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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    13 Junho de 2010  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

Sobreviventes/ Sobre-Viventes/ Limites de Todos Nós


MIRIAM CHNAIDERMAN
 
Premissas

Durante o evento que trouxe o querido e admirado amigo Marcelo Viñar, exibiram o documentário “Sobreviventes”, dirigido por mim e Reinaldo Pinheiro. Depois de  Viñar, e de Mario Fuks, pediram-me que falasse. A jornalista Eliane Brum deveria falar depois. Para fazer essa fala, baseei-me em pesquisa que vinha fazendo, no Laboratório de Estudos sobre a Intolerância, do Departamento de Psicanálise, em 2005, e que deu origem ao documentário.

Essa pesquisa já era fruto de meu trabalho como documentarista, onde, saindo do conforto do consultório, sou fisgada pelo mundo. A livre-associação a partir de alguma questão e a atenção flutuante do mundo, me abrindo caminhos inusitados.

Afinal, desde 1992 venho me dedicando a explicitar modos de vida que não são legitimados em nosso mundo. Todos os meus temas são relativos a pessoas que, apesar de terem vivido situações de total objetalização, conseguem se singularizar e encontrar jeitos de respeito ao que os constitui como seres humanos. São estas pessoas aquelas que são marginalizadas em nosso mundo. Mas o conceito de marginalidade daria conta da especificidade das situações? O termo minoria também vem sendo utilizado, mas, a meu ver, insatisfatoriamente, visto constituir-se em um critério quantitativo confuso, sem coordenadas claras. “Sobreviventes”, termo que vem sendo utilizado para nomear pessoas que passaram por situações-limite como campos de concentração, me parecia, naquele momento,  melhor caracterizar aqueles que, criativamente, driblam movimentos mortíferos de nosso mundo contemporâneo. Claro que eu havia trabalhado toda uma literatura de testemunho e pensado a importância do relato para sair do lugar de vítima.

Eu havia publicado, no Jornal de Psicanálise,  o artigo “Homens e cavalos – rufos e uivos incinerados” (Instituto de Psicanálise – SBPSP, vol. 336 – 2003 – n. 66/67), onde buscava discutir a questão do que seria um sobrevivente.

Eu iniciava o artigo contando de Chalkamov Varlam (citado por Nathalie Zaltzmann em seu ensaio “Perdre la face”(1)) que, relatando sua experiência em um goulag, campo de concentração do stalinismo, fala da sua perplexidade ao ver os cavalos morrendo aos poucos – “os cavalos não se distinguiam em nada dos homens (...) embora sua situação fosse cem vezes melhor que a dos homens, eles morriam mais rapidamente que eles...”. Conclui que  o homem é fisicamente o mais resistente de todos os animais e que é o único que força seu espírito a servir com felicidade seu corpo. Salto inverso em relação à passagem do pulsional ao corporal, libidinização das necessidades corporais que não funcionam mais como estágio erógeno, mas adquirem uma valência libidinal direta.

Nathalie Zaltzmann vai ressaltar a importância do conceito freudiano de Kulturarbeit, que procede do encontro entre os objetivos egóicos das pulsões sexuais e das pulsões de destruição e suas formas de colocar em representação e em ato na realidade humana. A Kulturarbeit é, por seu tecimento entre o único e o impessoal, essa garantia narcísica mínima.

Tudo que aqui está exposto segue à risca o texto de Zaltzmann, que foi iluminador da pesquisa e do documentário.

A identificação sobrevivente

Em tempos normais, o que permite ao humano encarar tudo que vem prová-lo é a existência de um tecido libidinal onde os referenciais estabelecidos pela trama da civilização na qual ele se move fazem-lhe sinal de sua existência para o conjunto.

O movimento mesmo dos processos de civilização, o próprio fato da existência de um relato possível da história, dão a cada indivíduo, independentemente da história singular que ele poderá ter, e desde seu nascimento, um capital narcísico inicial, o de uma certeza mínima de existência para outrem.

