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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    15 Dezembro de 2010  
 
 
CINEMA

A Origem – reflexões suscitadas a partir do filme de Christopher Nolan


MARIA MANUELA ASSUNÇÃO MORENO (1)


Para além das críticas controversas que o filme A Origem, de Christopher Nolan, possa ter produzido nas últimas semanas, não é possível ignorar certas associações que surgem com o nosso campo de trabalho. Sem pretensões de esgotá-las, as presentes reflexões tangenciarão as analogias que emergem em relação ao campo onírico e ao campo analítico, entre um Freud arqueólogo (extração) e um Freud construtor (inserção), onde a problemática da realidade e da constituição psíquica se apresentam. Há dez anos, Nolan já trazia para as telas, em seu filme Amnésia, inquietações a respeito de nossa temporalidade, colocando em cena a questão da memória, constitutiva do ser e do mundo, em contraponto com o suplício e o vazio de sua ausência. O diretor aborda, agora, a questão da possibilidade de extração, por um outro, de um conteúdo psíquico do sujeito durante seu sonho, assim como da instalação de uma idéia no psiquismo, a partir de uma intervenção que se assemelha a uma construção intersubjetiva da figuração onírica.

O que se encontra na origem? O filme apresenta em estilo ficcional uma questão que se encontra no cerne da epistemologia psicanalítica. Freud nunca desistiu de tentar comprovar o caráter científico da psicanálise, mesmo tendo rompido com a lógica organicista (porém não tendo abandonado o paradigma biológico) e proposto, como método, aquilo que foi considerado por Wilhelm Dilthey como próprio do discurso das ciências humanas, a interpretação como apreensão do sentido.

Vale neste momento uma breve introdução ao tema. A hermenêutica surge na tentativa de construção de um modelo de leitura dirigida à compreensão dos textos bíblicos, na busca da verdade do texto, de caráter transcendental (divina), que precede o próprio autor. Tal modelo idealista sofre progressivas alterações, a partir de um movimento de convergência e intertextualidade, onde a concepção de verdade é questionada, levando à posição extrema do desconstrutivismo, que se apresenta sob a máxima: cada leitor, um texto. O filme de Nolan nos remete, no entanto, às considerações desconstrutivistas de Derrida em seu texto Freud e a Escritura.

Derrida considera o aparelho psíquico teorizado por Freud como um aparelho de escrita. Ressalta, no entanto, que o texto decorrente deste aparelho de escrita é desde o princípio uma transcrição. Neste sentido, o inconsciente é "constituído por arquivos que são sempre já transcrições" (DERRIDA, 1988, p. 200). Não é possível tomarmos um texto em sua forma originária, em primariedade, segundo o autor. Derrida (1988, p. 185) afirma que a vida psíquica não constitui "nem a transparência do sentido nem a opacidade da força, mas a diferença no trabalho das forças". Trata-se, para o autor, de um modelo de escritura que Freud apresenta para compreender o psiquismo irredutível à palavra, e que comporta elementos pictográficos, ideogramáticos e fonéticos. Seu texto nos alerta para o perigo de pensarmos no conceito metafórico de tradução ou transcrição não pelo seu caráter de escritura, "mas pelo fato de supor um texto que já está ali, imóvel, presença impassível de uma estátua, de uma pedra escrita ou de um arquivo cujo conteúdo significado seria transportado sem prejuízo para o elemento de uma outra linguagem, a do pré-consciente" (DERRIDA, 1988, p. 199). Neste sentido, sustenta, a partir da lógica da Carta 52 de Freud, que não há duplicação nem mudança de lugar, mas originalidade e irredutibilidade de um trabalho de escritura.

