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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    15 Dezembro de 2010  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

Uma repórter a serviço do Boletim Online


RENATA UDLER CROMBERG (1)


Entre 21 e 23 de outubro de 2010, realizou-se uma Jornada Científica organizada pelo Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre, cujo tema foi "Obras completas de Freud - traduções, conceitos e destinos". Esta instituição tem algumas características parecidas com as do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, tanto na concepção de formação centrada no estudo da obra freudiana como no tempo de existência, aproximadamente 25 anos, assim como na sua formação inicial, feita a partir da união de psicanalistas brasileiros com um núcleo de psicanalistas vindos da Argentina. Cento e trinta pessoas inscreveram-se na jornada. No primeiro dia houve uma pré-jornada interna da instituição sobre formação psicanalítica, que abordou o tripé analítico que a sustenta: análise, supervisão e seminário teórico. À noite, houve o lançamento do livro "Formação Psicanalítica: fatos e versões" com conversa com os autores, todos da instituição. A jornada aberta ao público ocorreu nos dois dias subsequentes, no formato de três conferências com os convidados e mesas-redondas. Os convidados foram Paulo César Souza, tradutor das obras de Freud editadas pela Companhia das Letras, Renata Udler Cromberg, psicanalista do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e Miguel de la Puente, psicanalista de Campinas, que proferiu a conferência "Afeto, inibição e o processo de recalcamento".

Em sua conferência, "Traduções e destinos das palavras na obra de Freud", o tradutor Paulo César Souza abordou a mesma questão polêmica da tradução de Trieb para instinto que ele já havia trazido em sua conferência no Instituto Sedes Sapientiae, organizada pelo Departamento de Psicanálise. Houve uma discussão acalorada que ele enfrentou com sua fleuma baiana e seus interessantes argumentos de um leitor que, por não ser psicanalista, tem acesso ao Freud escritor. O rigor de suas escolhas se pauta pela coerência da escrita mais do que pelas discussões conceituais pautadas pelas contingências da história e da política da teoria. Esta discussão foi retomada em mesa-redonda sobre o tema da jornada com os três convidados.

Pude trazer um resumo das discussões processadas no Departamento de Psicanálise do Sedes numa noite fecunda de 2010. A passagem a domínio público da obra de Freud traz várias leituras de Freud que surgem e surgirão das diversas traduções, marcadas por questões de história da teoria atravessadas por marcações territoriais político-institucionais. Se a tradução de Trieb pelo neologismo pulsão, que marcou toda uma geração que leu Freud pelo viés francês lacano-laplanchiano, enriqueceu o entendimento do conceito freudiano, ela pode se tornar uma matriz rígida ao ser pensada somente em oposição à tradução de Trieb por instinto, tomada apenas como a marca de uma leitura biologizante, a partir da tradução de Strachey para o inglês. Pude apontar, em mim mesma, o conflito, através da discussão fecunda travada com o tradutor Renato Zeick por ocasião da tradução de "O futuro de uma ilusão", para a editora LPM, da qual fui revisora técnica, conflito entre instinto (Renato) e pulsão (Renata), que foi solucionada de maneira criativa, após ponderação dos dois lados com mediação da editora, quando o tradutor sugeriu impulso, dando uma ênfase mais etológica, o que me pareceu uma abertura interessante no atual momento histórico, de busca de uma nova aliança e compreensão das relações entre natureza e cultura. Além disso, gerou um adendo do tradutor, que esclarece bem o leitor sobre esta escolha. Pude também expor as dificuldades da tradução em curso da obra de Sabina Spielrein, que está sendo organizada por mim, especialmente em seu primeiro artigo, que trata do discurso de uma esquizofrênica, uma vez que se trata de uma russa, escrevendo em alemão um discurso esquizofrênico estenografado em alemão. A tradutora Renata Mundt tem tido um árduo trabalho até chegar à conclusão de que um termo é um neologismo criado de maneira delirante.