O desabamento de uma civilização arranca até os ossos tudo que é perecível na organização da realidade humana. Revela a existência de um resto. Esse resto pertence a esse processo psíquico ativo individual - filogenético - que se pode nomear a Kulturabeit. O dado narcísico individual, resistente por sua ligação com o conjunto, é esse resto.

Esse resto, essa propriedade geral é uma certeza inconsciente, uma afirmação de vida, um assentimento à realidade comum. O espaço libidinal comum onde o homem existe para o homem antes de ter a experiência disso.  Antes que haja um si-mesmo, antes que os outros existam.

O que acontece no inconsciente de cada um quando essa evidência, essa certeza mínima de uma realidade comum são ativamente visadas pela destruição? O que acontece a cada um quando a função protetora da civilização, por mais ilusória que seja, bascula para a prática aberta da destruição?

O homem depende do que acontece no conjunto da espécie. A sobrevida da espécie depende da sobrevida dos indivíduos que dela fazem parte. É essa obra comum-individual que inscreve cada existência como não indiferente em relação aos destinos do conjunto, como afetando este conjunto pela falhas e conquistas realizadas por cada destino individual. Esse dado cultural precede cada indivíduo. É esse minimum vital, esse mínimo indispensável que assegura cada um do caráter de evidência de seus investimentos libidinais, que assegura o caráter viável da condição humana.

“O conteúdo do inconsciente é coletivo, propriedade geral do ser humano”, escreve Freud em “Moisés”. O resto, o dado narcísico individual faz parte dessa propriedade geral coletiva, identificante de cada um. O que nomeamos como realidade humana é  matéria psíquica,  ao mesmo tempo singular e coletiva, de textura libidinal singular e investindo o impessoal da herança filogenética, habitada, animada por traços que pertencem a um tempo coletivo.

Trata-se de civilização e de cultura e dessa noção freudiana insubstituível e intraduzível, a Kulturarbeit, passagem em força das transformações psíquicas impostas à história da humanidade e à história singular de cada um pelas dependências constitutivas mútuas entre o indivíduo e a espécie nas suas  convergências e divergências, solidárias e incompatíveis, para a vida e para a morte. A Kulturarbeit aparecerá como a garantia coletiva do narcisismo individual, numa função de identificação originária ante-objetal.

Nathalie Zaltzmann, a partir da análise que faz da literatura chamada de testemunho, a literatura dos campos de concentração, vai propor o conceito de identificação sobrevivente: em situações extremas, cada vida representa de modo impessoal a vida humana, a condição humana em seu conjunto – essa pertinência à espécie humana (Robert Antelme) sobrevive à destruição de todas as referências civilizatórias. Esse conceito daria conta da primeira e mais importante identificação: aquela que, em Freud, é com o pai de pré-história pessoal (O Eu e o Isso). Identificação sobrevivente, vivente numa extra-territorialidade objetal e histórica.

Nathalie Zaltzmann lembra Huxley e Orwell, que mostraram que o desejo amoroso é a primeira falha na identificação coletiva compulsória e a maior fonte de resistência do despersonalizado, idêntico para todos. O indivíduo é sempre desviante, as fontes pulsionais de suas aspirações psíquicas são inassimiláveis a objetivos unicamente coletivos que eliminam as diferenças individuais.

O documentário “Sobreviventes”


Foi a partir da teorização da Nathalie Zaltzmann e do questionamento do conceito de “trauma” em Freud, que foi realizado o documentário “Sobreviventes”. Eu queria pensar o qualitativo de cada trauma na possibilidade de simbolização daquilo que, para Freud, inscreve-se duramente como excesso incrustado no corpo.

Alguém que tomou choque elétrico num tratamento psiquiátrico teria a mesma possibilidade de simbolização do que alguém que tomou choque elétrico em uma situação de tortura? Um exilado europeu viveria a passagem do mesmo modo que um nordestino?

Observação: O que se segue é parte de livro meu, no prelo, onde me detenho em cada um dos meus documentários. Não tinha como falar disso tudo durante a minha fala, mas achei interessante, em nosso Boletim, poder colocar vocês em contato com a grande aventura que é fazer um documentário sendo psicanalista.

