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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    14 Setembro de 2010  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

Sem intermediações: paradoxos


MARIA AUXILIADORA DE ALMEIDA CUNHA ARANTES (1)
(DODORA)

Na vida psíquica, nada do que uma vez se formou pode perecer.
Freud, S., "Mal-estar na cultura".


A principal sensação que me atravessou ao iniciar uma visita a um presídio feminino em Recife foi a sensação, que se instalou imediatamente como convicção, de que o último lugar onde uma presa pode estar protegida é a prisão onde cumpre a pena.

Sabemos todos que a prisão não tem como proposta proteger o preso, mas sim, proteger a sociedade. A exclusão social traz, na sua outra face, a inclusão do preso no grupo dos excluídos.

Imagina-se que esta convivência compulsória, estabelecida e regulada pelas leis próprias da execução penal, reeducará o preso/presa para o retorno, um dia, à comunidade dos homens e das mulheres livres.
Esta visita da qual participei, no mês de abril deste ano, na condição de Coordenadora-Geral de Combate à Tortura, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, me pôs frente a frente, e sem intermediações, com a materialidade das relações inclusão-exclusão, proteção-desamparo e com as impossíveis relações que uma presa mulher tem que enfrentar, na sua condição feminina e, muitas vezes, na sua condição de mãe.

Neste mesmo presídio iniciei a visita com um grupo de integrantes de instituições do governo local e da sociedade civil, representantes de combate à tortura, conversando com as presas que amamentavam e que sabiam que podiam fazê-lo até seus bebês completarem 6 meses de vida; depois os filhos são entregues à família ou a instituições. Uma jovem presa, de pouco mais do que 19 anos, me disse que não iria mais ver o filho, preferia assim, para que ele não retornasse e não guardasse, pequenininho, "na retina dos olhos", segundo sua expressão, a visão da mãe presa. Perguntei: e o leite? O leite, "eles dão remédio para secar". E o pai? O pai também é um preso, noutro estado do país, não iriam se ver, e nem mesmo ele iria saber que o filho nasceu.

Nesta área do presídio, que abriga as mães com bebês, havia cerca de 10 mães. Os berços estavam bem arrumados, com roupas de cama ainda com as dobras de loja, cortinados e ursinhos dentro da cama, quase um brinquedo para as mães. Depois que os bebês se vão, as camas permanecem arrumadas para os que vierem; as roupas são doações para a cadeia.

Fui em seguida ao pátio onde estavam as demais presas, num total de quase setecentas mulheres, algumas permaneceram dentro das celas abertas. A capacidade total do presídio é de até 180 abrigadas! O prédio, bastante antigo, foi um convento de freiras, cedido para se tornar o presídio feminino do estado de Pernambuco, nos anos 70, quando recebeu cerca de 30 presas políticas.

Nas pequeníssimas celas que visitei, havia 20 mulheres-presas em cada uma, que se espremiam entre 2 camas beliches totalizando quatro leitos, que são ao mesmo tempo seus armários, suas camas, seus esconderijos, protegidos com as cortinas de tecidos coloridos. Não consegui entender como se distribuíam à noite: três em cada leito, e as outras, no chão. Preferem não usar os colchonetes empilhados num canto, úmidos e cheios de estranhos insetos que entram e saem dos tecidos já sem cor. A pior situação é a das que ficam perto da parede do chamado "banheiro" - uma fossa de onde à noite sobem os insetos e outros bichos que circulam pelas celas em busca de alimento.

A fronteira entre os corpos, as vidas, os calores, os humores, completamente eclipsada. A sensação se materializava quando uma delas começava a falar e outra continuava, sem espaço na frase que se completava, sem pausas, querendo aproveitar ao máximo nossa presença: falavam de comida ruim e estragada, de banheiros entupidos, de insetos noturnos que passeiam sobre seus rostos e seus corpos embolados na mesma cama e no espaço do chão convertido em leito; falavam ininterruptamente sobre a higiene, os castigos, sobre incertezas em relação à progressão de suas penas.

Após a visita, conversamos com a direção do presídio, demos entrevistas à imprensa e articulamos outras ações que sempre decorrem destas visitas, para encaminhamento imediato.

Voltei para casa, menor, e com uma sensação de opacidade "na retina dos meus olhos"; um travo insólito, físico e psíquico, uma sensação de impotência frente à devassa do que se imagina como civilização e regulação das relações entre os humanos.

Não sei exatamente se a formação como psicanalista diminui ou aumenta a sensibilidade neste mergulho nos espaços onde o humano deixou seus piores vestígios, materializado na situação da prisão onde esta visita foi apenas uma experiência, entre outras que se repetiram. De qualquer forma, pensei que a prisão e as cadeias são uma reserva do que a civilização tem de pior, não pela história individual do preso que ali cumpre sua pena e tenta pagar a dívida que contraiu com a sociedade, mas pelas condições de cobrança desta dívida.

A psicóloga, a psicanalista, a cidadã, e nesta visita, a mulher, se misturaram em mim, e prevaleceu a dor do feminino encurralado e uma vontade de abraçar a cada uma das jovens mães, e das mulheres mais velhas, das que estavam revoltadas, das que falavam ao mesmo tempo, tentando aprisionar a reserva de esperança que aquela visita podia lhes trazer.

Esta é uma parte do trabalho que fui convidada a fazer dentro da Secretaria de Direitos Humanos que tem, no Ministro Paulo Vannuchi, o principal fiador das ações de defesa dos direitos humanos, levadas à frente por um determinado e incansável grupo de cidadãos e cidadãs que apostam que o Brasil pode avançar muito mais na busca de mudanças nesta área. Entendo minha participação nesta função como um fragmento, do tamanho e com as possibilidades de um fragmento: nem maior e nem menor, mas essencial, neste que é designado como o lugar onde o enfrentamento da violência e da tortura nas prisões e nos locais de privação de liberdade é o principal trabalho a ser realizado.

Brasília, 22 de agosto de 2010.

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(1) Maria Auxiliadora Almeida Cunha Arantes é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É Coordenadora-Geral de Combate à Tortura, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.




 
 
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