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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    14 Setembro de 2010  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

A teoria e a clínica do supereu, por Marta Gerez Ambertin


SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO (1
)

Um curso de dois módulos sucedeu o seminário clínico e a conferência que a psicanalista argentina Marta Ambertín ofereceu no Instituto Sedes Sapientiae como parte do evento Supereu: Teoria e Clínica, que foi realizado pelo Departamento de Psicanálise da Criança nos dias 27 e 28 do mês de agosto. Cerca de 60 pessoas participaram da atividade do sábado, iniciada como curso teórico sob o tema Particularidades do supereu em Freud e Lacan, e depois desenvolvida como curso teórico-clínico que problematizava as relações entre Culpa, ato e supereu.

Num estilo eloquente, Marta foi preparando o campo da transmissão através dos diversos recursos expressivos que colocou em cena para falar da instância freudiana "que insta ao pior, vocifera e comanda insensatamente": ao cantarolar Vinícius de Moraes e Tom Jobim ("Ah, insensatez que você fez/coração mais sem cuidado/ fez chorar de dor o seu amor/um amor tão delicado"); ao remeter o público ao título da entrevista recentemente publicada em Percurso - Revista de Psicanálise no. 43: Supereu, avesso do desejo, a fim de indicar os diversos destinos de fracasso que são observáveis clínicos relacionados ao tema; ao impostar a voz para explicitar qual seria a 2ª face - a face não-regulante - da lei ("‘Pai nosso, que estais no céu'... Fica ali! Porque senão volta como fantasma (2)!"); ao retomar alguns elementos apresentados na conferência Supereu, ideais e cultura e seus efeitos na clínica psicanalítica - em atenção àqueles de nós que estivéramos ausentes na véspera -, particularmente no que diz respeito à concepção defendida em sua tese: "O supereu é o saldo da hostilidade da lei não-regulante dos nomes-do-pai, que comanda a subjetividade desde seus imperativos hostis (Freud), ou desde seus imperativos de gozo (Lacan)".

Para falar da raiz do supereu - "o coto de palavra que vem do Outro simbólico" -, Ambertín se remeteu ao estudo de Lacan sobre a daphnia, em que se incorporam, pelo aparato vestibular, os grãos de areia dos quais este crustáceo necessita para manter seu equilíbrio. Se, portanto, a voz não se assimila, mas se incorpora, o supereu é extimo (ao mesmo tempo externo e íntimo). E se "ouvir é obedecer", para não obedecer é preciso ceder ao próprio desejo: "a única coisa de que se pode ser culpável, na teoria psicanalítica" (cf. Lacan, Seminário 7, A ética da psicanálise).

Marta chamou a atenção para os mandatos superegóicos que se sucederam na clínica psicanalítica desde os anos 80 ("Não há que retroceder diante da psicose"; "Não há que retroceder diante da análise de crianças" - e, hoje em dia: "Não há que retroceder diante da perversão"), a fim de explicitar seu compromisso com uma "clínica do desejo" - desejo que está intimamente ligado à lei regulante do nome-do-pai, clínica que se abstém de idealizar o ideal do eu, devido à curta distância entre este e o supereu.

Ao formular assim a pergunta sobre a negociação possível entre desejo e supereu, Ambertín propõe que a pista perante esta dificuldade de negociação entre avessos é um dos observáveis da instância do supereu, na vida cotidiana e na clínica: a culpa, conceito que desde logo cuidou de diferenciar de sua dimensão real - ou seja, a necessidade de castigo -, em que não há registro de nenhuma falta e, simplesmente, se procura o golpe(3). Haveria 3 registros da culpa: "a culpa é um sentimento (registro imaginário), mas também uma resposta do sujeito para cobrir a falta do Outro (registro simbólico), suportada com o padecimento da necessidade de castigo como plus de gozo (registro real)".

Ao considerar que não é possível pensar na estrutura do sujeito sem levar em conta esta categoria onipresente, Marta entende que a culpa dá conta da relação do sujeito com a lei numa dupla vertente: a da dívida, lei regulante, e a da tentação, lei obscena do supereu. O pai, que convocou ao cumprimento da lei simbólica, tampouco pôde cumpri-la perfeitamente, e a lei obscena do supereu é a que tentaria restaurar o pai: "Diante da falta do Outro - sua castração - o sujeito recorre, entre outros, ao álibi da culpa, na tentativa de fabricar um Outro completo".

A culpa inconsciente seria, portanto, uma falta ignorada pelo sujeito, que não pode escapar à responsabilidade de interrogar sobre essa falta.

No projeto de investigação que Marta Ambertín empreende em Tucumán, em torno da subjetivação do crime, diferenciam-se as seguintes sequências possíveis:

• Crime ---------------------------------------------------------- Sanção penal (sequência que serve apenas à repetição)
• Crime ------------ Culpa ---------------------------------------- Sanção penal (castigo)
• Crime ------------ Culpa ------------ Responsabilidade ------- Sanção penal

Apenas 1% dos casos cumpre esta terceira sequência subjetivante. A psicanalista argentina entende que o castigo oculta a responsabilidade, já que não tem significação possível, pois toca as bordas da pulsão de morte: "o castigo provoca ‘satisfação' masoquista, e essa satisfação potencializa a culpa muda, sitia o sujeito, o aliena de sua falta, não responsabiliza e, o que é pior, o converte em um ‘procurador de vinganças'".

Comprometida com a produção de subjetividades dos pacientes dos quais nos falou no decorrer do curso, e ao mesmo tempo interessada em pensar a produção contemporânea de sociedades, Marta Ambertín exprimiu desde a preocupação com a anomia no México até o respeito pelo testemunho da falta que historicamente fizeram as Madres de Mayo; desde sua admiração por Silvia Bleichmar até suas divergências de Charles Melman e Michel Tort; desde seu apreço pelo chorinho hospitaleiro em São Paulo até seu respeito pela série de boas perguntas que lhe foram elaboradas ao longo do evento, ocupando-se delas principalmente na passagem do primeiro para o segundo módulo do curso. Foram estes os fios com que Ambertín teceu sua efetiva contribuição com a transmissão da psicanálise produzida entre nós.

(1) Da equipe editorial do Boletim Online.
(2) Ref. a Hamlet.
(3) Ref. a Freud in "Bate-se numa criança".




 
 
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