SOBRE A REALIZAÇÃO DO DOCUMENTÁRIO


Em um e-mail que mandei para nosso assistente de direção, o Vitor Freire, depois de ter entrevistado todos os personagens sobreviventes, eu falava em um “cansaço ancestral” pós-filmagem e pós-entrevistas. Não era o mesmo cansaço de outras filmagens. Não era o cansaço que eu e a equipe sentíamos quando saíamos para filmar em cemitérios, aquele negrume do contato com a dor da morte e que fez com que nenhuma diária do “Artesãos da Morte” durasse mais do que cinco ou seis horas. Agora era o cansaço do contato com a dor, o cansaço do imenso cuidado e carinho que quisemos ter com as pessoas que vieram expor suas feridas. Talvez o cansaço que essas pessoas vivem. O cansaço de transformar a dor em ternura, a luta cotidiana pela vida. Uma acompanhante terapêutica, Daniela Patrícia (chamamos acompanhantes terapêuticas para receber os nossos personagens já no carro que os buscava, queríamos que se sentissem cuidados e aconchegados) falou na experiência de “co-sobreviver com os convidados do documentário”. Tínhamos todos co-sobrevivido. As filmagens ainda não haviam terminado e eu sentia esse cansaço ancestral. Ainda deveríamos filmar o Ueinzz Cia. de Teatro, que deveria fazer a costura entre os diversos depoimentos. Mas, depois das entrevistas, talvez eu sentisse o mesmo sentimento que fez a jornalista Eliane Brum, ao assistir o documentário na televisão, adormecer. Hoje penso que precisei adormecer como aquele sono que invade quando vivemos o traumático – lembro que depois que passei por um acidente de ônibus, embora não tivesse grandes machucados, passei meses com muito sono, precisando dormir muito. O ônibus foi ponte abaixo, caiu vários metros dentro de um rio. Em plena escura madrugada, indo para o Rio de Janeiro. A corredeira, a água na cara, os gritos. Gente machucada. Depois, em casa, eu só queria dormir. Eu, ainda adolescente, não podia falar em um “cansaço ancestral”. Quando usei essa palavra no e-mail para o Vitor, devia estar me referindo a estar sentindo a dor do mundo, a dor de todas as dores. Haviam sido dias e dias tocando feridas. Feridas da alma. Sempre pensei que também nós, psicanalistas, deveríamos ganhar pela insalubridade em nossos trabalhos. Não é porque não vemos sangue em nossos cotidianos que nossas feridas doem menos. Almas machucadas, costuradas, estropiadas, sufocadas.

Antes da filmagem, a pesquisa havia iniciado esse processo de contato com a dor e a possibilidade de transformação disso tudo.

Uma vez ganho o edital, eu e Reinaldo Pinheiro constituímos nossa equipe inicial.  Foi fundamental, desde o início, co-dirigir com Reinaldo. Eu ficava mais atenta às questões da dor e do sofrimento, e ele cuidava da maquinaria do cinema. Chamamos Maria Carolina Telles, a Carol, que tanto havia nos ajudado no “Procura-se Janaína”, para fazer a pesquisa. Tínhamos que buscar pessoas que passaram por situações-limite, pessoas que estiveram próximas da morte, nesse limiar tão tênue em que a vida pode vencer ou perder.

Chamei Vitor Freire para trabalhar conosco como assistente de direção. Ele foi também o montador. Conhecia seu documentário “Tião reciclado” e alguns trabalhos que ele reunira em um portfolio. Sua sensibilidade me encantara. Edu Gioia foi o produtor de campo. Jay Yamashita seria o diretor de fotografia. Participou de nossas discussões desde o início.

Começamos discutindo como encontrar o lugar onde os depoimentos aconteceriam. A idéia inicial era um palco. Mas Reinaldo sugeriu a idéia de “uma luz no fundo do túnel”. Pois, o que era muito evidente, é que foram pessoas que, com sua força de vida, sobreviveram a situações atrozes. Ou seja, por mais dolorosas que fossem as situações, haveria sempre a superação. Sem alguma “transcendência” (era esse o termo que Reinaldo empregava) não estariam sequer podendo dar o depoimento.