Derrida nos fala que o presente não é constituinte, mas é originariamente reconstituído a partir dos signos da memória. O sentido pressupõe um atraso, o significado é sempre reconstituído mais tarde. Tudo começa pela reprodução sob a lógica de uma encenação que faz um apelo a um suplemento, a uma espécie de depósito de significado. Na reprodução - que pode ser considerada como uma verdadeira construção em que o outro já se encontra implicado - está inserida a noção de nachträglich. A noção do a posteriori na obra de Freud refere-se, segundo o Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis (1999), a uma idéia de ‘efeito retardado' que indica a distância temporal entre o vivido e seu efeito psíquico. O sentido e a eficácia psíquica são conferidos posteriormente à impressão do acontecimento. Ao pensarmos na função do grito, como descrita por Freud em seu Projeto para uma Psicologia Científica (1895) é possível apontar o apelo ao suplemento como originário, sendo ele que "escava aquilo que se reconstitui mais tarde como o presente." (DERRIDA, 1988, p. 200). O sentido, desta forma, só se dá de forma suplementar, em descontinuidade e pressupõe a presença/ausência do objeto. Trata-se, segundo Derrida, de uma estampa originária.

Após a transcrição, memória e qualidade sensorial tornam-se também mutuamente excludentes. Em 1925, em Notas sobre o ‘Bloco Mágico', Freud acrescenta que a consciência surge no lugar do traço mnêmico. Derrida (1988) considera que a escrita substitui a percepção antes mesmo desta última aparecer a si própria. Neste sentido, Derrida nos esclarece: "Os traços não produzem portanto o espaço de sua inscrição senão se dando o período de sua desaparição. Desde a origem, no ‘presente' de sua impressão, são constituídos pela dupla força de repetição e de desaparição, de legibilidade e de ilegibilidade" (DERRIDA, 1988, p. 221).

Sob esta perspectiva, afastamo-nos, no campo psicanalítico, de qualquer objetividade circunscrita em uma evidência, para nos dirigirmos à noção de verdade como construção intersubjetiva, intertextual. Ogden, em um texto de 2005 intitulado What's true and whose Idea was it?, se debruça sobre a seguinte questão: numa situação analítica, quem é o autor de algo sentido como verdadeiro? Em analogia à experiência de leitura e produção de um texto, Ogden questiona as idéias de influência e autoria e afirma que autores posteriores influenciam a leitura que fazemos de textos de autores anteriores, subvertendo uma perspectiva diacrônica. O leitor contemporâneo, desta forma, torna-se paradoxalmente co-autor do texto que lê. Inspirado por Bion, Ogden sustenta que o verdadeiro constitui uma descoberta e que o pensar envolve ao menos duas pessoas. Ogden relativiza a noção de verdade e a remete à resposta emocional do paciente bem como à ressonância do analista a ela, "ao final, é a resposta emocional - aquilo que se sente como verdadeiro - que tem a palavra final em psicanálise: o pensar enquadra as questões a serem respondidas em termos de sentimentos" (Ogden, 2005, p. 64).

Certamente o que foi escrito foi suscitado, relembrado e construído a partir de um movimento dialógico singular com o filme. De fato, retomando a questão central apresentada por Nolan, não temos controle sobre os desdobramentos que determinada impressão sofrerá, considerando o eterno movimento de escritura constituinte do ser e do mundo. Retomando por fim as palavras de Derrida, temos que substituir a noção de tradução ou transcrição por uma noção de transformação, transformação regulada de uma língua por outra, de um texto por outro. De fato nunca temos ou teremos, segundo Derrida, contato com qualquer transporte de significados puros que o instrumento - ou o ‘veículo'- significante tivesse deixado virgem ou intacto, de uma língua para outra, ou no interior de uma mesma e única língua.

Bibliografia

DERRIDA, J. "Freud e a cena da escritura" In A Escritura e a Diferença. São Paulo: Jorge Zahar, 1988.

OGDEN, T. "What's true and whose idea was it?" In This Art of Psychoanalysis. Londres: Routledge, 2005.

(1) Psicanalista, ex-aluna do Curso de Psicanálise.




 
 
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