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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    14 Setembro de 2010  
 
 
ESCRITOS

Desobediência civil


RUBIA DELORENZO (1)

Ele sonhou um sonho terrível.

Uma boca masca um chiclete.

Aos poucos, paulatinamente, volatiza-se o açúcar e o doce sabor guardado na língua principia a amargar. Mas esta mutação dos sabores, quase química, essa apreensão fisiológica do sentido, se acompanha de uma outra, sinistra alteração.

A goma branca, que a boca recebe inocente, a obriga a um mastigar mecânico, no início, calmo e regular. Mas tal mastigar tornado autômato, autônomo e furioso, com os fiapos de borracha arrancados à matéria antes íntegra, começa a tecer desordenado.

Os dentes, como agulhas, cosem a carne e a goma elástica, formando um tecido único, estranho e familiar ao corpo, espesso e pegajoso ao toque. Aquilo não se podia engolir nem tampouco expulsar.

Quando, anos depois, vi a magreza no corpo da moça e a constrição em seu rosto, pensei no sonho do homem.

O que engendrou a trama e a urdidura de seus crimes senão a crueldade dos mandatos indigestos? Mecânicos, impiedosos, feriram a alma fascinada. Imprimiu -se nela a sentença nefasta e poderosa: "Não és nada". E as vísceras se ulceraram.

A execução penal do conto de Kafka, o singular aparelho de tortura que a põe em marcha, mostram, aqui, sua semelhança. A máquina morde os corpos dos condenados, ignorantes de seus delitos. Conhecerão na própria carne a sentença que lhes concerne. Não haverá defesa nem mediação.

Em ruínas, à deriva, vazia de forma e palavras, traz seu corpo - quase um nada - para encorpar débeis gestos de resistência. Vi através, na transparência dos olhos e na figura fina e quebradiça, um filamento de energia além da alma devastada.

A última crise foi histérica, já não foi somática. Escapou da ponta afiada do ancinho que outrora furou suas entranhas. Agora, seu corpo encenava toda a engrenagem: na eletricidade que o percorria, no arrepio da pele, no formigamento de toda a superfície. Também no derreter do desmaio.

Ao acordar, percebeu o efeito da cadência enlouquecida daquelas vozes selvagens.

Ela parece ter vindo para desunir a goma e a carne, para esgarçar a fibra dura, cuspi-la, fazer do novo vazio na carne que sangra, cicatrização.

Mas não permaneceu.

Se lá fez greve de fome, aqui também jejuou.

No final, praticou desobediência civil.

Disse não, duas vezes não(2).

Março de 2010
(1) Rubia Delorenzo é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
(2) Alusão ao artigo de J.-B.Pontalis, "Não, duas vezes não", em Perder de Vista.




 
 
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