Começamos nossa busca por túneis com uma luz ao fundo. Andamos por viadutos habitados por figuras esfarrapadas em busca do sopão distribuído em uma perua. Visitamos fábricas antigas, andamos por bairros inusitados com galpões abandonados. Começamos a pensar na poltrona onde os sobreviventes dariam seus depoimentos. Vítor pensava em um sofazinho e teve a idéia de pedir para cada personagem trazer um objeto que o remetesse à situação-limite. Assim foi sendo tecido o documentário.

Vitor, a partir de fotos que fiz de uma locação, fez o que chamou de “rascunho”.
 

 
Essa fábrica abandonada ficava num bairro de São Paulo distante. Edu, nosso produtor, fez o contato com a imobiliária e o proprietário. Nesse meio tempo já tínhamos contactado a Casa das Caldeiras, antiga fábrica dos Matarazzo e que hoje aluga o espaço para festas. Nos porões, exatamente no corredor que desemboca na imensa chaminé, era possível, segundo Jay, fazer uma luz que desse a idéia de fim de túnel. Acabamos escolhendo essa locação.

Agora era preciso escolher o sofá ou a poltrona. Edu começou sua peregrinação por lojas de móveis usados. Tinha que ser bem confortável, pois sabíamos que as entrevistas seriam doloridas e incômodas. Acabamos escolhendo uma linda poltrona verde. Os depoimentos todos deveriam acontecer de modo uniformizado, no mesmo lugar, pois o que nos interessava era chegar ao âmago das almas, chegar naquilo que faz com que todos nos sintamos humanos. Chegar no que Nathalie Satzmannn nomeia como identificação com a espécie humana, uma identificação sobrevivente. Essa identificação nos une, eliminando hierarquias. O sobrevivente com uma história política é tão sobrevivente quanto o negro que viveu a discriminação ou a mãe que perdeu as filhas em um soterramento.

Discutimos bastante com Jay e decidimos trabalhar com duas câmeras. Uma câmera enquadraria o personagem como um todo, variando apenas a distância e a outra câmera captaria detalhes das mãos, dos olhos, crispações. Eu falava que a câmera deveria captar a alma dos personagens.

Assim foi perdendo sentido a proposta inicial de acompanhar os sobreviventes em seu cotidiano. Radicalizamos nossa busca pela identificação com a espécie humana, nossos personagens são seres humanos lidando com suas dores atrozes e era esse o nosso foco. Era isso que nos interessava.

Enquanto isso era preciso ir preparando o Grupo Ueinzz para a filmagem. E, também, pensar aonde aconteceria essa filmagem. Comecei a freqüentar os ensaios, e a pensar junto com o grupo. Como o grupo já se apresentara no Teatro Oficina, houve um pedido para que as filmagens acontecessem lá. Tudo era muito delicado, dadas as características do grupo.

O grupo Ueinz surgiu em 1995, a partir do trabalho com pacientes psiquiatrizados do Hospital-Dia “A Casa”, inicialmente sob a direção teatral de Sérgio Penna e Renato Cohen. Hoje é dirigido por Cássio Santiago. Com a participação do músico Wilson Sukorzky descobriram sons e línguas inusitados. Assim Peter Pál Pelbart relata o nascimento do nome do grupo: “... os diretores coordenam um exercício teatral sobre os diferentes modos de comunicação entre seres vivos: palavras, gestos, postura corporal, som, música, tudo serve para comunicar-se. Um exercício clássico sobre as várias linguagens de que se dispõe: cada animal tem sua língua, cada povo tem a sua, às vezes cada homem tem seu próprio idioma, e não obstante nos entendemos, às vezes. Pergunta-se a cada pessoa do grupo que outras línguas fala, e o paciente do gemido, que nunca fala nada, responde imediatamente e com grande clareza e segurança, de todo incomuns nele: alemão. Surpresa geral, ninguém sabia que ele falava alemão. Foi preciso o ouvido de dois estrangeiros para escutarmos que aquele que acompanhamos há muito tempo falava “alemão”. E que palavra você sabe em alemão? Ueinzz... E o que significa Ueinzz em alemão? Ueinzz... Todos riem – eis a língua que significa a si mesma, que se enrola sobre si, língua esotérica, misteriosa, glossolálica. (...) Processo originário da linguagem que o despotismo da gramática e da significação ainda não recalcaram”.

