à instrução velada, subentendida, cujo cumprimento faz o orgulho do soldado.

A estadia no forte, dita provisória, no entanto, cedeu ao torpor dos hábitos, à vaidade militar, à expectativa de guerra.

Mas Drogo, o que fez com que se contaminasse, porque insistiu nessa renúncia aparentemente voluntária às boas coisas da vida, às alegrias do homem comum? Seria apenas para certificar-se de que, na esperança incansável da batalha, o aguardava um destino heróico, nobreza de oficial, glórias condecoradas? Ou, ao contrário, não buscaria através da disciplina férrea, no vício da escrupulosa inspecção, a certeza de que estava fora de perigo, a salvo do tempo, a salvo da morte?

Podendo ir embora, ali ficaram todos os que temeram a fuga do tempo. Senão, porque Drogo daria sua vida na vigilância do inimigo, na constante observação de sua presença ou ausência, perscrutando seus deslocamentos e sua inércia, se não fosse para assegurar-se de que ele próprio estava vivo, desejando acreditar incólumes sua força e juventude?

Na verdade, vemos armar-se, na decisão da liberdade sempre adiada, a obscura trama que o prenderia. Pois, finalmente, quando o inimigo surge com fôlego de guerra e avança destemido na direção do forte - realidade, delírio? - Drogo abatido está fora de combate.

Quando se aproxima a derradeira batalha, quando busca em si a figura do mestre em armas, do guerreiro paramentado, num esforço último de blindar seu forte, é tragado pelas vertigens e os calafrios que o acossavam em sua doença.

Arrebatado pelo fazer contínuo de fiscalizar essa sombra permanente no horizonte, ignorava que sua luta visara sempre à sombra que o habitava. Fechou-se dentro do forte, confinou-se em seu deserto de pedras, sem saber que era do interior que o vigiava a figura sinistra do adversário maior.

Teria se dado conta, no instante de sua morte, de que passou sua vida morto, para não morrer?

Drogo, que tão jovem entrou, desavisadamente, para o serviço de guarda - que pena! - não pode mais desapegar-se, fascinado que estava pelo túmulo onde se encarcerou.



(1) Esse texto é parte modificada do artigo "O deserto da obsessão", publicado na revista Mente e Cérebro, Ano XV, N 181. Fevereiro de 2008.
(2) Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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