Em minha conferência, "A psicose à luz da psicanálise: caso Schreber (Freud -1911) e caso de uma esquizofrênica (Spielrein - 1911)", abordei histórica e conceitualmente a implantação da psicanálise no coração da psiquiatria de 1907 a 1911. Considerei o índice do terceiro número do Jahrbuch (Anuário de psicanálise), de 1911, como a relíquia histórica ou achado arqueológico que mostra esta implantação, com a publicação simultânea do caso Schreber e Formulações sobre os dois princípios do acontecimento psíquico de Freud, Sobre um conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia (dementia praecox) de Spielrein, a primeira parte de Metamorfose e símbolos da libido de Jung, bem como o seu artigo Crítica sobre E. Bleuler: Sobre a teoria do negativismo esquizofrênico e o de Bleuler, Resposta aos comentários de Jung sobre a teoria do negativismo, entre outros. Esta reunião de ensaios, abordando as agora chamadas psicoses, esquizofrenia e paranóia, indica a consolidação da progressiva implantação da psicanálise no coração da psiquiatria, que se deveu a Freud, Bleuler, Jung e Spielrein, além de Abraham, Binswanger, Eittington e Maeder. Esta implantação tirou a psiquiatria do niilismo terapêutico em que esta se encontrava, confinada às descrições classificatórias dos quadros clínicos que foram um passo decisivo, mas não suficiente, para a abordagem clínica e terapêutica da loucura. Foi a partir da incorporação entusiasmada da psicanálise feita por Bleuler na primeira década do século XX, através dos tratamentos elaborados na Clínica Psiquiátrica do Hospital Burghölzli da Universidade de Zurich, em que atuava como diretor, que a psicanálise acrescentou à psiquiatria a compreensão dinâmica do paciente que, com o nome de bleulerismo, imperou até os anos 70 do séc. XX no campo da psiquiatria, quando então veio a perder progressivamente a hegemonia para a visão farmacológica, biológica e organicista que surgiu com a descoberta dos primeiros medicamentos anti-psicóticos nos anos 50.

A questão do presente que se liga ao passado para que ele abra uma nova compreensão do presente é a hegemonia medicamentosa, a chamada medicalização do tratamento das doenças mentais, transformadas em transtornos pelos manuais de psiquiatria. Esta questão se insere na constatação da medicalização da sociedade, a partir do dado irrefutável de que a indústria farmacêutica é a indústria que mais fatura no mundo depois da indústria bélica, superando publicidade e marketing. As pesquisas recentes divulgadas pela mídia nos confrontam com dados contraditórios. Se nos EUA a maioria das pessoas que tomam medicamentos para problemas considerados de saúde mental não seguem nenhum acompanhamento terapêutico, este é recomendado pelas associações médicas e psiquiátricas como garantia da eficácia medicamentosa que, por si só, não garante a diminuição do sofrimento. A psiquiatria, que tinha antigamente sua prática confinada aos hospitais psiquiátricos ou a pacientes graves agudos ou crônicos, vem se tornando o must das especialidades de consultório, sendo das mais procuradas - por serem mais rentosas - pelos alunos de medicina. Isso porque há falta de psiquiatras, uma vez que passou à sua alçada qualquer transtorno de humor, sono ou ansiedade que pode ser tratado medicamentosamente. O foco objetivo aí é a desaparição de sintomas - no sentido das definições dos psiquiatras - e adaptação ao social, sem haver preocupação com sofrimentos emocionais, psíquicos e sexuais que envolveriam as assim chamadas subjetividades singulares. Embora seja inegável o benefício dos psicotrópicos surgidos a partir de 1952, pensar os limites e a abrangência de seu campo de atuação retira a onipotência hegemônica e idealizada que lhes atribui um poder de cura exclusivo, onipotência essa regada pelos interesses de uma indústria poderosa politicamente e milionária.

A discussão que se seguiu à conferência foi interessantíssima e acentuou-se - através de psicanalistas de formação psiquiátrica e que são docentes nas especializações de psiquiatria das faculdades de medicina - a importância deste tipo de discussão histórica, já que hoje, ao contrário daquela época desbravadora, o psiquiatra não sabe mais lidar com o discurso, sabe apenas fazer check list de sintomas; questões que eram importantes naquela época, como o embotamento afetivo na esquizofrenia, sequer são consideradas, por não terem evidência clínica e portanto não serem "científicas".

Participei também de uma mesa-redonda excelente, "Amor de transferência: quando se rompem as fronteiras", onde tentei apontar a origem da escritura freudiana dos artigos sobre a técnica a partir do caso Jung e Spielrein e da intervenção freudiana nele a partir da correspondência entre Freud e Jung. Minha colega de mesa, Sueli Souza dos Santos, apresentou uma brilhante reflexão sobre a ética do amor de transferência, a partir de artigo seu, publicado no livro que estava sendo lançado.

Enfim, um evento em clima sério e desejante, nesta cidade que possui, segundo informações de colegas gaúchos, noventa grupos de psicanálise (a Buenos Aires brasileira, onde de fato a proximidade geográfica propiciou muito intercâmbio), dos quais umas quinze congregam a maior força de formação e discussão, entre as quais as mais importantes são, além do CEP, a APPOA, a Associação Sigmund Freud, o Espaço Psicanalítico e as duas sociedades ligadas à IPA, Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre e Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.


(1) Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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