Era por tudo isso que havíamos escolhido o Grupo Ueinzz – um grupo teatral composto de sobreviventes na busca de uma língua para além de qualquer língua.

Mais uma vez, Edu batalhou o espaço do Teatro Oficina para um dia de filmagem.

É bonito esse processo em que o filme vai sendo construído.

Inúmeras reuniões e e-mails foram definindo quem seriam nossos entrevistados. Cada um de nós mergulhou nas feridas e dores  e assim fomos pelo mundo afora.

Começamos a pensar quem seria um sobrevivente. TomZé é sobrevivente? Sim... José Celso Martinez Corrêa é sobrevivente? Claro. Rita Lee, Renato Pompeu, Gabeira... Elke Maravilha. Lembramos de Doris Giss que sobreviveu a um tombo! Lembramos de pais com filhos baleados, de assaltantes que sobreviveram à polícia. Fomos nos perdendo entre as histórias e nos sentindo sobreviventes também. Entramos em contato com o CRAVI, que trabalha com vítimas da violência. Queríamos saber se alguém atendido por eles poderia dar um depoimento. Na reunião que fizemos, percebemos a enorme dificuldade que se delineava:  pessoas que foram seqüestradas, assaltadas, com familiares próximos assassinados, vivem no temor da retaliação, seria difícil que se dispusessem a aparecer em um documentário para a televisão. De fato, essa questão acabou impedindo que tivéssemos um depoimento de alguém que viveu um sequestro ou um assalto. Tentamos inclusive que pessoas sequestradas por terem muito dinheiro viessem dar um depoimento. Em meio a tudo isso, Carol nos escreve: “Já entrei em contato com duas vítimas de sequestro, cativeiro, enfim... e elas não toparam fazer por enquanto. Mas já estou trabalhando em outras frentes para conseguir chegar a uma pessoa que provavelmente aceitará e nos mais difíceis (os famosos). Estou traçando o caminho para um sobrevivente de tiroteio com policiais, ou seja, sobrevivente de chacina...”.

Sempre é difícil romper o silêncio escolhido, como se essa fosse a melhor forma de lidar com o traumático.

Vítor nos colocou em contato com Marques, um jornalista que vivera mil aventuras onde correra risco de vida, Carol chegou até um policial que fora baleado na coluna e perdera a possibilidade de andar. Tinha ficado três meses entre a vida e a morte em um leito de hospital. Falou também da moça que trabalha na sua casa e que perdeu três filhas em um soterramento.

Surgiu a discussão sobre cachê e decidimos que todos deveriam receber algum dinheiro.

Tínhamos que encontrar alguém que tivesse levado choque devido a tratamento psiquiátrico. Entrei em contato com o Caps Butantã. Do grupo Ueinzz algumas pessoas se dispuseram a falar dos choques que levaram. Mas o Ueinzz teria um lugar específico no documentário, não deveríamos misturar os papéis. A cada momento, difíceis decisões eram tomadas.

Eliane Brum me relata que tinha tentado fazer uma matéria com pessoas que chegaram até “a beira do precipício” e tinha listado algumas. Na sua lista havia ex-drogados, militantes, ex-presidiários. E um morador de rua, amigo comum do Vítor.

Carol chega então a um sobrevivente do crime e a uma moça que se recuperou. Assim Carol descreve a sua busca: “Enfim, depois disso tudo, de uma busca quase insana por sobreviventes de overdoses, acabei conhecendo pessoas maravilhosas que me levaram a outras pessoas mais maravilhosas ainda...”. Relata então a história de uma moça, abandonada pela mãe prostituta em seus primeiros anos de vida. Aos 12 anos ela sofre sua segunda overdose e acaba em um hospital entre a vida e a morte... E jurada de morte por alguns traficantes. Hoje ela é voluntária e cuida de pessoas ameaçadas pelas drogas, pela AIDS.  Carol relata que chorou ao telefone falando com essa moça. Acabamos não conseguindo que essa personagem participasse do documentário.

Vitor nos indicou Elio, sobrevivente de massacre do Carandiru. Ele e Dani (que viria a ser uma das acompanhantes terapêuticas nos dias de filmagem) foram até Itaquera, visitaram a família de Elio, ficaram tocados com tudo que viram e ouviram. Carol também chegou a outro sobrevivente do Carandiru, mas ficou muito assustada: “sua história permeia o crime de maneira bem violenta. Cumpriu pena por latrocínio...”  Carol o encontrou em uma “quebrada” e ficou muito assustada: “Estou com ressaca de energia errada ainda... daquelas que há algum tempo não sentia. Dar de cara com o lado sombrio de nossa cidade”.

A uma certa altura,  estávamos já organizando o cronograma da filmagem.

Fiz algumas reuniões com as acompanhantes terapêuticas, sabia que as pessoas iriam nos encontrar para falar de algo extremamente doloroso. Queríamos que fossem aconchegadas, recebidas com carinho. Eu sabia que teria um papel difícil, de criar condições para que as pessoas falassem. Reinaldo Pinheiro deveria se preocupar com os movimentos de câmera.

E assim foi durante a filmagem.

Vivemos situações difíceis, mas, em geral, as pessoas saíam aliviadas de seus depoimentos. A maior parte veio com sua família, as mulheres escutavam os depoimentos com orgulho. A mãe que perdeu as filhas num soterramento contou que nunca fala disso com o marido, que os dois preferem o silêncio. Saiu aliviada do depoimento.

Alguns depoimentos não entraram na edição final. Eram depoimentos sem nenhum contato com a dor, depoimentos por vezes de petrificação num lugar vitimado. Foi assim com o sobrevivente do campo de concentração... Pena. Mas, era alguém com um discurso já pronto, já decorado. Outros depoimentos foram superficiais, não havia como estabelecer um contato com a dor e a superação. Foi uma experiência de escuta fora do consultório, cercada de câmeras, computadores, luzes. E as pessoas falavam e falavam. Depois, em um debate, Yanina Staveskas me apontou que o falar, sabendo que essa fala será depois vista e ouvida em situações públicas, traz cidadania às pessoas que dão seu depoimento. A fala fica politizada.

Tomei um enorme cuidado com cada um dos depoentes. Interrompia o depoimento sempre em um momento onde a criação e a ternura imperavam. Senti um imenso carinho e admiração por todos eles.

Na montagem, junto com Vitor, buscamos as almas, os esgares, as crispações. Que se explicitam em gestos recortados do Ueinzz, Cia. de Teatro. E a difícil escolha de não contar, no documentário, que o Ueinzz é um grupo de sobreviventes.

Afinal, sobreviventes somos todos.

Questão final

Já no projeto inicial havia um questionamento de certos lugares petrificados e hierarquizados. Eu não priorizava as vítimas da ditadura ou do nazismo. A questão era o sofrimento humano, de maneira geral. A busca era pela alma dolorida, marcada, mas que superava e criava.

Isso ampliava a questão dos Direitos Humanos, dava uma amplitude enorme para nossa responsabilidade para com o sofrimento humano de maneira geral.

Eliane Brum termina seu texto afirmando que o filme é sobre os viventes. É verdade. A experiência da dor dá uma enorme contundência para a vida. E é sobre a vida que todos os meus documentários falam. A vida que se faz presente nas condições mais atrozes. Por isso talvez esse documentário seja o documentário de todos os outros documentários.

(1) ZALTZMANN, “Perdre la face, Narcissisme et Kulturarbeit” in De la guérison psychanalythique, Paris, PUF, 1998.



 
 
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